No meio do dilúvio que tornou o Carnaval tragédia
Na noite de sábado, uma enorme tempestade abateu-se sobre o litoral norte do estado brasileiro de São Paulo, no Brasil. Uma boa parte do país tinha-se juntado aqui para celebrar o Carnaval. E depois veio a chuvada. Derrubou árvores, morros e casas. Há 37 mortos, dezenas de desaparecidos e centenas de desalojados. Reportagem em terreno instável.
© Créditos: Ubatuba Civil Defense/AFP
(Por Ricardo J. Rodrigues, em Ubatuba)
Sábado tinha sido um dia estranhamente húmido. Mesmo os caiçaras, nome porque é conhecida a comunidade piscatória do sul do Brasil, estranhavam o abafo que tinha tomado conta da tarde. Na praia do Cedro, uma das mais belas da costa de Ubatuba, litoral norte de São Paulo, Jair apontava solução: "Melhor encher a adega que aqui só tem uma maneira de entrar ou sair: de barco."
O homem construiu negócio no vaivém marítimo, trouxe um gerador elétrico para a praia e uma geladeira para refrescar cerveja. E o Carnaval, época em que metade de São Paulo e Rio de Janeiro desaguam na praia, era garantia de bolso cheio. "Esse calor todo vai trazer tempestade", avisava Jair. "Escreve o que eu digo."
E veio mesmo, com uma força inimaginável. A chuva começou a cair forte ao escurecer, e intensificou-se a partir da meia noite. "Por volta das três da madrugada começou uma tempestade com relâmpagos e trovões medonhos, que não deu tréguas até às cinco. Eu só pensava que podia cair uma pedra em cima da casa, ou uma árvore, ou a própria estrutura da habitação desmoronasse", conta Olívia Jock, paulistana que veio passar os feriados com amigos na casa de família. Foi precisamente isso que aconteceu a muitos dos seus vizinhos da Brava de Fortaleza, uma península escarpada de Ubatuba.
A Defesa Civil brasileira já veio dizer que esta foi a mais intensa chuvada registada na história do país. Em São Sebastião, também no litoral norte de São Paulo, caíram 627 litros de água por metro quadrado num só dia – metade da pluviosidade que o município costuma registar em todo o mês de fevereiro.
A água era tanta, e vinha com tanta força, que rapidamente começaram a rolar morro abaixo as ramadas das árvores, depois os pedregulhos, e depois a própria terra, que não tinha mais como se agarrar.
Em menos de um instante, a montanha que até aí era um explosão verdejante, abria enormes cicatrizes vermelhas, e um fluxo barrento precipitava-se, cada vez mais intenso, em direção à baía. Há quarenta pessoas desaparecidas e 37 que perderam a vida no deslize. No total, 1.700 ficaram desalojadas e mais de 700 não têm teto para onde voltar.
Vista aérea do distrito de Juquehy, em São Sebastião, após as fortes chuvas que provocaram pelo menos 37 mortos. © Créditos: Fernando Marron/AFP
Ouviam-se gritos de socorro por todo o lado, sempre que os trovões se calavam. Mas quem é que conseguia sair de casa com aquela maré toda que invadira as ruas, e com aquela eletricidade toda que corria desordenada no céu? Um rapaz de sete anos morreu em Ubatuba, soterrado no quarto onde dormia.
Em São Sebastião, onde há muito as casas tinham começado a galgar o morro, perderam-se 36 vidas – que podiam ter sido 38, não fosse a mãe e a filha que os vizinhos conseguiram resgatar dos escombros. E era dessa salvação heroica que toda a gente falava no dia seguinte. No meio da escuridão da tragédia, a humanidade encontra sempre um raio de luz onde se agarrar.
Pesadelo no paraíso
Domingo acordou belíssimo – e isso soava quase a ofensa, como é que o sol se atrevia a aparecer radioso depois de todo o infortúnio que o breu tinha imposto? Quando os dias nascem assim esplendorosos, a baía da Brava da Fortaleza torna-se habitualmente postal do maravilhamento brasileiro, cada fotógrafo amador a tentar capturar o cliché dos morros plenos de palmeiras e bananeiras a precipitar-se para as águas que metade do povo diz turquesa e a outra metade diz esmeralda.
Mas não agora. Agora os montes estavam descascados e a água castanha de todo o barro e toda a vida que tinha deslizado na enxurrada. Não havia nada de belo, exceto um dia magnífico.
Na Barra do Sahy, uns quilómetros a sul, os corpos que tinham ido na enxurrada de São Sebastião começavam a aparecer na costa. Mas as estradas estavam todas cortadas, por isso o Exército mobilizou helicópteros para o resgate – primeiro dos cadáveres, depois das comunidades que se viam isoladas.
Os pedidos de ajuda para as linhas telefónicas multiplicavam-se e o governo do estado de São Paulo foi rápido a declarar estado de calamidade em toda a região. Pouco mais tarde, o presidente Lula viria a público anunciar a libertação de fundos de apoio às populações afetadas e pedir a colaboração entre todas as autoridades.
Ninguém há de ter ouvido Lula falar no morro de Ubatuba, porque a eletricidade falhou assim que caíram os primeiros relâmpagos. Mas a mensagem há ter passado de alguma forma, porque ao longo de domingo o que se viam eram grupos de vizinhos unidos na limpeza dos estragos.
E, nessa hora, aquilo que se assistia era de uma comunhão comovente. Gente de todos os estratos sociais, somando diferentes níveis de perda, agarrados a enxadas e baldes para esvaziar as ruas e as estradas e as propriedades do impossível.
Entre domingo e segunda, não havia caminho que não estivesse barrado no litoral norte. Não havia quem conseguisse entrar e não havia quem conseguisse sair. A rede de wifi sobreviveu miraculosamente, fazendo com que se criassem duas redes rápidas – uma para avisar as famílias de que se havia sobrevivido à tragédia, outra para sondar das necessidades dos vizinhos igualmente presos no paraíso. Então, na noite de domingo, houve este pequeno milagre no morro: não faltou açúcar nem carne em nenhuma casa.
Plano de evacuação
Com a eletricidade em baixo, ligavam-se os carros que tinham sobrevivido à derrocada para carregar telemóveis. Mas iam ficando escassas as baterias e os depósitos de gasolina dos veículos. Muitas estradas começavam a ficar transitáveis, e o povo começou a sair de casa. No centro da Brava da Fortaleza, as mulheres juntavam-se de um lado do mercadinho e os homens do outro.
Lamentavam todos a má sorte, mas também tentavam ver o lado positivo. "Nunca vi uma coisa assim. Mas se isso tivesse vindo no início do verão, tínhamos um montão de gente que ia morrer de fome no inverno. Pelo menos a tragédia chegou no fim da temporada", comentava dona Palmira, dona do comércio.
Aos poucos iam chegando os camiões da companhia elétrica para reparar os postes que haviam caído. Enormes tratores tentavam subir montes sem sucesso e iam escavando caminho como conseguiam. Avisavam o povo com realismo – a luz dificilmente voltaria em menos de uma semana, o barro ia escurecer as águas do paraíso durante mais tempo do que isso, e agora a prioridade era abrir rotas para que toda aquela massa de gente tivesse por onde escapar.
O que haveria por acontecer – multiplicando por sete o tempo de caminho, com paragem garantida em todos os cantos com vista para o desespero.
Nessa noite, no alto do morro onde a casa de Olívia Jock resistiu ao impossível, juntaram-se vizinhos de distintas casas. Já quase nenhuma bateria de telemóvel resistia, agora era o povo que ficara isolado com o dilúvio – e ele só. Alguém arranjou um cotos de velas, acendeu-se o lume e pôs-se a carne na grelha.
A vista para o vale era larga, mas nem um ponto de luz se conseguia evidenciar. Então ouviram-se os primeiros acordes de uma viola, e de repente a sombra fez-se música, e uma balada de Tom Jobim desceu o morro mais rápido que a água: "Tristeza não tem fim, felicidade sim."