Por que é que Mariupol é tão importante para a Rússia?
Nas últimas semanas, esta cidade portuária da Ucrânia foi cercada e deixada em ruínas pelas forças russas. Segundo a Human Rights Watch, cerca de 3.000 pessoas morreram e mais de 80% dos edifícios foram destruídos. Milhares de pessoas permanecem encurraladas sem água, comida, medicamentos, eletricidade ou comunicações enquanto os militares avançam para o centro sem dar tréguas. A queda de Mariupol seria, na mesma medida, uma grande vitória para a Rússia e um golpe duro para a Ucrânia. Explicamos porquê.
Imagem publicada na conta de Telegrama do governador da região de Donetsk, Pavlo Kirilenko, mostra a destruição de teatro no centro de Mariupol. © Créditos: Telegram de Pavlo Kirilenko/AFP
Edifícios reduzidos a escombros, cadáveres espalhados pelas ruas, mortos enterrados em valas comuns e sobreviventes a disputar comida, sucumbindo ao desespero. Os relatos que nos chegam de Mariupol espelham o horror que se tem vivido naquela que já é considerada a cidade-mártir da Ucrânia, sitiada há mais de três semanas, pouco depois do início da invasão russa a 24 de fevereiro.
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A cidade portuária, localizada a cerca de 50 quilómetros da fronteira russa e a menos de 30 quilómetros dos territórios separatistas pró-russos do Donbass, tem sido um dos principais focos da ofensiva russa, protagonizando alguns dos momentos mais dramáticos da guerra.
Nos últimos dias, os bombardeamentos atingiram vários prédios residenciais, um hospital pediátrico e maternidade, um teatro e uma escola de arte que serviam de abrigo para civis. Mais de uma centena de carros saíram da cidade depois de várias tentativas falhadas de abertura de corredores humanitários para retirada dos habitantes.
No domingo, a Rússia exigiu ao exército ucraniano que depusesse as armas e abandonasse a cidade até à manhã de segunda-feira, em troca da abertura de dois corredores humanitários. A Ucrânia recusou e Mariupol continua a resistir. Alguns especialistas já a posicionam ao lado de Guernica, Estalinegrado ou Aleppo na lista de cidades completamente dizimadas pela guerra.
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Esta terça-feira, duas "bombas super fortes" atingiram a cidade, de acordo com as autoridades locais. A vice-primeira-ministra da Ucrânia, Iryna Vereshchuk, anunciou no Telegram que serão abertos três corredores humanitários para a cidade vizinha de Zaporijia, que irão funcionar diariamente até se conseguir retirar toda a população.
Mas, afinal, por que é que a Rússia quer tomar Mariupol?
Abrir uma ligação terrestre entre a Crimeia e o Donbass
Apesar de ter uma dimensão pouco significativa no mapa, Mariupol é muito importante do ponto de vista estratégico, já que forma uma barreira entre a Rússia e a península da Crimeia, anexada por Moscovo em 2014. Se a Rússia tomar a cidade que é a base das forças armadas ucranianas, passará a ter uma ponte terrestre para a Crimeia, alargando significativamente o seu domínio territorial no leste do país. Além disso, o controlo da cidade acabaria com o comércio marítimo da Ucrânia, que gere mais de 80% de costa do Mar Negro.
Isolar a Ucrânia e estrangular a economia
Mariupol é o maior porto da região do Mar de Azov, parte do Mar Negro, e um importante polo industrial de siderurgia e reparação naval do país. As maiores fábricas do setor metalúrgico estão sediadas nesta cidade — a Azovstal, uma das maiores empresas de laminação de aço da Europa, foi quase totalmente destruída num bombardeamento russo na semana passada.
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Adicionalmente, é um eixo essencial para as exportações da Ucrânia. Dali saem ferro e aço, maquinaria pesada, carvão e cereais para países da Europa e do Médio Oriente, como Itália, Líbano e Turquia. Numa economia já fragilizada pelo contexto de guerra, a queda de Mariupol seria catastrófica para o país.
Instrumentalizar o território a favor da propaganda
A Rússia tem vindo a culpar insistentemente o batalhão Azov pela morte de civis e pela destruição em Mariupol. O grupo paramilitar de extrema-direita tem usado esta cidade como base e, embora forme apenas uma pequena parte das forças de combate ucranianas, tem sido uma ferramenta útil para a propaganda do Kremlin. Recorde-se que Moscovo alega estar a realizar uma “operação militar especial” com vista à “desnazificação” da Ucrânia.
Nesse sentido, esta milícia tem sido utilizada para justificar o envio de soldados russos para o país vizinho. Mas a propaganda pode ir mais longe, se a Rússia conseguir capturar alguns membros do batalhão com vida. É provável que sejam mostrados nos meios de comunicação social estatais para reforçar a guerra de informação em curso e desacreditar o governo ucraniano.
Adquirir controlo de “terras historicamente russas”
A par da importância estratégica, Mariupol tem uma forte carga simbólica aos olhos dos russos. Em 2014, aquando da crise na Crimeia que se estendeu a algumas partes do Donbass, resistiu a uma breve ocupação das forças pró-russas. Posteriormente, após a Ucrânia ter perdido a capital da autoproclamada república de Donetsk, foi a cidade que recebeu o maior número de deslocados internos das zonas ocupadas. Em 2019, eram mais de 96 mil.
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Além de estar no território reivindicado pelos separatistas, cuja independência foi reconhecida por Moscovo pouco antes da invasão, Mariupol integra a 'Nova Rússia', designação usada na Rússia imperial do século XVIII para o território situado na costa oriental e meridional da Ucrânia, ao largo do Mar Negro. Aquilo que, na perspetiva de Vladimir Putin, são “terras historicamente russas”.
Dissuadir os ucranianos de combater noutras cidades
Mariupol tem demonstrado uma resistência feroz face à invasão russa. A sua captura teria um grande impacto na moral dos dois lados, já que seria a primeira grande cidade a cair depois de Kherson — localidade portuária que teve uma defesa menos aguerrida devido à menor importância a nível estratégico. A Rússia sairia reforçada perante a sua população, pois poderia mostrar progresso.
A Ucrânia sofreria um duro golpe a nível económico, militar e moral, que poderia ser usado por Moscovo para dissuadir as forças ucranianas de oferecer resistência noutras partes do país e, assim, evitar o mesmo desfecho.