Editorial. A guerra civil americana
A velha frase filosófica que a história acontece em tragédia e repete-se em comédia pode ser agora invertida e a tragédia está por acontecer em novembro.
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Treze pessoas foram detidas no estado do Michigan, acusadas de planearem atacar a sede do governo local e pretenderem raptar a governadora democrática Gretchen Whitmer.
Os suspeitos treinavam há meses com explosivos e armas de fogo para se prepararem para realizar os seus intentos. Nos planos do grupo, 200 homens armados iam tomar o Capitólio de Lansing, sede do Governo do estadual, e tomar reféns e julgar e sentenciar a governadora democrata.
Esta conspiração foi desmantelada a menos de um mês das eleições presidenciais, que se realizam a 3 de novembro, num país dividido e radicalizado. Trump é simultaneamente o Presidente dos EUA com menor taxa de aprovação média, mas com a maior estabilidade no suporte dos seus apoiantes.
A constante radicalização e agressividade do seu discurso constrói um país em que não existem ideias comuns da realidade: os apoiantes de Trump acreditam viver num planeta diferente do resto da população. Apenas 7% dos democratas têm uma valorização não negativa do mandato do atual ocupante da Casa Branca, contra 84% dos republicanos. Uma realidade que fez Donald Trump dizer, quando se candidatou a primeira vez, "podia dar um tiro a uma pessoa a meio da Quinta Avenida e não perderia nenhum voto."
As repetidas declarações do atual Presidente que não aceitará um resultado eleitoral que não lhe seja favorável indiciam uma situação de conflito dificilmente controlável depois de 3 de novembro. Grande parte do sistema político americano se baseia na aceitação das derrotas por parte do candidato com menos grandes eleitores no Colégio Eleitoral. Num cenário em que os resultados nas urnas não sejam conclusivos para a atribuição dos mandatos, e em que estes dependam dos muitos votos de correspondência existentes, Trump terá a tentação de se declarar vencedor sem a contagem deles.
Recorde-se que, já em 2002, Bush foi proclamado vencedor, fruto de uma disputa judicial que impediu a recontagem dos votos da Florida, que decidiram a maioria no Colégio Eleitoral. Nessa altura os democratas, preferiram acatar a decisão de uma instância judicial controlada pelos republicanos que colocar em causa o sistema político e eleitoral do país.
Desta vez os democratas não estão disponíveis, dada a gestão extremista de Trump, de aceitar qualquer fraude eleitoral. Segundo as sondagens, 64% dos eleitores de Trump pretendem votar presencialmente contra apenas 28% que decidiram votar por correspondência; um valor que se quase inverte em relação aos eleitores democratas.
Calcula-se que esta eleição, dada a pandemia, terá um valor recorde de votos por correspondência, ultrapassando os 5,6 milhões de eleitores que exerceram o voto dessa forma há quatro anos.
Se a não aceitação dos resultados das eleições, por parte de Trump, configura uma novidade perigosa; o dificultar a votação é há muito uma política continuada dos republicanos, para tentarem impedir que as minorias negra e hispânica que votam esmagadoramente nos democratas possam exercer o seu direito de voto.
Segunda a Constituição dos EUA, a passagem de testemunho entre vencedores e vencidos das eleições presidenciais dá-se até janeiro, altura que o Presidente anterior não pode continuar na Casa Branca. Num país profundamente dividido, em que os apoiantes dos dois campos veem duas realidades distintas que quase não se tocam, em que um lado não admite poder ser derrotado nas urnas, e com milhares de homens armados em milícias de extrema-direita, a conspiração de Michingan pode ser uma brincadeira de crianças, em relação ao que se aproxima.
A velha frase filosófica que a história acontece em tragédia e repete-se em comédia pode ser agora invertida e a tragédia está por acontecer em novembro.