Brasil: Manifestação contra custo do transporte transforma-se em protesto contra corrupção, violência e Mundial2014
As manifestações agitam o Brasil. Começaram em São Paulo, na semana passada, para contestar o aumento do preço dos transportes públicos, mas alargaram-se ao Rio de Janeiro, a Porto Alegre e à capital. Esta noite, em Brasília, cerca de duas mil pessoas invadiram o Congresso. As manifestações tornaram-se agora um protesto contra a violência policial, a corrupção e até contra o Mundial de 2014.
Um dos motivos da ampliação do protesto no Brasil foi a violência da Polícia Militar na manifestação de quinta-feira, quando foram usadas bombas de gás lacrimogéneo e balas de borracha. Dois jornalistas foram atingidos nos olhos. © Créditos: AP
Esta noite, na capital do país, Brasília, cerca de dois mil manifestantes vieram para as ruas. Como se pode ver no vídeo abaixo, cerca de duas centenas de manifestantes invadiram o perímetro do Congresso, conseguindo subir para o telhado.
"A tarifa foi só uma faísca", dizia o cartaz de um manifestante no protesto que começou na tarde de segunda-feira, em São Paulo, e seguia com dezenas de milhares de pessoas até a noite (madrugada de hoje no Luxemburgo).
E o cartaz tinha razão: o foco inicial dos protestos, o aumento das passagens dos autocarros, metros e comboios, foi ampliado. Os manifestantes gritaram contra a corrupção em todas as esferas do governo, a violência, a repressão a protestos, a realização do Mundial 2014 no Brasil, a precária situação dos transportes, da saúde e da educação, e também contra alguns assuntos debatidos pelo Legislativo do país.
"Finalmente, o brasileiro passou a prestar mais atenção na política do que no futebol", afirmou à Lusa no protesto o administrador Marcelo Vicinti, de 31 anos.
Entre temas do legislativo que foram criticados está a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, que, se aprovada, diminuirá o poder de investigação do Ministério Público. "Contra a PEC 37 e o Michel Teló", dizia outro cartaz, bem humorado, sobre o cantor de música sertaneja, demonstrando a heterogeneidade de intenções dos presentes.
Um dos motivos da ampliação do protesto, tanto em número de pessoas como em quantidade de reivindicações, foi a truculência da Polícia Militar na manifestação da última quinta-feira, quando foram usadas bombas de gás lacrimogéneo e balas de borracha. Dois jornalistas foram atingidos nos olhos.
Na segunda-feira, muitos presentes diziam estar ali apenas para apoiar o direito das concentrações nas vias públicas. Segundo o instituto de pesquisas Datafolha, os manifestantes ultrapassaram as 65 mil pessoas - a polícia ainda não havia divulgado a sua contagem no início da madrugada de hoje.
Uma das razões dos protestos de ontem foi a truculência da intervenção policial na manifestação da semana passada contra o aumento do preço dos transportes públicos © Créditos: AP
Protesto alargou-se ao Rio de Janeiro e Porto Alegre
Em São Paulo, o protesto foi pacífico, diferentemente do que ocorreu em outras cidades, como Rio de Janeiro e Porto Alegre, onde houve confronto com a polícia.
Os manifestantes paulistanos caminharam em grupos diferentes por mais de cinco horas, alguns deles por mais de 15 quilómetros, e ocuparam o centro financeiro do município e alguns pontos turísticos, como a Ponte Estaiada e a avenida Paulista.
A polícia não usou balas de borracha, mas recorreu às bombas de efeito moral em pelo menos um momento: quando manifestantes tentavam invadir a sede do governo do Estado.
Os manifestantes eram maioritariamente jovens, mas havia também adultos e idosos, como Marita Ferreira, 82 anos, que segurava um cartaz dizendo "Não vim para brincar, vim para me manifestar". Ao ser questionada sobre o principal motivo de estar no protesto, respondeu que queria "lutar por um mundo melhor".
Bandeiras, apitos, bandeiras e flores compunham os principais adereços dos presentes, que eram aplaudidos por pessoas nas janelas. Caras pintadas de verde e amarelo, nas cores da bandeira brasileira, também eram comuns, lembrando o movimento a favor do impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
"Fico feliz de ver a minha geração a acordar. Sempre quis ir para a rua, e agora ocorreu o estopim", afirmou à Lusa a publicitária Laura Silva Ratto, 22 anos.
"A gente perdeu o medo de estar na rua"
© Créditos: AP
"A gente perdeu o medo de estar na rua, foi só isso que aconteceu", afirmou à Lusa um dos manifestantes, professor de artes visuais de uma escola pública do Rio de Janeiro, que preferiu não se identificar por já ter sido preso num dos protestos da semana passada.
"O aumento da tarifa é apenas o estopim para a revolta, que envolve remoções forçadas como a Aldeia Maracanã e a Vila Autódromo", acrescentou o professor, em referência a comunidades que foram ou estão em processo de realojamento em função das obras para os Jogos Olímpicos.
A manifestação, que durou cerca de três horas e reuniu mais de 100 mil pessoas, no centro do Rio de Janeiro, foi originalmente convocada para protestar contra o aumento das passagens do transporte público e em repúdio aos atos de violência da polícia, registrados na semana passada.
Os investimentos feitos para o Mundial de 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016, no entanto, também fizeram parte da reclamação do estudante de química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rafael Calazans, que se queixou do excesso de capital destinado aos grandes eventos desportivos, em detrimento de investimentos para a saúde e educação.
"Não é só pelo aumento da passagem, mas pelos nossos direitos. Enquanto está a sobrar dinheiro para a Copa [Mundial] e Jogos Olímpicos, quem paga a conta é a população", reclama.
Já o estudante do liceu, de 18 anos, Mateus de Abreu, recorda que a proximidade dos grandes eventos serve para chamar a atenção do mundo para o tema.
"Não são só os 20 centavos, se conseguimos agora baixar o preço, mostramos que o Brasil consegue qualquer coisa. A hora é agora, o mundo todo está a olhar para o Brasil", ponderou.
Nos cartazes, palavras de ordem conclamando a população às ruas, além de um alerta aos polícias que têm reprimido de forma violenta os estudantes - "Fardado, você também é um explorado", dizia um deles.
Os protestos, que têm tomado maiores proporções a cada dia, aparentemente crescem sem uma liderança específica, com a ajuda das redes sociais, nas quais desde anónimos até celebridades manifestam o seu orgulho por ver a população saindo às ruas.
"É a nossa oportunidade de mostrar, sem violência, que o poder está nas nossas mãos, mudabrasil", escreveu Bia Antony, ex-mulher do jogador de futebol Ronaldo.
Outros, bem humorados, faziam trocadilho com frases do Hino Nacional: "O povo brasileiro alterou seu status de: 'Deitado eternamente em berço esplêndido', para 'Verás que um filho teu não foge à luta'", comentou Patrick Camargo.
Nas ruas, no entanto, não faltaram também manifestações e bandeiras de partidos de esquerda que tentavam, sem sucesso, ganhar o crédito da grande mobilização.
"Sem partido! Abaixa essa bandeira", gritavam os estudantes, tentando garantir o apartidarismo da mobilização.
Nos edifícios da Avenida Rio Branco, por onde passou a manifestação, simpatizantes jogaram papéis picados pelas janelas, em apoio à causa. Outros, curiosos, acercaram-se para tirar fotos.
"No início, a manifestação por causa dos 20 centavos não me pareceu justa o suficiente, mas, agora, ver essa turma nova reivindicando melhorias dá muita satisfação", confessou à Lusa o advogado José Alexandre Machado.
Após três horas de movimento pacífico, a mobilização terminou com confronto entre a polícia e um pequeno grupo que se separou da grande massa gerando confusão. Os dissidentes apedrejaram o edifício da Assembleia Legislativa (Alerj) e atearam fogo a um carro.
Polícia carioca só conseguiu dispersar manifestantes na madrugada de hoje
No Rio de Janeiro, 20 polícias foram feridos por pedras ou estilhaços de vidros, e oito manifestantes também ficaram feridos, dois deles com ferimentos de bala © Créditos: AP
Ontem, manifestantes invadiram o prédio da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e entraram em confronto com os polícias, deixando 20 agentes feridos, segundo informações da Secretaria de Segurança Pública.
No momento da entrada, os manifestantes lançaram pedras e usaram as grades de contenção para atirar contra os polícias.
Nas imagens transmitidas pelo canal brasileiro "GloboNews", uma explosão, possivelmente de cocktails molotov, também pode ser ouvida e o fogo deflagrou nas escadarias do edifício.
Segundo a assessoria da Secretaria de Segurança, 77 polícias faziam a contenção do prédio no momento da invasão e 20 ficaram feridos por pedras ou estilhaços de vidros.
Oito manifestantes também ficaram feridos, dois deles com ferimentos de bala.
A Polícia do Rio de Janeiro só conseguiu dispersar no início da madrugada de hoje os manifestantes remanescentes que estavam a ocupar o prédio da Assembleia Legislativa, no centro da cidade.
A confusão foi iniciada por um grupo de dissidentes da manifestação inicial, que reuniu mais de 100 mil pessoas durante três horas, num protesto pacífico.
Um pequeno grupo dispersou-se da grande massa e ateou fogo em dois carros, atirou pedras e lançou tintas de spray contra as colunas do edifício histórico da Assembleia Legislativa.
A confusão só foi controlada com a chegada da tropa de Choque da Polícia do Rio de Janeiro. Os polícias usaram bombas de gás lacrimogéneo e balas de borracha para dispersar os manifestantes, de acordo com o jornal "O Globo".
Nas redes sociais, diversas pessoas que participaram dos protestos pacíficos durante o final da tarde repudiaram os atos de vandalismo registrados no final e ressaltaram que esta pequena minoria não os representa.
Os protestos no Brasil têm chegado ao mundo também através das redes sociais. Este internauta postou na sua página Facebook as razões pelas quais protesta. Segundo ele, como para milhares de brasileiros, o aumento do preço dos transportes públicos foi apenas o rastilho da contestação © Créditos: Facebook