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Guerra na Ucrânia

A guerra aproxima-se do porto de abrigo dos refugiados

Um bombardeamento a uma base militar por onde passaram recentemente quinze portugueses aproximou a guerra da cidade de Lviv, no oeste da Ucrânia. Enquanto os russos não chegam, a cidade recebe centenas de milhar de refugiados enquanto tenta proteger igrejas e museus.

Lviv tem mais 200 mil habitantes permanentes que antes da guerra. Para mais, dezenas de milhares de refugiados ucranianos passam todos os dias pela estação de comboios a caminho da Polónia ou da Roménia.

Lviv tem mais 200 mil habitantes permanentes que antes da guerra. Para mais, dezenas de milhares de refugiados ucranianos passam todos os dias pela estação de comboios a caminho da Polónia ou da Roménia. © Créditos: Tiago Carrasco

Jornalista

(Correspondente em em Lviv, na Ucrânia)

Em Shehyini, do lado ucraniano da fronteira com a Polónia, uma aurora auspiciosa, embora com um sopro gélido, vai aos poucos destapando do manto de escuridão aqueles que desesperadamente tentam fugir da guerra cruel que Vladimir Putin impôs à Ucrânia: uma interminável fila de carros parados diante da cancela, tendas alinhadas e famílias em redor de fogueiras.

Enquanto todos pretendem abandonar a Ucrânia, Sasha Plaksa, 49 anos, está a regressar a casa: camionista de longo curso, o conflito apanhou-o em Itália, sem hipóteses de zelar pelos seus. É de uma povoação encostada a Mariupol, na costa do Mar de Azov, cidade destruída e cercada pelas tropas russas quase há duas semanas, onde cerca de 200 mil ucranianos resistem sem água, energia, mantimentos e comunicações. “Não sei da minha mulher e dos meus filhos há cinco dias”, desabafa, nervoso, com o Contacto. “Não sei se estão vivos ou mortos”.

Através da rede social Telegram, o motorista recebe no telemóvel vídeos da destruição provocada pelos mísseis russos na sua região, alguns deles censurados pela tv devido à extrema violência exibida. Mostra-nos várias casas reduzidas a pó e corpos desfeitos pelas bombas a apodrecerem nas estradas: “Este é o pai do meu vizinho”, explica, apontando para uma vida transformada num monte de carne e vísceras. “O Putin é um animal, um selvagem. Porque usa esta força bruta? Que mal lhe fizemos?”, pergunta, indignado.

A guerra apanhou o camionista Sasha, à direita, fora do país. Agora ele regressa a casa, perto de Mariupol, para saber se a sua mulher e filhos estão bem.

A guerra apanhou o camionista Sasha, à direita, fora do país. Agora ele regressa a casa, perto de Mariupol, para saber se a sua mulher e filhos estão bem. © Créditos: Tiago Carrasco

Sasha, na companhia de outros dois colegas, pega nas suas pesadas malas e entra no país de onde cinco milhões de pessoas já saíram nas últimas duas semanas. Vai ter de penetrar no inferno para resgatar, com ou sem vida, os corpos de quem mais ama.

Terminal do desespero

Na estação de comboios de Lviv, é impossível contar os passageiros que, constantemente, andam de plataforma em plataforma em busca de um comboio que os tire dali. Movimentam-se frequentemente em longos caudais humanos, apertados, avançando pé ante pé até ao destino final: são senhoras, essencialmente, também crianças de colo e velhas corcundas, carregadas com os bens que conseguiram salvar. Polónia, Roménia, Alemanha, Portugal, França; os destinos são variados, importando sobretudo se já lá vivem familiares ou amigos para os receberem.

Olga Bilonoh, 62 anos, até era pró-russa antes de Putin ordenar uma chuva de pólvora sobre Sumy, a sua cidade natal. “Era impossível ficar. Os alarmes de bomba a tocar todo o dia, explosões, a casa toda a abanar, sempre a entrar e a sair do abrigo”, recorda. “Nunca, mas nunca, pensei que a Rússia nos podia fazer uma coisa destas”. Fugiu com a mãe, de 84 anos. O marido ficou para trás. “Ainda não sei para onde vamos”.

Diana, 18, pensava que a sua Dnipro, no centro do país, ia ser poupada para já às investidas russas. Enganou-se: “Na última noite, houve três explosões na cidade, bombardeamentos a bases militares”, explica a estudante universitária de jornalismo. “Não perdi mais tempo. Apanhei um comboio e vou para Varsóvia, onde estudo. Toda a minha família já saiu para a Polónia, só os meus avós, teimosos, querem ficar para não deixar nenhum russo entrar na sua casa”.

Kira, 28, partiu com a sua irmã e o filho desta, de cinco anos, da zona de Irpin, nos arredores de Kiev. “Olhava para o céu e via os clarões, o rasto do fogo e sentia o prédio a tremer. Não me sentia segura. Então, nos últimos dias, dormi sozinha no carro, com três pares de leggings para combater o frio. Nunca pensei ter de passar por isto”, afirma a marketeer, que ainda há poucos meses tinha uma “vida boa”, com “férias no Chipre e na Indía e dinheiro para comprar roupas caras”. “Agora não há trabalho, o dinheiro está a acabar. Vamos para Viena, na Áustria, tentar arranjar emprego e voltar a uma vida normal”.

Lviv, no oeste da Ucrânia e apenas a 80km da fronteira polaca, continua a ser uma das cidades mais seguras da Ucrânia. Por isso, muitos dos deslocados ucranianos – cinco milhões, dois deles na Polónia – param ali para decidir se ainda ficam no país à espera de uma bonança rápida ou se abandonam a sua pátria.

“A cidade tem servido não só de plataforma de acolhimento como também de passagem para muitos dos que fogem para a Europa”, diz ao nosso jornal Andriy Sadovyy, presidente da Câmara de Lviv. “Temos hoje mais 200 mil habitantes permanentes na cidade e mais dezenas de milhar que aqui passam diariamente. A cidade está a abarrotar mas estamos a conseguir fornecer toda a ajuda humanitária necessária graças ao voluntarismo dos ucranianos e à solidariedade de todo o mundo”.

Refugiados ucranianos manifestam-se em Cracóvia, na Polónia, país que já recebeu dois milhões de deslocados de guerra. O maior pedido é para o Ocidente criar uma zona de interdição aérea, impedindo os aviões russos de bombardearem a Ucrânia.

Refugiados ucranianos manifestam-se em Cracóvia, na Polónia, país que já recebeu dois milhões de deslocados de guerra. O maior pedido é para o Ocidente criar uma zona de interdição aérea, impedindo os aviões russos de bombardearem a Ucrânia. © Créditos: Tiago Carrasco

Centenas de cafés, associações, recintos desportivos e culturais foram transformados em centros logísticos e abrigos para refugiados. O Teatro Académico Regional de Marionetas foi preparado para receber famílias com crianças, com o palco transformado num parque infantil improvisado onde os pequenos constroem com colchões e almofadas uma casa imaginária, talvez para substituir aquela que deixaram para trás.

Anastasiia, de 11 anos, sonha ser bailarina mas teve de deixar as aulas de ballet quando as bombas atingiram Kharkiv, no leste, a segunda maior cidade da Ucrânia. “Eu só ouvi bombas e disparos mas a minha colega de escola diz que viu uma mulher morta na rua”, afirma. “A Rússia só mente. Dizem que só estão a matar soldados mas estão a matar crianças como eu”. Interrompe para aconchegar o seu irmão Maxim, 4, que começa a chorar. “Agora vamos para a Polónia e quero continuar a dançar lá”, conclui. A sua amiga Elena, 10, gosta mais de desenhar. Também fugiu de Kharkiv com os pais, depois de uma bomba ter atingido um edifício do seu bairro. “O que é a guerra? É ouvir aviões em cima de nós, ter medo de barulhos horrorosos, do fogo e do fumo”, responde.

Mostra o caderno com os seus esboços; entre sapos, coelhos e gatos, uma médica com o uniforme salpicado por tinta vermelha, sangue, um elemento indesejável que a guerra acrescentou à sua criatividade. “Os meus pais fazem bolos e agora vamos para a Europa fazer doces ucranianos”.

Quem entretém e alimenta estas crianças enquanto os pais planeiam o seu futuro é Ilya Miroshnick, actor de 20 anos, também ele refugiado da região de Mariupol. Não viu a sua cidade a ser martirizada porque rumou a Lviv no segundo dia de conflito, vivendo agora angustiado por ter deixado os pais e o irmão de dez anos para trás. Estão bem, confirma, mas não podem fugir porque as forças russas cercam toda a área. “Gostava de combater mas não fui treinado para isso e estou certo de que não seria de grande ajuda, estaria morto em dois ou três dias”, diz. “Mas aqui posso ajudar os deslocados e dar um pouco de felicidade às crianças. É a minha forma de ajudar”.

Ilya não vai abandonar o país. O director do teatro transformado em centro humanitário disse-lhe que o queria contratar depois da guerra. “A Rússia e as suas agressões desde 2014, a anexação da Crimeia e a guerra em Donbass, fizeram com que pessoas como eu, que não tinham um espírito nacionalista, se enchessem de orgulho por serem ucranianas”, diz. “É essa a história que quero contar às crianças com as marionetas quando a guerra terminar”.

Salvar os tesouros de Lviv

A capital do ocidente ucraniano tenta diariamente esquecer que está em guerra. Mesmo com o recolher obrigatório às 22h e a lei seca que proíbe a venda de bebidas alcoólicas, os restaurantes estão bem preenchidos, há músicos a tocar na praça da Ópera Nacional e crianças a patinar na pista de gelo. Os alarmes de bombardeamento, que duas ou três vezes por dia se escutam, já são tão corriqueiros que não originam mais do que meia dúzia de passos apressados, embora ainda haja quem se refugie nos abrigos dos prédios. Para outros, cada sirene significa apenas a urgência em trabalhar mais rapidamente para salvar tesouros artísticos e culturais.

“Eles são bárbaros e não têm qualquer problema em destruir igrejas, museus ou estátuas”, diz Sadovyy, o edil da cidade. “Temos trabalhado sem parar para esconder em bunkers e acondicionar vários tesouros culturais”. Desde o início da guerra, os bombardeamentos russos já danificaram uma das catedrais mais importantes de Kharkiv, arrasaram uma singular igreja de madeira do século XIX na aldeia de Viazivka, perto de Zhytomyr, e um museu em Ivankiv, a nordeste de Kiev, onde estavam obras, perdidas para sempre, da reputada artista ucraniana Maria Prymachenko. Por isso, em Lviv tenta evitar-se que o mesmo aconteça.

Pendurados em andaimes, três trabalhadores forram os vitrais da Catedral Latina com chapas metálicas e enrolam com lonas as estátuas da Capela Renascentista. Ali perto, na Igreja Arménia, do século XIV, é removida do altar uma peça de madeira de valor incalculável que mostra Jesus, Maria e Maria Madalena, salva em 1941 instantes antes da invasão nazi. Parimónio Mundial da Humanidade, o centro de Lviv exibe a herança que polacos, arménios, judeus e alemães deixaram na cidade é uma peça-chave da identidade cultural ucraniana.

“Não tenho dúvidas de que Putin quer destruir esse legado no âmbito da sua ideologia fantasista de que a Ucrânia foi inventada pela Rússia e não tem a sua própria História”, diz Sadovyy. “Esta é a capital cultural do país e uma das cidades mais bonitas do mundo. Todas estas jóias não nos pertencem só a nós, Ucrânia, mas sim a todo o mundo. Durante as duas guerras mundiais Lviv não foi destruída porque está sob a protecção de Deus. É uma cidade de Deus”.

Mulher reza pelo fim da guerra na Igreja dos Sagrados Apóstolos Pedro e Paulo, em Lviv. É nesta igreja que os soldados ucranianos vão pedir aconselhamento aos padres sobre os dilemas morais de matar o inimigo.

Mulher reza pelo fim da guerra na Igreja dos Sagrados Apóstolos Pedro e Paulo, em Lviv. É nesta igreja que os soldados ucranianos vão pedir aconselhamento aos padres sobre os dilemas morais de matar o inimigo. © Créditos: Tiago Carrasco

Na Igreja dos Sagrados Apóstolos Pedro e Paulo, o padre Vsevolad Semenenko, 38 anos, olha para o altar repleto de objectos e estátuas enrolados em panos. A sua maior preocupação é, porém, organizar os funerais dos soldados e milicianos de Lviv caídos nas frentes de batalha e aconselhar os combatentes crentes que partem para a guerra imersos em dilemas morais.

“Eles choram muito porque dizem não saber se vão conseguir viver em paz depois de matarem o inimigo”, afirma. “Nós dizemos-lhe que eles não devem sofrer porque não vão pecar. Estão a combater seres humanos que dizem ser cristãos mas não o são, porque eliminam civis inocentes, atiram sobre hospitais e escolas, grávidas e crianças. Costumamos dizer-lhes que eles não vão matar ninguém. Os russos que eles matarem já se suicidaram espiritualmente”.

A guerra alastra-se a ocidente

Na madrugada de sábado para domingo, por volta das 5h50 da manhã, a base militar de Yavoriv, na região de Lviv e a escassos 20km da fronteira com a Polónia, país membro da União Europeia e da NATO, foi atingida por 30 mísseis russos. O Centro Internacional de Manutenção de Paz e Segurança da Ucrânia servia, entre outras coisas, para treino de militares ucranianos por parte de instrutores da NATO e era também depósito de armamento importado pela fronteira polaca.

Por isso, muito se especula ainda sobre a presença de soldados e instrutores estrangeiros na base aquando do ataque. Segundo as autoridades ucranianas, 35 pessoas, todas ucranianas, morreram no bombardeamento aéreo, ao passo que 134 ficaram feridas. A propaganda russa congratulou-se por ter eliminado “pelo menos 180 mercenários estrangeiros”.

O Contacto sabe, através de fonte de espionagem militar no terreno, que a base estava a ser usada por quinze portugueses: cinco (um destes com dupla nacionalidade luso-ucraniana) em missão oficial e dez não oficiais, a combater na Ucrânia por sua conta e risco. No entanto, refere a mesma fonte, os portugueses já não estavam na base quando o bombardeamento ocorreu.

A proximidade a Lviv e, especialmente, à fronteira com a Polónia, fez soar os alarmas da NATO. “Deixámos muito claro à Rússia que o território da NATO será defendido não só pelos Estados Unidos, mas também pelos aliados”, anunciou John Kirby, porta-voz da Aliança. Uma provocação russa ou um simples erro de cálculo no disparo de um míssil pode despoletar uma guerra global.

Cartaz no centro de Lviv mostra uma mulher, representando a Ucrânia, a executar Vladimir Putin. As ruas de Lviv têm bastante propaganda de guerra.

Cartaz no centro de Lviv mostra uma mulher, representando a Ucrânia, a executar Vladimir Putin. As ruas de Lviv têm bastante propaganda de guerra. © Créditos: Tiago Carrasco

Na aldeia de Starychi, a apenas 5km das instalações atacadas, os habitantes ainda não tinham parado desde que tiveram o seu sono interrompido pela fúria das explosões. Muitos esconderam-se em abrigos improvisados e, assim que puderam, levaram as mulheres e as crianças para a Polónia, para depois partirem para a base de forma a auxiliar os feridos e abastecer de víveres os voluntários.

Oleg Nych tem uma mercearia e uma farmácia na povoação e abrigou-se com a família num celeiro. “Nós não podemos sair daqui porque as nossas lojas são estratégicas para abastecer os heróis que estão a defender o país. Temos o dever de não mostrar medo para não afectar os nossos vizinhos”, diz. “Putin é um assassino cem vezes pior que o Hitler. Cada século tem o seu genocida. Veio o Hitler e agora veio o Putin, enviado pelo diabo”.

Oleg diz-se disposto a lutar até à morte: “Tenho uma arma e munições. Cada uma delas vai ser para um moskal [nome pejorativo para um russo] e a última, se tiver de ser, é para mim”. O pedido de todos é só um: que a NATO “feche o céu”, ou seja, interdite o espaço aéreo a aviões russos, algo que o Ocidente se mostra reluctante em fazer com receio de originar um conflito à escala mundial.

Svetlana nasceu no meio da última das guerras mundiais, em 1944, em Kiev. A judia, de 78 anos, sobrevivente do Holocausto, chegou a Lviv no domingo após ter sido resgatada dos arredores de Kiev por uma associação israelita. “Nasci no tempo da guerra, da fome e do frio, não havia nada para comer, nem uma migalha de pão, não tinhamos roupas, nada. Mataram o meu pai dois meses depois de eu nascer, sou uma filha da guerra”, conta.

“Vivi depois em paz na União Soviética, com pouco, mas em paz. E como era bom. Agora há coisas terríveis a acontecer. Tenho quase 80 anos e voltaram as explosões, as insónias, as sirenes, as idas para o bunker. Tanta morte, tanto sofrimento. Nem nos meus piores pesadelos pensei que isto ia voltar a acontecer”.

(Autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico)

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