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OPINIÃO: Os últimos dias da música moderna

NA RUA DA GRANDE CIDADE, por Hugo Guedes - Os Nirvana desapareceram há exactamente 20 anos, quando Kurt Cobain se suicidou com um tiro na cabeça no chamado “apartamento da sogra”, o pequeno quarto situado por cima da garagem na sua opulenta mansão em Madrona, um subúrbio de Seattle que ironicamente afixava à entrada um vistoso letreiro: “Zona livre de drogas”.

Não era o caso certamente da mansão dos Cobain, onde o vício da heroína não largava o pai (nem a mãe) da pequena Frances Bean, de 19 meses de idade. Kurt, que afirmava ter começado a consumir a droga para combater as suas terríveis dores de estômago, gastava nos últimos dias da sua vida mais de 300 euros por dia só para sustentar o vício – um facto que não é possível dissociar do trágico desenlace dos acontecimentos.

Cobain disparou o gatilho a 5 de Abril, mas o seu corpo com a cabeça esfrangalhada (a identificação policial teve de ser feita com recurso às impressões digitais) só foi encontrado a 8 de Abril de 1994, uma daquelas datas-charneira que todos os que eram jovens naquela altura lembram – “onde estavas quando soubeste?…”. Foi há duas décadas, o que em si já é um choque, porque elas passaram mesmo a correr.

O lado lírico (e há muito lirismo nas letras das músicas, que enterram o lado dramático e existencial debaixo de sucessivas camadas sónicas de guitarras e distorção) da história é bem conhecido e objecto de incontáveis homenagens: sobre os Nirvana já se escreveram biografias, já se fizeram filmes, centenas de discos, até um musical. Em Aberdeen, a cidade onde Cobain nasceu e que ele desprezava, há agora uma estátua lacrimejante do mito. Noutra pequena cidade onde viveu, foi instituído o “Dia de Kurt Cobain” – 10 de Abril, amanhã, o mesmo dia onde os Nirvana vão ser consagrados no Hall da Fama do Rock ‘n’ Roll juntamente com a banda mais pirosa de todos os tempos, os Kiss. E claro, tudo isto só pode fazer revolver no túmulo o anti-herói de 27 anos que sempre tinha sido um perdedor na vida, que não compreendia a formidável máquina de fazer dinheiro baseada nas suas canções, que não sabia e não queria lidar com a fama e adulação constantes. No dia em que os Nirvana chegaram pela primeira vez à capa da Rolling Stone Magazine, Cobain exibia orgulhosamente a sua t-shirt na foto que (na prática) anunciava a chegada ao estrelato daquela banda de três rapazes perdidos. Ali lia-se: “As revistas das grandes corporações continuam nojentas”.

A raiva genuína, e sobretudo o inegável talento, tornaram os Nirvana primus inter pares – os príncipes da geração X. Os gritos de Cobain continham em si o desespero, o abandono e a futilidade da existência, mas também as esperanças de uma mole humana com quem, nas sociedades ocidentais, compartilhavam a alienação. Claro que não era tudo, e ainda hoje Dave Grohl, então o baterista dos cabelos longos, insiste: “As pessoas leram a biografia, conhecem o contexto, é fácil imaginar que havia uma nuvem negra permanente a acompanhar-nos. Mas a verdade é mais complicada que isso – nós adorávamos fazer música”. O próprio Cobain começa o que viria a ser a sua última obra, In Utero, com a maior das ironias: “A angústia adolescente compensou bem – mas agora estou velho e aborrecido”.

Hoje sabemos mais: os Nirvana representam simultaneamente o pináculo e o canto do cisne da relevância da música moderna. Há 20 anos, um revólver estilhaçou o último dos movimentos geracionais – a revolução digital fez o resto. Hoje, vivemos num mundo musical completamente fragmentado, eclético, mesclado; há milhares de bandas, géneros, estímulos, gostos. Por muitos bilhetes para concertos de estádio que os grandes nomes ainda vendam, ninguém conseguirá – nunca mais – pegar numa bandeira e fazer toda uma geração acreditar que a música moderna pode ser mais que mero entretenimento. Essa ilusão já viveu os seus últimos dias.

Hugo Guedes