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Os valores da Europa e do Ocidente

Quando escutamos os repetidos apelos de Zelensky a uma adesão rápida à União Europeia, bem como as suas solicitações à protecção da NATO, parece que recuamos no tempo, até à chamada Guerra Fria, das décadas de 1960 e 1970.

A Teoria da Justiça de John Rawls (esquerda) foi questionada pelo dissidente russo Alexander Solzhenitsyn (direita)

A Teoria da Justiça de John Rawls (esquerda) foi questionada pelo dissidente russo Alexander Solzhenitsyn (direita) © Créditos: Harvard University Press/Anefo/DR

Uma coisa esta guerra, sem fim à vista, parece ter ajudado a recuperar. É que já há muito não se ouvia falar com tanta certeza – a não ser, talvez, na insípida linguagem técnica dos eurocratas de Bruxelas – dos valores europeus. A Europa e, por tabela, o Ocidente parecem estar de volta.

No fundo, trata-se de fazer valer a imagem e a capacidade de atracção do mundo industrializado, desenvolvido, com a suas democracias parlamentares. Foi este modelo de desenvolvimento económico e de democracia que o politólogo Francis Fukuyama, em finais da década de 1980, disse representar o fim da história. E todas as outras sociedades aspiravam a convergir nesse modelo.

As reacções foram imediatas: por um lado, Fukuyama não entrava em linha de conta com o legado imperial e colonial dos sistemas políticos ocidentais, os quais tinham desencadeado ondas de violência e de desigualdade a uma escala planetária; por outro lado, em tempos pós-modernos, não atendia às diferentes ordens sociais, nem às múltiplas identidades, reduzindo os processos de mudança social à grande convergência num único modelo, o ocidental.

Vai longa a refrega, um tanto ou quanto surda, que opôs o discípulo ao mestre. Fukuyama, na altura da queda do Muro de Berlim, a que se seguiu a dissolução da União Soviética, anunciara que o Ocidente tinha triunfado. Insista-se: o modelo político e económico ocidental, sem ser perfeito, era o melhor possível e o que tinha mais capacidade atractiva, a uma escala planetária.

A essa tese, difusionista e triunfalista do Ocidente, um outro politólogo, Samuel Huntington, mentor de Fukuyama na Universidade de Harvard, respondeu com uma argumentação bem diversa. Para ele, o que mais contava não eram tanto os modelos políticos e económicos, da democracia e do desenvolvimento, que dificilmente podiam ser difundidos ou impostos a uma escala global. O que estava em causa eram, sobretudo, as clivagens religiosas e identitárias, entendidas também a uma escala planetária. O Choque de Civilizações, título do seu livro, resultou dessas mesmas fracturas.

No médio prazo, pelo menos nos centros de tomada de decisão norte-americanos, Huntington ganhou o debate – contra o que propusera o seu discípulo – , conforme acabou por demonstrar o 11 de Setembro de 2001. Passou, assim, a justificar-se a Guerra ao Terror, isto é, ao chamado fundamentalismo muçulmano.

Contudo, quando hoje escutamos os repetidos apelos de Zelensky, presidente da Ucrânia, a uma adesão rápida à União Europeia, bem como as suas solicitações à protecção da NATO, parece que recuamos no tempo, ainda mais para trás, até à chamada Guerra Fria, das décadas de 1960 e 1970.

De um lado, encontra-se o projecto de restaurar o antigo Império Soviético, para não ir mais longe e tomar a sério as palavras de Putin em relação à Grande Rússia dos Czares. Enquanto, do outro lado, está uma espécie de nebulosa, onde se misturam a União Europeia com a NATO, os valores europeus com os da democracia ocidental, sem esquecer os Estados nacionais e o nacionalismo.

Contudo, na chamada guerra de informação que também está em curso, a justificação de que a invasão russa tem em vista uma “desnazificação” da Ucrânia remete para o período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Foi, então, que mais intensamente se anunciou o fim dos fascismos, embora tal não tivesse acontecido em Portugal e Espanha.

A questão que, a partir deste mergulho de meio século no tempo, se coloca é a de saber a partir de que bases podemos hoje reconstituir a crença nos valores europeus e ocidentais. De um ponto de vista das grandes obras, capazes de fornecer o máximo da consciência possível em relação ao mesmo património de valores civilizacionais, são muitas as escolhas e os exercícios de leitura comparada que podem ser propostos. O importante é perceber como, no seu conjunto, elas nos ajudam a compreender melhor os termos da revalorização da Europa e do Ocidente com que, hoje, nos debatemos.

Arriscaria dizer que as origens intelectuais do movimento político que está em curso têm de ser procuradas na década de 1970, se não antes. Mais uma nota: o mergulho nas origens de uma certa ideia de Europa – longe de excluir do seu horizonte conflitos, clivagens e práticas de violência – permite verificar a permanente “condição dividida” da Europa (na expressão aplicada por Tony Judt em relação à França, O Peso da Responsabilidade: Blum, Camus, Aron e o século XX francês, Edições 70, 2018, p. 30).

Começando por uma obra central. A Teoria da Justiça de John Rawls conheceu uma primeira edição em 1971. Preparada durante décadas, na tranquilidade de Harvard, a obra já estaria desactualizada no momento da sua publicação. A este respeito, são escassos os vestígios que nela se encontram: das lutas antirracistas desencadeadas por Martin Luther King; dos movimentos estudantis e respectivos conflitos geracionais, incluindo as novas culturas do corpo e da sexualidade, em ebulição desde a década de 1960; bem como dos modos de resistência à Guerra do Vietname.

O principal objectivo de Rawls era, antes de mais, o de construir uma teoria abstracta do contrato social. Porventura tão abstracta quanto capaz de ter uma validade universal, inspirada na filosofia política de Locke, Rousseau e Kant. Porém, apesar de muito abstracta, nessa mesma teoria projectava-se uma sociedade, bem ordenada e cooperante, que mais parecia ser uma representação das democracias e do Estado social redistributivo do Norte da Europa social-democrata. Na base dessa redistribuição, estavam os valores da liberdade e igualdade, dispostos segundo uma ordem prioritária. E, através de um exercício abstracto, competiria aos indivíduos, cobertos pelo chamado véu de ignorância, começar por escolher os princípios de uma justiça equitativa e redistributiva.

A teoria de Rawls tinha em vista estabelecer uma constituição, capaz de fazer valer os referidos valores. Nela, supunha-se uma redistribuição equitativa dos bens sociais, numa sociedade que não questionava a existência de propriedade privada, nem de um mercado livre. No entanto, a função principal dessa justiça redistributiva era a de fazer com que situações de desigualdade social pudessem ser admitidas, desde que os mais desfavorecidos ou carenciados daí pudessem retirar benefícios.

Todas as formas de oposição, de desobediência civil, de resistência ou de dissidência eram concebíveis, desde que não pusessem em causa o referido quadro constitucional que regulava a ordem social. O mesmo se passava com a necessidade de se ser tolerante com os intolerantes, desde que estes não pusessem em causa a mesma ordem constitucional. Enfim, a teoria da justiça proposta procurava acomodar a defesa dos interesses dos mais pobres ou menos beneficiados com um legalismo institucional, onde ficava estabelecida constitucionalmente a regulação e intervenção do Estado.

Como se articulou este modelo, que surgiu vinculado à noção de Estado nacional, à construção de uma ideia de Europa e do Ocidente? Poderá ele ser considerado uma espécie de “patriotismo constitucional” (segundo Jan-Werner Muller)? E, neste último caso, não estará Rawls mais próximo de Jürgen Habermas, do que as divergências que entre eles se declararam sugerem?

Mais: ao ordenar a liberdade antes da igualdade, Rawls apontou para uma categoria capaz de cobrir diversos modos de imaginar a autonomia humana e a soberania, indo da defesa dos direitos humanos aos do autogoverno e descolonização. Não será em torno da mesma categoria de liberdade que disputam, hoje, diferentes interpretações Amartya Sen e Francis Fukuyama?

Como resumiu o historiador indiano Dipesh Chakrabarty, preocupado com as alterações climáticas posteriores ao Iluminismo: “os filósofos da liberdade estiveram sempre e compreensivamente preocupados em saber como podiam os humanos escapar da injustiça, pressão, desigualdade ou mesmo uniformidade que sobre eles é imposta por outros humanos e os sistemas por eles fabricados” (Critical Inquiry, vol. 35, 2009, p. 208). Rawls seguiu o mesmo padrão, ao procurar construir uma teoria abstracta do contrato social.

A Teoria da Justiça de Rawls suscitou inúmeras respostas. A mais conhecida, talvez também a mais explícita, foi a de um dos seus colegas, Robert Nozick. Quanto menos Estado melhor, para que as sociedades pudessem preservar a liberdade dos seus cidadãos. Mais, segundo Nozick: era errado considerar que as sociedades se dividiam entre pobres e ricos entre privilegiados e carenciados; uma vez que as sociedades, longe de serem compostas por grupos em oposição, eram, isso sim, formadas apenas por indivíduos.

Existe, porém, um outro ataque à teoria de Rawls, no qual este nunca chega a ser nomeado. Foi preferido por Alexander Solzhenitsyn, em 1978, na própria Universidade de Harvard. Na base da argumentação do dissidente russo, estava uma crítica ao Ocidente cujos valores lhe pareciam ter sido reduzidos a uma mera expressão legalista – contratual, entenda-se, encimada por um Estado regulador, distributivo – sem chama, nem carisma. Contra esta secura racionalista, Solzhenitsyn não teve dúvidas em lembrar as forças religiosas medievais...

Em suma, Solzhenitsyn, se denunciou com veemência os horrores estalinistas, não escondeu, mais tarde, a sua simpatia pelo franquismo em Espanha ou pelo regime de Pinochet no Chile. O seu exílio, por expulsão da antiga União Soviética, levou-o a viver no Ocidente entre 1974 e 1994. Porém, uma vez regressado à Rússia de Ieltsin apoiou a segunda guerra da Tchetchénia, solicitando a pena de morte para os independentistas. E, no final da vida, aproximou-se de Vladimir Putin, a quem reconheceu – profeticamente – as suas qualidades de liderança.

*O autor escreve ao abrigo do antigo AO.

Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto

Colaborou com o Público e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino (Edições 70).

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