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Colômbia. Comandante Jesús Santrich, guerrilheiro das FARC, foi abatido

Em agosto de 2020, o conhecido guerrilheiro deu uma entrevista ao Contacto que voltamos a publicar.

© Créditos: Ibai Trebiño

Bruno Carlos Amaral De Carvalho

Em entrevista exclusiva ao Contacto, em agosto de 2020, Jesús Santrich, um dos principais líderes das FARC falou sobre um dos mais antigos conflitos armados no mundo. O processo de paz com as FARC, a cobrança de impostos aos narcotraficantes e a relação com a Venezuela foram alguns dos temas abordados. "Não somos narcotraficantes, somos revolucionários usados como bode expiatório", afirmou na altura.

O Contacto confirmou através de diferentes fontes próximas da guerrilha a morte em combate deste comandante das FARC na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela durante a noite de segunda-feira ainda em circunstâncias por esclarecer. Era um dos comandantes mais procurados pelas autoridades de um país a braços com um conflito com mais de meio século.

Em 2017, a mais antiga guerrilha da América Latina decidiu entregar as armas depois de negociações com o governo liderado então por Juan Manuel Santos em Havana. À medida que apareciam cada vez mais ex-guerrilheiros e opositores assassinados, a tensão subiu de tom com acusações ao novo governo de Iván Duque de traição aos acordos assinados em Cuba. Dois anos depois, Jesús Santrich decidiu regressar às montanhas e refundar com outros históricos comandantes a organização guerrilheira sob o nome FARC Segunda Marquetalia.

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Jesús Santrich chegou a ser escolhido para deputado no parlamento colombiano mas não conseguiu a tomar posse. Foi detido sob a acusação de negociar com um cartel de droga mexicano e os Estados Unidos pediram a sua extradição. Contudo, o processo acabou com a demissão do procurador-geral da Colômbia por montar um esquema falso contra o histórico comandante.

As autoridades acabaram por ordenar a libertação de Jesús Santrich que havia afirmado que se suicidaria se fosse enviado para os Estados Unidos. Dias depois desapareceu sem deixar rasto para reaparecer precisamente nas montanhas anunciando ao mundo que ele e outros ex-guerrilheiros regressavam às armas devido ao “não cumprimento do acordo de paz”.

Seuxis Pausias Hernández era um dos homens mais conhecidos da Colômbia embora ninguém o conhecesse pelo nome do pintor da Grécia Antiga que os seus pais, professores, lhe decidiram atribuir um dia há 54 anos. A mãe deu-lhe a ler García Márquez e do pai tinha herdado a paixão pela história e pela filosofia. Em 1990, a polícia matou o seu melhor amigo, o líder estudantil Jesús Santrich, e decidiu, então, tornar-se guerrilheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-Exército do Povo (FARC-EP) adotando esse pseudónimo.

As FARC com o acordo de paz passaram à legalidade mas pouco tempo depois irromperam várias organizações armadas retomando o seu nome, entre elas, as FARC-EP Segunda Marquetalia. As aspirações políticas continuam a ser as mesmas de fundadores como Manuel Marulanda e Jacobo Arenas?

Respondo-lhe reafirmando que somos um projeto que é a continuidade do que foi fundado em 1964. Por isso, em maio celebrámos os 56 anos [das FARC-EP] olhando para o que ocorreu entre 22 e 24 de agosto de 2019 como um marco importante, refundacional, de reconstrução, na história de mais de meio século que temos como organização revolucionária.

Evidentemente, existe outro cenário de debate sobre a história [da organização] desde o ponto de ruptura da unidade interna das FARC-EP, que ocorre com os diálogos de paz de Havana, com momentos diferentes como as próprias conversações, o acordo e a assinatura das mesmas e, finalmente, a sua falhada implementação falhada.

Nesta fase, misturaram-se visões, posições políticas e ideológicas, que gradualmente se foram tornando mais distintas e marcaram uma ruptura, não só entre setores dos que conduziam as conversações, mas também em relação a setores que não aceitavam a linha de avanço do processo de paz nos termos em que este se desenvolvia. Assim, os relatos do que aconteceu neste cenário podem coincidir na abordagem de alguns aspetos, mas contraditórios e chocantes noutros, fundamentalmente no que diz respeito à questão de depor armas e à forma de assumir a reincorporação face ao incumprimento dos compromissos do governo, o que levaria ao afastamento de um setor importante e amplo da militância de todo o processo que se considerava traída pelo establishment.

Mas quais são os princípios que norteiam esta organização?

Como Segunda Marquetalia, resumo em três aspetos fundamentais a nossa luta pela justiça social, desde a fundação das FARC-EP. A luta pela posse e uso da terra, aspirando sempre à propriedade da terra, com instrumentos e recursos para a sua adequada exploração em equilíbrio com a natureza; a satisfação das necessidades básicas de subsistência, ou seja, alimentação, saúde, habitação, educação, serviços públicos fundamentais, recreação e cultura; a superação da desigualdade, da pobreza e da exclusão política. Tudo isto em condições de dignidade, liberdade e soberania.

As guerrilhas de ontem e de hoje têm as mesmas aspirações porque são objetivos que foram estabelecidos como necessidades que não foram resolvidas para as maiorias na Colômbia. Em vez de darem soluções para os problemas que surgem da sua insatisfação, aprofundaram-nas.

E este regresso à luta armado é a confirmação de que o processo de paz fracassou?

O regresso às armas de muitos de nós que estávamos envolvidos ou empenhados na construção de um acordo de paz com o Governo é um indicador muito revelador da inexistência de paz na Colômbia, mas não é a sua causa.

Então?

Recordemos que o processo de paz falhado em Havana é um dos muitos que já fracassaram no nosso país. Mas mesmo que tivéssemos avançado mais no acordo e tivesse havido menos deslealdade do que houve e continuassemos na legalidade, outras forças insurgentes ainda estavam activas e com razão. A traição do establishment ao processo em que participámos é mais um motivo para continuarmos em rebeldia. Mas acima de tudo, há o conflito social que surge da falta de justiça social, das crescentes desigualdades por causa da mesquinhez de uma classe oligárquica que persiste em manter os seus privilégios extremos à custa do bem-estar da maioria dos seus compatriotas, apenas para satisfazer as exigências insaciáveis de um império decadente como o ianque [Estados Unidos] e as suas próprias extravagâncias.

Mas se houve tantos processos de paz fracassados, continuam a achar que o caminho da negociação é possível ou pensam tomar o poder pelas armas?

Nem antes nem depois das conversações e da assinatura do acordo de paz de Havana, os dirigentes genuinamente farianos [comprometidos com a ideologia da organização] pensaram que só havia uma forma de implementar a justiça social e a paz com dignidade, liberdade e soberania na Colômbia. Sabemos, sim, que historicamente as transformações a que aspiramos ocorrem com revoluções que são geralmente violentas porque é isso que os detentores do poder impõem, mas aspiramos sempre a uma solução negociada. E esse diálogo deve ser entre adversários, qualquer que seja a sua qualidade. Devemos preparar-nos para a guerra com uma oligarquia que se mostrou mesquinha, sanguinária e enganosa; mas é nosso dever procurar o mínimo derramamento de sangue procurando a saída menos sangrenta. Talvez a solução política negociada pareça ser uma ilusão, mas entendemos a sua procura como um dever do qual não abdicaremos.

Vocês romperam com o partido legal FARC liderado por Timochenko. Qual é a relação que mantêm com os ex-guerrilheiros que estão por todo o país?

Tomámos um caminho diferente, forçados fundamentalmente pela traição do Governo ao acordo, mas eles também nos distanciaram posições políticas que não partilhamos porque acreditamos que se afastam da nossa concepção de raiz bolivariana e comunista. Este é um problema de natureza política que não nos devia enfrentar ao ponto de quebrar qualquer possibilidade de aproximação, coordenação ou convergência como pode acontecer com qualquer outro partido, organização política ou social ou movimento. A necessidade de convergência e a sua procura é uma questão estratégica, mas estamos atualmente a operar ilegalmente, e isto não nos permite ter qualquer ligação ou relação formal com a fação liderada por Timochenko ou qualquer outra porque estaríamos simplesmente a sujeitar a população aos perigos do terrorismo de Estado e do McCarthyismo que prevalecem na Colômbia. Com os ex-guerrilheiros mantemos afetos nascidos de uma história de luta partilhada, acrescentando os afetos que temos em geral pelo povo colombiano explorado e vilipendiado, a quem tanto devemos e por quem lutamos, apresentando-lhes uma proposta que esperamos que abracem, seja juntando-se às nossas fileiras, às nossas estruturas, ou também do ponto de vista jurídico, defendendo propósitos que nos aproximam, tais como a busca da justiça social ou a defesa da soberania.

Mas qual é a sensibilidade dos ex-guerrilheiros sobre o processo de paz?

Em geral, há um desencanto profundo a respeito das grandes expetativas de que o país fosse transformado para beneficiar os mais desfavorecidos, pelo menos conseguindo lançar as bases para a reforma rural, a reforma política e outras conquistas menores. Mas nada disto aconteceu. Nem sequer a coisa mais elementar, que é o desenvolvimento de um processo decente de reincorporação económica, política e social. Há também receios sobre o terrorismo de Estado que estão a sofrer, pelos assassinatos de líderes comunitários e ex-combatentes às centenas. Cerca de 250 militantes das FARC foram fuzilados desde a assinatura do acordo. Segundo o Indepaz, são 730 dirigentes comunitários mortos.

Para além do desencanto, há uma perda total ou parcial de credibilidade no instrumento de diálogo e nos acordos, porque é notório que são facilmente violados, sem uma garantia de solução para essas violações. Por esta razão, o regresso de muitos, muitos ex-combatentes e o envolvimento de novos insurgentes na luta armada, mas sem dúvida que há também muitos outros ex-combatentes, militantes políticos e apoiantes da solução política do conflito, que são honestos, corajosos e respeitadores da posição de persistência na defesa do que foi acordado, pelo que não há apenas uma sensibilidade, mas há várias sensibilidades, avaliações e reacções.

Quem está por trás destes assassinatos?

Sem negar que possa haver causas específicas para um ou outro caso em particular, que respondam a questões pessoais ou que nada tenham a ver com a violência política sofrida no país, o essencial é que as mortes são resultado da ação e das omissões sistemáticas do Estado. Tanto os assassinatos de líderes comunitários como os ex-guerrilheiros, muitos dos quais são também líderes, são vítimas sistemáticas do terrorismo de Estado. Disse anteriormente que estamos a assistir a um reforço da violência institucional e para-institucional sistemática; ou seja, um reforço estatal da doutrina da Segurança Nacional e do Inimigo Interno, que deriva da famosa "paz com legalidade" do Governo de Iván Duque e que tem como objetivo fazer avançar um processo de pacificação repressiva de territórios estratégicos. Agem com a desculpa da segurança interna.

E os assassinatos são acompanhados de falsos positivos como o que Timochenko protagonizou, a fim de avançar com campanhas para mostrar que o derramamento de sangue é um produto da divisão interna das FARC. Este caso é especialmente importante porque o que eles fizeram com aqueles antigos combatentes, refiro-me a Carlos Andrés Ricaurte e Gerson Moisés Morales, foi uma infâmia. O que fizeram os supostos salvadores do ex-chefe guerrilheiro foi torturar e assassinar pessoas que ainda acreditavam no processo [de paz]. Por aí pode perceber que uma das razões que precipitou a decisão de regressar ao caminho das armas é a guerra suja, o terrorismo de Estado e que as explicações que se dão, combinadas com linguagem de ordem pública, falando de "zonas vermelhas" onde reinam grupos criminosos anarquizados, com lutas pelo controlo territorial, que incidentalmente vitimizam o Estado, nada mais fazem do que tentar esconder a responsabilidade do regime.

Algumas fontes, contudo, dizem que também há assassinatos executados por dissidentes das FARC.

Como disse, pode haver casos que não se devem necessariamente ao terrorismo de Estado, mas não tenho elementos para dizer que as mortes de ex-combatentes ou líderes comunitários são o resultado de políticas elaboradas por organizações "dissidentes". Não considero isso possível se sob essa denominação está a incluir aqueles que neste momento, por se terem levantado em armas, não pertencem ao partido FARC. E sobre isso, há várias organizações que ostentam o nome e as bandeiras das FARC-EP, que têm as suas próprias direções e porta-vozes e que certamente poderão responder com mais detalhes a esta sua questão.

No que diz respeito às FARC-EP Segunda Marquetalia, não foi ordenada nenhuma morte por nenhuma das nossas estruturas. Essa não é a nossa política, por mais profundas que sejam as contradições. Estas devem estar ao nível das ideias e não a outro nível. Gostaria de aproveitar esta oportunidade para reiterar que no mediático atentado contra Timoshenko, que tanto quanto sabemos foi um falso positivo, não tivemos absolutamente nada a ver com isso.

Há outras estruturas armadas que seguem um ideário político próximo do vosso. Há algum tipo de contacto ou intenção de se juntarem?

Sim, como disse, não é apenas uma necessidade, mas um dever dos revolucionários procurar formas de aproximação, de unidade ou pelo menos de coordenação para avançar em direção à conquista de propósitos de emancipação como os que nos inspiram a todos e nos identificam com os desejos de justiça social das maiorias. A questão da unidade é um assunto estratégico e vital para as FARC-EP, Segunda Marquetalia.

São acusados de estarem envolvidos no tráfico de droga. Qual é a posição das FARC-EP Segunda Marquetalia sobre esta questão e como pretendem comportar-se em relação aos produtores de coca e proprietários de terras?

Não somos narcotraficantes, somos revolucionários estigmatizados e usados como bode expiatório para o establishment esconder o seu comportamento mafioso e prosseguir uma guerra de acumulação de território e recursos estratégicos a favor das transnacionais e especialmente a favor dos Estados Unidos, que entre outras coisas é por antonomásia a caverna do tráfico de droga por excelência.

Mas recordo que o tráfico de droga não é apenas um problema social que atravessa toda a sociedade colombiana corrompendo a sua economia, os seus costumes, tradições e cultura, entre outros espaços, mas é também um problema de Estado que envolve, acima de tudo, a corrupção das suas instituições. Isto não pode ser escondido. Mas também deve ser salientado que este não é um problema local ou nacional, mas um problema transnacional, uma macroempresa capitalista que, juntamente com outras economias ilegais, representa nada menos do que cinco pontos do Produto Mundial Bruto. Na Colômbia, uma das áreas mais contaminadas é o capital financeiro, mas reitero que isto se insere num quadro que toca todas as instituições, de tal forma que colocar a guerrilha como bode expiatório não resolve nada. É apenas uma questão de propaganda contra-insurgente que é erradamente repetida por um Governo gangsterizado como o de Iván Duque, que não acaba de clarificar as suas ligações com o narco Ñeñe Hernández, com Memo Fantasma e outros fantasmas da máfia de Uribe.

Havia uma proposta histórica das FARC para substituir a produção de folha de coca por outros produtos agrícolas no acordo de paz. Está a ser cumprido?

O acordo sobre o tráfico de droga foi violado desde o momento em que se iniciou a implementação do acordo. O próprio Governo de Santos insistiu em manter a política venenosa e prejudicial de fumigação sobrepondo-se à política de substituição que é contemplada no acordo, que está ligada à política de Reforma Rural Global.

Depois Duque acabou por enterrar tanto a Reforma Rural como a política de substituição, reativando a chamada "guerra contra a droga", a repressão desumana contra as pessoas humildes do campo como ocorre em El Guayabero e Catatumbo, entre tantos exemplos denunciados nas redes sociais. Ou seja, estamos a assistir à reconfiguração da versão gringa falhada da luta antidroga, que inclui a erradicação forçada e a fumigação aérea.

Hoje em dia, a proliferação de narcocultivos continua a ser produto da recusa de dar um tratamento de ordem social ao problema. O tratamento militarista em termos de problema de ordem pública, negligenciando a solução das necessidades que empurram a imensa pobreza do país para economias ilegais, está no cerne do fracasso.