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OpiniãoAndamos todos ao mesmo

A esmola

"Para droga e vinho não dou dinheiro", dizemos do topo da nossa superioridade moral. "Não sustento vícios mas sou capaz de comprar comida." E pronto, assunto arrumado: decidimos o destino da esmola que damos e ainda escolhemos o pão que o pobre vai comer. E como é que isso não nos enche de vergonha?

Foi a forma como algumas pessoas contornavam a mulher que me chamou a atenção. Eu estava junto a outra loja, do lado contrário da rua, em frente à porta do supermercado onde aquilo se ia passando e estranhei aquela espécie de coreografia não planeada que levava as diferentes marchas, de diferentes indivíduos em diferentes trajetórias. Uns bailavam pela direita, outros pela esquerda e houve até um homem que fez uma espécie de volta à cintura e deu o ombro às costas da senhora só para não ter de a encontrar de frente.

Sabiam que ela estava a pedir. Via-se ao longe, não havia como enganar, a mão estendida, o corpo meio curvado, as pernas delgadas numas calças sujas sobre uns ténis imundos pelo tempo e pelo uso que ensaiavam pequenos passos, ora numa direção, ora noutra. Talvez fosse o cansaço que lhe limitasse a agilidade, talvez fosse a pudor de pedir que lhe travava os movimentos, talvez estivesse doente e isso deixava-a mais lenta, talvez os anos lhe pesassem sobre a carne magra. Teria mais de trinta e menos de cinquenta, pensei, mas acho que havia mais rugas na alma do que na pele, sei lá eu a idade de quem pede dinheiro a estranhos no meio da rua.

Era dinheiro que mendigava, claro. E era dinheiro que lhe recusavam. Recusavam a esmola e recusavam o contacto. Houvesse ali uma bola e pareceria que jogavam à rabia ou à apanhada, ela a tentar apanhar o esférico, os outros atletas a passá-lo entre eles e a fugir.

Só não escapava quem vinha distraído e tinha de falar com ela. "Tinha", como se fosse obrigação ou ficasse encurralado, não havia por onde fugir. Esticavam o pescoço, viravam ligeiramente o rosto, aproximavam a orelha e ouviam as primeiras palavras. Sumidas. Para logo abanarem a cabeça. "Não tenho nada", ouvia eu do outro lado da estrada. "Só tenho cartão." "Não ando com trocos."

E, claro, lá veio o inevitável. Bem alto, para se garantir que escutava a mulher e escutava quem passava. "Dinheiro não dou, mas se tiver fome compro-lhe alguma coisa. Quer um pão?".

Não sei o que é ser invisível e não sei o que é ser evitado. Não sei o que é querer falar e sentir os olhares a desviar. Não sei que sensação é essa de provocar repúdio nos outros. Ou pena. Ou comiseração. Ou piedade. Não sei o que sente quem sente que é ignorado, mas algures lá em baixo, no fundo para onde desliza a dignidade, deve ser lá que se vai buscar a energia para reagir e continuar.

Até podia dizer que se calhar era a fome. Era a fome que a fazia seguir em frente e pedir à pessoa seguinte. A necessidade de combustível para o organismo, o dela ou dos filhos, seja de quem for. Pedinchar para comer.

Mas, em bom rigor, não sei se era a comida o destino dos trocos que aquela mulher ia mendigando a quem passava e a evitava. Não entabulei conversa nem sequer lhe perguntei o nome. Talvez noutra altura o fizesse, mas naquela manhã fria de janeiro, depois de tanta gente a contorná-la como se fosse uma rotunda, só consegui estender-lhe as moedas que tinha no bolso, sorrir entre a timidez e a vergonha e ir à minha vida.

Talvez tenha ajudado para comprar um champô. Ou talvez tenha contribuído para produtos de higiene menstrual. Ou se calhar juntou aos trocos que tinha no casaco para aqueles outros ténis de que precisava. Ou para pagar ao sapateiro o remendo nos que usava. Ou para umas calças novas. Ou para a máquina da lavandaria que iria lavar e secar as que tinha vestidas.

Sabia lá eu. Sabemos lá nós. Só sabemos o que nos é mais prático e cómodo. E o mais prático e cómodo é dizer, do topo da nossa superioridade moral – essa que fica no extremo oposto do buraco fundo para onde vai a dignidade alheia – que não sustentamos vícios. Para droga e vinho é que não. Se for comida ainda vá. Desde que sejamos nós a escolher o que o outro come, claro. Nós decidimos o destino da esmola que damos e ainda decidimos sobre o pão que o pobre vai comer.

A mulher magra ficou lá, não a voltei a ver nesse dia nem nos outros. Mas a vergonha ficou cá.

Paulo Farinha é jornalista há 23 anos. Fez parte da equipa que lançou a edição portuguesa da National Geographic, onde foi coordenador editorial, editor e editor online. Foi editor executivo da Volta ao Mundo e da Notícias Magazine (Diário de Notícias e Jornal de Notícias) e chefe de redação da unidade de revistas do Global Media Group. Autor de Ninguém Disse que Isto ia Ser Fácil, escreve regularmente sobre família, relações e parentalidade e assinou crónicas na Notícias Magazine, DN Life, Pais & Filhos e Observador - jornal onde é atualmente editor de inovação.