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Guerra na Ucrânia

O que vai na cabeça de Vladimir Putin?

"Autocrático, narcisista e paranoide". Estes são traços estruturais de Vladimir Putin que podem ajudar a explicar as suas ações. O Contacto ouviu dois investigadores para perceber a influência da sua personalidade no seu estilo de liderança e no momento em que vivemos.

© Créditos: Presidência russa/AFP

Maria Monteiro

Se desconfiar dos outros fosse uma modalidade olímpica, Vladimir Putin acumularia medalhas de ouro. Começou a treinar essa competência aos 23 anos, altura em se alistou nas fileiras do KGB saído do curso de Direito. O tempo que passou ao serviço da agência secreta da ex-União Soviética foi fulcral na construção da sua identidade e da sua perceção dos outros. Para um agente do KGB, suspeitar dos outros era a norma, porque o mundo repartia-se em dois opostos — "nós” e “eles” — e era preciso agir com prudência mesmo perante a mais inofensiva das interações.

Fernanda Pereira, diretora da pós-graduação em Psicologia Política na Universidade Lusófona de Lisboa, não tem dúvidas de que esta experiência profissional ainda hoje tem repercussões no seu comportamento. “Putin tem um tipo de personalidade muito paranoide”, afirma, argumentando que “é de esperar que estas pessoas ataquem mesmo antes de serem atacadas”. “O pensamento deles é este: os outros estão contra mim e querem prejudicar-me, por isso antes que o façam, vou eu prejudicá-los”, elabora.

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O mundo dividido em dois

Efetivamente, esta visão dicotómica do mundo parece ter acompanhado Putin muito para além do KGB perdurando até aos dias de hoje. Essa é, aliás, a essência do discurso que tem usado insistentemente para justificar a invasão da Ucrânia, iniciada a 24 de fevereiro, ao lançar um manto de suspeição sobre o país vizinho, a NATO e os aliados europeus. Para Putin, o ocidente é o antagonista da “Mãe Rússia” e constitui uma ameaça para a segurança e defesa da nação, por isso tem de intervir.

Esta lógica transparece, por exemplo, no argumento de “manutenção de paz” que usou para pôr em marcha aquilo que diz ser uma “operação militar especial” para proteger a região separatista pró-russa do Donbass da “humilhação e genocídio perpetrados pelo regime de Kiev”, liderado por um “gangue de viciados em drogas e neonazis”. Ao que tudo indica, estamos perante um “fenómeno projetivo”, diz Fernanda Pereira. “Ele tece considerações sobre um homem [Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia] que é exatamente o oposto: tem origem judaica, é democrata e aberto ao diálogo.

Embriaguez de poder e megalomania

A professora universitária considera que a “personalidade narcisista, autocrática e paranoide” de Vladimir Putin é o “eixo condutor da sua liderança” e foi determinante para esta “antecipação por via da agressão”. Por outro lado, não descarta a possibilidade de estas caraterísticas terem evoluído de forma desequilibrada. “Quando ele acusa os outros, os ocidentais, [sem fundamentos], já entramos num domínio psicopatológico”, problematiza.

Aubrey Immelman, diretor da Unit of Personality in Politics na College of Saint Benedict & Saint John's University, nos Estados Unidos, admite que a personalidade de Putin “pode ter-se tornado patológica com o tempo”. “[Há maior tendência para isso acontecer com] líderes narcisistas, que normalmente estão isolados da opinião pública e de perspetivas opostas”, justifica.

Assim, podem desenvolver a chamada síndrome de Hubris — termo cunhado por David Owen, médico e político britânico e ex-secretário de Estado para os negócios estrangeiros do Reino Unido—, que a define como uma embriaguez de poder que se manifesta com excesso de confiança, desprezo pelos outros e corrupção moral. “Estes políticos acham que são mais poderosos do que o que realmente são e alguns desenvolvem mesmo uma megalomania.”

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Dominante, ambicioso, meticuloso

O também professor de psicologia dedica-se ao estudo da personalidade de líderes políticos há mais de 20 anos, mas deixa a salvaguarda de que as observações conduzidas à distância têm algumas limitações. “Temos de ter cuidado para não lhe atirarmos diagnósticos psiquiátricos”, adverte. Ainda assim, o perfil que traçou em 2014 é uma base de discussão pertinente para perceber o papel da personalidade na governação de Putin.

Aubrey Immelman socorreu-se do Modelo de Estilos de Personalidade de Theodore Millon — consagrado psicólogo norte-americano que estudou as perturbações de personalidade —, e fez uma pesquisa alargada em fontes open-source, como jornais e revistas. Depois, partiu de um inventário de 170 adjetivos criado por si para identificar repetições e diagnosticou a sua personalidade como “executante hostil e expansionista” (tradução livre, originalmente expansionist hostile enforcer), com os seguintes padrões primários: dominante/controlador, ambicioso/egocêntrico e meticuloso/diligente.

Segundo o estudo, estes indivíduos “retiram prazer do poder que têm para mandar nos outros”, “são duros e frios” e “dão líderes eficazes”. Por outro lado, são “corajosos, competitivos e confiantes” e “esperam que os outros reconheçam as suas qualidades especiais, agindo como se tivessem direito a esse tratamento”. Têm, ainda,“uma forte ética de trabalho e atenção ao detalhe”, mas “são mais tecnocráticos do que visionários”.

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Um estado de "miopia afunilada"

Margaret G. Hermann, citada nesta análise, aplica o termo “expansionista” à política externa. A psicóloga política refere que, a este nível, estes políticos “não têm problema em usar o ‘inimigo’ como bode expiatório” e almejam controlar “mais território, recursos e pessoas”.

Para Immelman, os traços de personalidade favoráveis a Putin na vida política são “a sua assertividade confiante e a sua conduta de chefia”. Pelo contrário, a sua “intransigência inflexível”, “a falta de empatia e simpatia” e a “inflexibilidade cognitiva” são as suas desvantagens. Daí que, completa Fernanda Pereira, Vladimir Putin exerça uma “gestão por via do medo”.

“Quanto mais ele exerce o poder, mais reforça estas caraterísticas, porque quanto mais medo as pessoas sentem, mais ele sente que está no caminho certo, mantendo a liderança de forma intocável”, observa, classificando este comportamento como “um estado de 'miopia afunilada' que o faz perder qualquer noção de moderação.”

Moralidade seletiva

Como o narcisismo está ao centro do seu caráter, nota Fernanda Pereira, a moral é um conceito que aplica de forma seletiva. “Ele gosta dele próprio, da família e dos cavalos dele, que põe à frente de um povo de milhões de pessoas. Aí ele será moral e até moralista, mas fora do círculo dele, é amoral”, assegura.

Esta caraterística, aliada ao “treino que teve para mentir e enganar”, como lembra Immelman, é consistente com a “duplicidade” que foi denunciada por Emmanuel Macron. O presidente francês, que tentou impedir a ofensiva russa pela via diplomática até às últimas instâncias, criticou o seu homólogo pela “escolha deliberada e consciente” de invadir a Ucrânia quando ainda decorriam negociações para a paz.

Apesar da importância da personalidade, ambos os investigadores sublinham que este fator só se torna relevante na tomada de decisões ao ser conjugado com outros, como a experiência de vida e o contexto. Filho de dois sobreviventes do cerco de Leninegrado, Vladimir Putin iniciou a carreira política como vice-presidente da câmara de São Petersburgo, em 1994.

Pouco depois, começou a ocupar cargos próximos do então presidente Boris Yeltsin e, em agosto de 1999, foi nomeado por Yeltsin para primeiro-ministro. A 31 de dezembro do mesmo ano, Yeltsin demitiu-se e passou a pasta a Putin, elevando-o ao topo da pirâmide do poder russo.

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Presidente até 2036?

Quando chegou ao cargo, em 2000, encontrou um país afundado na dívida. O seu primeiro mandato foi marcado pelo retorno da estabilidade política e crescimento económico ao país, gozando inicialmente de altas taxas de aprovação. Na altura, a constituição russa estabelecia um limite de dois mandatos de quatro anos cada, por isso não se pôde recandidatar em 2008. Então, o seu aliado Dmitri Medvedev sucedeu-lhe na presidência, permitindo que Putin voltasse a ser primeiro-ministro.

Tornou a candidatar-se às presidenciais em 2011, agora para períodos de seis anos. Voltou a ser reeleito em 2012 e em 2018. Está, atualmente, no quarto mandato, cujo fim está previsto para 2024. Mas, em 2020, o governo de Putin aprovou uma nova revisão constitucional que permite que fique no poder até 2036 — segundo dados oficiais, a proposta foi aprovada por 77,92% dos eleitores, embora os resultados tenham sido contestados pela oposição.

O braço de ferro de Putin, cultivado entre as missões do KGB e o estudo de artes marciais como o judo, foi determinante para resgatar a Rússia da miséria, mas o presidente russo parece querer levar a renovação do país mais longe. Em 2005, definiu a queda da União Soviética como a “maior catástrofe geopolítica do século XX”.

“A reconstrução da URSS é quase o lema de vida dele”, resume Fernanda Pereira. O belicismo e o imperialismo que guiam as suas decisões não são de agora. Mas será a força nuclear uma ameaça real? “Ele teria que estar muito desequilibrado para isso”, conclui Aubrey Immelman.