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OpiniãoA fava

Construir a casa pelo telhado

No dia em que me levou ao bosque dos seus antepassados, deu-me uma lição valiosa sobre as propriedades medicinais de diferentes cascas e resinas.

Grande Repórter

A ponta do Acajatuba é um ponto de peregrinação para os povos indígenas do Alto Amazonas. É na verdade uma península que entra água dentro numa saliência do maior rio do planeta e que serve de símbolo para toda a natureza selvagem desta parte do globo.

É uma explosão verdejante da floresta tropical, é simultaneamente húmida e quente, paradisíaca e infernal – e serve de abrigo a tatus e onças, macacos e tucanos, além de ser terra sagrada para um par de povos que insistem em viver na selva.

Percorri-a há dias guiado pelo Lucas, um brasileiro de olhos rasgados e o sotaque do povo tupi ainda preso aos lábios. É neto de portugueses e índios, e por isso é caboclo. A norte de Manaus, a capital da Amazónia, quase toda a gente responde pela mesma mestiçagem.

As gentes ribeirinhas da mais profunda de todas as manchas verdes que o planeta azul concebeu identificam-se assim mesmo. E, de certa forma, ser caboclo é ter orgulho de um lado e outro da História.

O avô de Lucas era um homem severo, garante ele. Veio aqui parar na primeira metade do século XX na febre seringueira – na verdade, milhares de outros homens como ele rumaram até aqui à procura da seiva dessa mítica árvore das patacas, que permitiu o fabrico de pneus e todo o tipo de borracha.

A maioria ficava por uma ou duas campanhas e cedo abandonava o Amazonas, normalmente de bolsos cheios, mas quase sempre pelo desgaste da malária. Mas não o pai do pai de Lucas. Esse decidiu ficar.

Perdeu-se de amores por uma índia do Acajatuba e foi aí que se instalou até ao derradeiro dia. Mesmo que aquela floresta lhe fosse desconhecida, foi-lhe aprendendo as manhas. Em boa verdade, o 'portuga' converteu-se ao Amazonas.

Ainda assim, enquanto entrávamos fundo no território, Lucas garantiu-me que ele preservava manias de europeu, e se um filho viesse de tronco nu ou chapéu para a mesa, se comesse com as mãos em vez de usar os talheres, recebia de certeza castigo de mão pesada.

O meu amigo bebeu de ambas as tradições – janta sentado de garfo e faca, mas também conhece as propriedades de cada árvore e de cada raiz e de cada baga da floresta. No dia em que me levou ao bosque dos seus antepassados, aliás, deu-me uma lição valiosa sobre as propriedades medicinais de diferentes cascas e resinas. E explicou-me como os madeireiros as procuram para isso mesmo, e abrem clareiras inteiras em bosques que ele se habituou a ver sagrados.

De repente parámos em frente a uma árvore bizarra. Pareciam cinco árvores, e em todos eles o tronco era bem mais grosso no topo do que junto à raiz. O Lucas explicou-me que era uma árvore-apui que tinha nascido no alto de outra árvore e as raízes foram crescendo ao longo de séculos em direção ao chão. E contou-me que era monumento sagrado para as tribos da região, e por isso intocável.

Mas o que tornava aquela obra da natureza verdadeiramente genial aos olhos do meu amigo era a maneira como o seu avô 'portuga' a tinha definido. Uma casa que começou pelo telhado, dizia o velho, depois de ter passado uma vida inteira a ouvir que uma habitação não se ergue senão por fundações e paredes.

Venha de onde venha, o homem há de sempre encontrar uma impossibilidade à qual prestar vénia e adoração. Na Amazónia, é um apui. Ou uma casa construída pelo telhado.

(Grande Repórter)