Parabéns, doutor Kissinger!
Nos 100 anos de Henry Kissinger, há celebrações como obituários apologéticos de um exemplo vivo de um criminoso de guerra volvido sábio velhinho. Mas a história não o absolverá.
© Créditos: Daniel Karmann/dpa
Um velhinho de cabelos brancos, bigodinho aparado, o olhar meio perdido, sentado numa cadeira de rodas. Aos 85 anos, incapaz de se vestir e arranjar sozinho. Com notórias e acentuadas perdas de capacidades físicas e mentais. Não podia, claro, enfrentar um julgamento num tribunal em Londres por violação de direitos humanos. Tão frágil e perturbado que os médicos aconselharam-no a regressar a casa.
À chegada a Santiago, diante de uma multidão que o aplaudia no aeroporto, uma banda tocava e o chefe das Forças Armadas estava pronto para o abraçar. E o velhinho de cabelos brancos numa cadeira de rodas, demasiado frágil para ser julgado por crimes contra a humanidade numa das mais violentas ditaduras da América Latina, levantou-se, seguro, e caminhou.
Ao contrário do general Augusto Pinochet (já falecido), um dos grandes amigos que a história teve a felicidade de colocar no seu caminho, o diplomata, antigo conselheiro para a Segurança Nacional e ex-Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, está de óptima saúde. Faz 100 anos a 27 de Maio e até vai poder comer bolo no seu aniversário.
A capa da revista The Nation da semana passada era exemplar: numa ilustração de Steve Brodner, Kissinger está de mãos levantadas como se viesse em paz, óculos de velhinho sábio, um sorriso rasgado diante de um bolo com 100 velas. E uma fatia pelo Cambodja, Vietname e Laos, outra por Timor-Leste, outra pelo Chile, outra pelo Irão, pelo Chipre e pelo Bangladesh. É um bolo vermelho-sangue, a cobertura escorre pelas paredes da história, mas parece ter sabor a morango.
"Henry Kissinger, criminoso de guerra – ainda à solta aos 100 anos", titula a The Nation, com dois artigos nada abonatórios sobre o centenário: um sobre o "dedo" de Kissinger no escândalo de Watergate e a destruição do Cambodja para forçar um acordo com Hanói; outro sobre o golpe do Chile e o abraço a Pinochet. Dois casos paradigmáticos em que a "realpolitik" de Kissinger, tão vangloriada nas escolas liberais de Relações Internacionais, foi "necessária" para manter a ordem do mundo segundo a qual ainda hoje vivemos, a ordem do caos e das intervenções externas, à força da bomba, do golpe ou da alta finança, a ordem que se mantém intacta com um rasto de destruição e sangue de décadas, coroada por um Nobel da Paz em plena Guerra Fria.
"Creio que devemos entender a nossa política – que, por mais desagradáveis que eles ajam, este governo é melhor para nós do que Allende foi", disse Kissinger aos seus agentes diante de relatos de atrocidades e violações de direitos humanos após o golpe do Chile. Em Junho de 1976, em Santiago, Kissinger disse a Pinochet: "A minha avaliação é que você é uma vítima de todos os grupos de esquerda em todo o mundo. (…) O seu maior pecado foi ter derrubado um governo [de Allende] que se estava a tornar comunista."
Aguardamos, portanto, os festejos deste centenário apaziguadores de consciências, que nos vão mostrar o "lado humano" de Kissinger, dos planos para bombardear Cuba (ou até Portugal, no PREC) ao apoio à "Guerra Suja" de Videla, na Argentina; da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia à ascensão dos Khmer Vermelhos no Cambodja.
Uma investigação da The Intercept, cruzando materiais desclassificados dos arquivos norte-americanos e testemunhos de sobreviventes, mostrava esta semana que a administração de Nixon, com Kissinger, bombardeou "até ao fim" o Cambodja entre 1969 e 1973 (ano do tal prémio Nobel), matando mais de 150 mil civis, seis vezes mais o número de civis mortos em ataques norte-americanos Afeganistão, Iraque, Líbia, Paquistão, Somália, Síria e Iémen nos primeiros 20 anos da "guerra ao terror".
"É possível traçar uma linha desde o bombardeamento do Cambodja até ao presente", diz Greg Grandin, autor do livro "Kissinger’s Shadow" (A Sombra de Kissinger). "As justificações secretas para bombardear ilegalmente o Cambodja tornaram-se o modelo para as justificações dos ataques de drones e da guerra permanente. É a expressão perfeita do círculo ininterrupto do militarismo americano."
Com o passar do tempo, e o desaparecer de vozes que ainda se lembrarão dos mortos do Cambodja, de Timor ou do Chile (e do Vietname que, convém não esquecer, venceu a guerra), todas elas tão velhinhas como Kissinger, mas com menos protagonismo nas tournées de conferências internacionais para nos "explicar a Weltanschaüng" (a sua "visão do mundo", segundo David Andelman), Kissinger emerge quase como um lúcido, sem falinhas mansas nem frases de efeito. Um falcão, sim, mas sem penas. A ele ninguém lhe exigiu que pedisse desculpas pela história. Mas a história não o absolverá.
Porque uma coisa muito certa nos ensinou: "Os Estados Unidos não têm amigos nem inimigos permanentes, só interesses", disse. Num mundo hoje amnésico, como ainda esta semana se viu com um G7 reunido em Hiroshima e que, 78 anos após a catástrofe nuclear, continua a comprar, vender, fornecer armas sempre a jogar com a nossa vida no fio da navalha, aqui está alguém aos 100, que, contra tantos de nós, só defendeu os seus.