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Compra do Twitter

"O Pássaro está fora da gaiola"

Como o novo patrão Elon Musk planeia usar um dos mais poderosos instrumentos de fazer e desfazer democracias. Nervosismo em Washington e em Bruxelas, autocratas do mundo unidos.

Elon Musk, comprou a rede social Twitter por 44 mil milhões de dólares. O que é que esta compra implica?

Elon Musk, comprou a rede social Twitter por 44 mil milhões de dólares. O que é que esta compra implica? © Créditos: Adrien Fillon/ZUMA Press Wire/dp

Jornalista

Nesta quinta-feira, depois de semanas de avanços e recuos, foi anunciado que o controverso homem mais rico do mundo, Elon Musk, comprou a rede social Twitter por 44 mil milhões de dólares. A aquisição não é só memorável para o mundo dos negócios, terá implicações reais na vida das democracias de todo o mundo.

Para mostrar quem é o patrão, Musk, que adora um bom trocadilho visual, entrou na sede da tecnológica em São Francisco carregando um lavatório (sink, em inglês). O sentido perde-se na tradução, mas para os norte-americanos era clara a referência que Musk escreveu no seu Twitter: “Let that sink in” ou, em português, “habituem-se”.

O que Musk insinuava é que as mudanças que tinha prometido iam começar a acontecer. Enquanto ele levava o lavatório para as instalações, os diretores executivos limpavam as suas secretárias e saiam porta fora com os caixotes com os seus pertences pessoais.

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Na conta desta rede social de que agora é dono, Musk explicou que fez o negócio porque “é importante para o futuro da civilização haver uma praça de debate digital comum onde uma grande variedade de crenças possa ser debatida de forma saudável, sem o recurso à violência”.

Segundo Musk, o que está a acontecer é que as redes estão divididas entre a extrema esquerda e a extrema direita “o que gera mais ódio e divide as nossas sociedades”. “Na sua ânsia de obter clicks, grande parte dos media tradicionais alimentou e aproveitou-se destes extremos polarizados, porque acreditam que é o que lhes dá dinheiro, mas, ao fazê-lo, a oportunidade de diálogo perde-se”.

O que ele diz querer é que o Twitter seja uma nova ágora digital, civilizada e onde todos ouvem aquilo com que não concordam.

Tendo-se afirmado como um “absolutista da liberdade de expressão”, Musk condenou a decisão da anterior direção do Twitter, de banir perpetuamente o então ex-presidente dos EUA, Donald Trump de usar os seus serviços. Jack Dorsey, o co-fundador, e então presidente desta rede social, decidiu, após ser muito criticado por laxismo, fechar em definitivo a conta de Trump.

A decisão foi tomada após uma multidão ter atacado o Congresso, a 6 de janeiro de 2021, para impedir a confirmação de Joe Biden como presidente eleito. Todas as evidências apontavam para Trump como o instigador que através do Twitter incitava a violência. Cinco pessoas morreram nesse dia e mais quatro polícias suicidaram-se nas semanas que se seguiram.

Elon Musk, que planeia salvar a civilização de várias maneiras - incluindo com o seu projeto de colonizar Marte, através da sua SpaceEx - , não perdeu tempo a anunciar “The bird is free” (O pássaro está livre), mais um trocadilho, uma vez que o símbolo do Twitter é um pássaro azul, significando que a liberdade de expressão está de volta.

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Aviso da UE: aqui o pássaro voa baixinho

Em 2024, os Estados Unidos voltam a eleger de novo um presidente. E, em Mar-a-Lago, a sua gaiola dourada na Florida, Donald Trump sonha com o regresso a Washington D.C. O líder do partido republicano saudou a compra, tendo já percebido que dentro de pouco tempo poderá regressar à rede de 296 milhões de utilizadores para alimentar a sua campanha de retoma do poder, ou de puro incitamento ao ódio, como lhe chamam alguns. O momento é particularmente sensível para a política norte-americana, a menos de duas semanas das eleições intercalares para o Senado e Congresso.

Mas não é só nos EUA que a ascensão de Musk a dono de um dos mais poderosos instrumentos de fazer e desfazer democracias está a preocupar. Em Bruxelas também há nervosismo. O comissário do Mercado Único, Thierry Breton, também usou o Twitter para avisar Musk que na Europa o pássaro que o absolutista da liberdade de expressão acaba de libertar “irá voar de acordo com as nossas regras”.

Breton refere-se à Lei dos Serviços Digitais, que quando entrar em vigor na União Europeia - o mais tardar em janeiro de 2024, em todos os 27 países - obrigará as redes sociais a vigiarem e eliminarem cuidadosamente o discurso do ódio.

Em maio deste ano, Breton encontrou-se com Musk em Austin, no Texas, na maior fábrica de Teslas e avisou-o, na altura em que Musk já tinha proposto a operação de compra, que na UE o Twitter tinha que obedecer às novas regras “da casa”. Musk replicou num vídeo muito cordial que publicaram juntos: “Foi uma ótima discussão. Concordo bastante com tudo o que disse. Acho que temos a mesma linha de pensamento”. E Breton, agora republicou essa troca amistosa, mas sob a forma de aviso.

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“Foi imoral banir Trump”, diz Musk

Apesar de tudo, Musk temperou nas últimas horas o seu discurso e avisou, para acalmar a ansiedade em Washington, que o Twitter não irá tornar-se “um inferno onde qualquer um dirá não importa o quê”.

Numa entrevista já depois da aquisição, Musk foi questionado se vai deixar regressar Trump. “Acho que a decisão de o banir não foi correta, alienou uma parte do país, e finalmente não o impediu de ter uma voz”. De facto, Trump criou a sua própria rede, a Truth Social, frequentada apenas pelos mais radicais apoiantes das suas ideias. E concluiu Elon Musk: “Acho que irei reverter a proibição. Para ser claro, acho que foi uma decisão moralmente errada e extremamente idiota”. E insiste o entrevistador: “Mesmo depois do ataque ao Capitólio, acha que foi um erro removê-lo?”.

Na Truth Social, Trump escreveu: “Estou muito contente que o Twitter esteja agora em mãos sensatas”, mas disse que, por enquanto, e apesar de gostar de Elon, vai continuar ativo na sua plataforma.

Musk advoga uma atuação com delicadeza: “Se há tweets danosos devem ser eliminados ou tornados invisíveis e uma suspensão temporária é a adequada”. Exemplo de que irá administrar penas leves é a resposta que deu, também na sua conta, à filha do amado e odiado psicólogo canadiano Jordan Peterson que foi expulso do Twitter depois de ter atacado Elliot Page, o ator transgénero que começou a sua carreira em Hollywood como Ellen. Musk respondeu à filha de Peterson que “qualquer pessoa suspensa por razões menores ou duvidosas será libertada da cadeia do Twitter”.

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Um clima quente nos EUA a dias das eleições intercalares

Na tarde de sexta-feira, depois de a direção do Twitter já ter sido despedida, Musk twittou que iria criar um “conselho de moderação de conteúdos” e que nenhumas iniciativas sobre mudanças serão tomadas antes deste órgão entrar em funções.

No influente jornal Politico, que se debruça sobre a política norte-americana, refere-se o perigo de a compra “estar a libertar impulsos sombrios na conversação americana”, a apenas 11 dias das eleições para o Senado e Congresso . Um instituto que segue as tendências do discurso online, o The Network Contagion Research Institute, revela que detetou uma subida de insultos raciais nas 12 horas imediatas ao anúncio da chegada de Musk ao Twitter.

Não relacionado com o Twitter, mas prova do clima de violência que está a passar de latente a real, foi o ataque ao marido da líder democrata do Congresso, Nancy Pelosi, na passada sexta-feira. Um homem entrou com um martelo na casa do casal em São Francisco gritando ‘onde está Nancy?’. Acabou por fraturar o crânio de Paul Pelosi. Nancy Pelosi tinha sido diretamente visada pela multidão de 6 de janeiro de 2021 que queria matá-la.

Em maio, no Twitter, Musk considerou que o Partido Democrata “é o partido da divisão e ódio”. Além de ser agora o dono deste megafone, Musk é também a terceira personalidade mais seguida na plataforma, a seguir a Barack Obama e ao cantor Justin Bieber.

E embora o que diga seja sempre alvo de discussão - os seus 108 milhões de seguidores nem sempre o poupam-, é pouco claro que ele se abstenha de intervir nas eleições que se avizinham e nas outras, mais decisivas, em que Trump poderá sair de Mar-a-Lago e entrar no Air Force One em direção à casa Branca.

Um Twitter com várias salas de acordo com o nível de malevolência

Para evitar que a violência se propague por todo o Twitter, Musk tem uma ideia para criar várias camadas, como se fosse salas de jogos, ou os contentores estanques dos submarinos. Ou como as salas de cinema onde há conteúdos anunciados como violentos, e outros onde a conversa é mais civilizada e aceitável para todos os públicos. Assim cada um sabe ao que vai. É uma ideia que a sua equipa legal e de criadores de conteúdos está a examinar de momento.

Mas não é só a população dos seguidores de Trump nos EUA - os que ainda usam os bonés vermelhos MAGA (Make America Great Again) das presidenciais de 2020 - que suspiram pelo regresso do 45º presidente dos EUA ao espaço liberalizado do Twitter. O líder autocrático húngaro Viktor Orbán entrou nesta rede social no início de outubro e dois dias depois escrevia: “Há uma questão na minha mente: Onde está o meu bom amigo, Donald Trump?”.

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Na lista das personagens que o primeiro-ministro húngaro segue encontram-se a recém eleita líder da extrema-direita italiana Georgia Meloni, o ditador turco Erdogan, o presidente brasileiro também da extrema direita Jair Bolsonaro, e aquele que é um atual ideólogo anti-movimentos de libertação social Jordan Peterson, que está em vias de poder reativar a sua conta.

Orbán também adiantou que só Trump poderia acabar com a guerra na Ucrânia, uma vez que só ele tem aberta a porta do Kremlin para falar tu-cá-tu-lá com Vladimir Putin. E que o ocidente devia dar-lhe essa missão.

O que vai sair deste novo Twitter, nestes tempos perigosos – mesmo com diferentes caixas de ressonância com vários níveis de discurso, e um conselho de moderação de conteúdos (uma entidade que existe nas plataformas da Meta, mas é vista como uma fachada) – ainda está por ver. Mas, para já, parece que todos os céticos da democracia estão a rufar os seus tambores.