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À boleia do vento

Recusam o avião, partem sem pressa. Todos os anos, centenas de jovens de mochila às costas surgem pelas marinas de Lagos ou de Cascais, de Gibraltar ou da Bretanha, das Canárias ou de Cabo Verde. Procuram uma boleia – uma boleia a bordo de um veleiro, que os leve ao outro lado do oceano. Retrato desta nova tribo nómada, a povoar um meio que há décadas junta elites endinheiradas e loucos aventureiros.

“Chegar às Caraíbas de avião é como entrar numa casa pela chaminé. A porta aqui é o mar!”, diz um dos velejadores à boleia

“Chegar às Caraíbas de avião é como entrar numa casa pela chaminé. A porta aqui é o mar!”, diz um dos velejadores à boleia © Créditos: Francisco Pedro

NOVEMBRO 2012: LONGITUDE 15° OESTE

Termina a época dos ciclones no Atlântico, começa a das travessias: o mar das ilhas Canárias fervilha de veleiros. Junto à marina de Las Palmas, entre os majoritários pólos e sapatos de vela, há jovens de mochilas e instrumentos de música as costas. Caminham quilómetros pelos pontões, nadam até aos barcos ancorados: "Bom dia! Por acaso vão atravessar o oceano? Precisam de tripulantes?".

"A boleia de barco consiste em perguntar às pessoas que têm veleiros se gostariam de te embarcar, em troca de que tu ajudes na navegação, faças pequenos trabalhos, tomes o leme, cozinhes", explica Berta, uma catalã de 22 anos. Cabelo curto, olhos brilhantes apontados ao lado de lá do oceano. Cansada das grandes cidades, Paris, onde estudou literatura, e Barcelona, onde cresceu.

"Tinha esta ideia de partir, fazer uma grande viagem. A boleia é super livre. A qualquer momento podes dizer 'hoje ponho-me à procura de um barco para outro lugar'. E, se não tens dinheiro, abre-te uma possibilidade de viajar."

Todos os anos, por esta altura, são centenas de jovens como Berta que surgem pelas marinas de Lagos ou de Cascais, de Gibraltar ou da Bretanha, para procurar uma boleia para atravessar o oceano. E é aqui, nas Canárias, que todos os caminhos se cruzam.

"Las Palmas é um pouco louco. Tornou-se a Meca da boleia de barcos", conta Manon, jovem austríaca de cabelos loiros, que com o seu companheiro Adrien embarca numa viagem que os levará a Cuba. "Sabíamos que se tinha tornado super popular nos últimos anos, porque toda a gente fala disso. Mas quando chegámos ficámos chocados: havia hordes de viajantes à boleia. Dissemos 'uau, nunca conseguiremos encontrar um barco.'"

Para Alexis e Flo, irmãos de 28 e 24 anos que fugiram ao mau tempo parisiense para descobrir a América do Sul, a busca dura já há um mês.

"Temos todos algo em comum, mas um sem fim de trajectórias diferentes. Há gente de todas as nacionalidades, velhos e novos, mais ou menos hippies, pessoas ricas, da classe média, ou cujos pais nunca tiveram dinheiro."

O "bateaustop", como foi baptizado em francês, faz-se em qualquer parte do mundo onde haja veleiros e não é um fenómeno de agora.

"Já o meu pai e o meu tio navegavam à boleia. Mas era diferente: era algo mais entre marinheiros, havia muito menos gente. Acho óptimo que haja tanta gente, porque abre o meio a outras pessoas", conta Quentin. Cabelos compridos soltos, pequeno Mogli dos mares, cresceu a bordo de um veleiro, e procura agora um barco para ir ter com o seu irmão a Guadalupe.

"Mesmo que tenha sempre havido os ricos, com os barcos super belos, antes havia sobretudo aventureiros. As Canárias e as Caraíbas estavam repletas de viajantes. Hoje a maioria são velejadores de férias ou reformados, que ficam pelos bares das marinas. Os viajantes à boleia trazem esse espírito de descoberta, de aventura".

Há capitães que aproveitam para exigir uma contribuição para a caixa de bordo que vai muito além das despesas da viagem: 10 a 40 euros por dia. A partir de Janeiro, haverá cada vez menos barcos a atravessar. Há quem desista, há quem faça novos planos.

"Mesmo havendo muita gente, a procura não se torna competitiva, há muita entre-ajuda. Todos partilham os seus planos: 'Vai ali, há este e aquele barco'", contam Alexis e Florian.

Dezenas de jovens viajantes ocuparam um enorme hotel abandonado, voltaram a dar-lhe vida e uma gestão colectiva, para que possa acolher quem precisa. Partilham cigarros e canções, sonhos e saberes. Partilham o prazer de partir sem pressa. "E", admite Alexis, num sorriso, "toda a gente acaba por ter sorte".

DEZEMBRO 2012: LONGITUDE 30° OESTE

Alexis imaginara-se na América Latina pela altura do seu aniversário. A previsão falhou uns meses. Os dois irmãos e o casal de reformados que os embarcou estão sentados na proa, especialmente decorada. Há bolo e ementa especial.

Mindelo (com muitos veleiros e de jovens a boleia) e as ilhas de Cabo Verde desaparecem lá onde nasce o sol. O imenso azul toma conta da paisagem. Sem aviso, chega a chuva torrencial. "Ali continuamos meia hora, de t-shirt e calções, encharcados, a comida transformada em sopa. Felizes, como crianças!"

"A viagem começa logo com a felicidade de ter encontrado um barco, de finalmente deixar Las Palmas. Partir, avançar, deixar a Europa!", diz Alexis.

"É uma alegria que não há quando ando à boleia em terra: subo a um barco e já estou feliz, só por navegar", conta Berta. "Entrar no barco de alguém é como entrar na sua pequena cabana. Está cheio de fotos, livros, histórias das viagens."

Manon, habituada a correr as estradas do mundo à boleia, lembra que num barco "há o aspecto psicológico de passar imenso tempo com alguém, num espaço super confinado, e de se pôr à sua disposição".

Ela e Adrien, com dois outros "bateaustopeurs", seguem no iate de um rico empresário francês, que cedo se revela "um capitão um pouco ditatorial": "Tínhamos todos medo das suas intensas flutuações emocionais".

Como a maior parte dos que atravessam os mares à boleia, nenhum deles tinha alguma vez navegado.

"Não conhecia absolutamente nada. Nem sabia se enjoava ou não. É uma descoberta de A a Z, é super excitante.", conta Manon. Descobrem Tabarly e Moitessier e deixam-se inspirar pelos grandes velejadores. A experiência desperta paixões, por vezes para a vida.

Para Manon e Adrien, mais do que um sonho antigo, viajar assim era uma escolha óbvia: não tinham dinheiro para viajar num cargueiro, e há muito que recusam o avião.

"Quando sabes que há um verdadeiro problema de emissão de CO2 e continuas a viajar de avião só para teu próprio prazer, é algo tão egoísta, e tão desprezante em relação a todos os que não o podem fazer e que sofrem as consequências das alterações climáticas... O avião é um dos últimos marcadores das injustiças sociais ao nível do planeta: nós temos a sorte de apanhar aviões super baratos, um privilégio dos super ricos. Os aviões vão dos sítios dos ricos (Paris, Londres e Frankfurt) aos sítios dos pobres, não ao contrário."

"De avião estás muito mais enquadrado, há meses que sabes que vais chegar no dia tal, à hora tal, ao sítio tal", acrescenta Quentin, "assim tudo é imprevisível."

"Quando vês uma ilha aproximar-se, a terra à vista, é de loucos", explica Alexis, "contas os dias e as horas."

"Quando recusas apanhar o avião e vais pela terra ou pelo mar, isso faz-te descobrir e compreender tantas outras coisas, sobre a história, a geografia... vês outra coisa", diz Manon.

"Para mim é impressionante estar a fazer um trajecto que é tão marcante historicamente: a rota da colonização, das conquistas, do esclavagismo." No mesmo oceano, a mesma rota: outrora feita para expandir o império, para conquistar, hoje para escapar ao império do consumo, para descobrir outras paisagens e formas de viver.

MARÇO 2013: LONGITUDE 60° OESTE

Le Marin, na Martinica, é a maior marina das Caraíbas. Os bares, repletos de gente, têm as paredes repletas de anúncios. Dominica, Colômbia, oceano Pacífico, Europa... Há barcos a partir em todas as direcções – e jovens desejosos por um lugar a bordo.

Ponto de encontro daqueles que conseguiram chegar a este lado, palco de reencontros efusivos entre "bateaustopeurs" que se tinham cruzado nas Canárias, em Cabo Verde, noutras ilhas das Caraíbas, semanas ou meses antes. Partilham-se histórias impressionantes das travessias.

Há Jean-François, o guitarrista e geólogo suíço de 70 anos, um experimentado das boleias de barco. Os dois jovens do Quebeque, que, sem nunca terem navegado antes, descobrem que se safam melhor do que o capitão, que acaba por lhes confiar o barco e dinheiro para o levarem até ao Canadá – as grandes navegações não eram para ele.

Há Patt, australiano descendente dos famosos revoltosos do Bounty, que deu boleia a quinze jovens a bordo do seu catamaran. Há Julien, músico e palhaço, cansado de uma vida de digressões pela Europa, que quer percorrer sozinho a Amazónia de canoa.

Berta juntou-se a Alexis e Flo. Faz dois meses que descobrem a Martinica à boleia. Montaram uma pequena cabana à saída da marina. Fazem artesanato com sementes locais, que vendem aos turistas. Vivem da comida que os supermercados e os barcos-charter atiram fora. Procuram um barco que os leve à Colômbia ou Venezuela.

"Não é porque não tens dinheiro que não podes fazer uma data de coisas. Mas é preciso ousar fazê-las. Não ter vergonha de vasculhar nos contentores do supermercado, fazer refeições de legumes recuperados, dormir nas praias ou em casa de pessoas que te convidam", explica Berta.

"Os habitantes habituaram-se a que os brancos sejam turistas, americanos ou franceses, e vêem-te logo como uma carteira. Eu procuro mais o contacto com as pessoas, ou simplesmente com o espaço e as possibilidades que ele dá. A agricultura, a pesca, tudo isso me interessa. Quero descobrir como se faz aqui. Enquanto que há uma data de turistas que vêm simplesmente para se desconectar do seu trabalho. O facto de não teres muito dinheiro, de te verem assim, de dormires nas praias, aproxima-te das pessoas daqui. Seria diferente se eu chegasse com o meu 4x4 e as minhas roupas a 80 euros a peça."

"As pessoas que vieram de avião têm a impressão de que não chegaram sequer a descer do avião, a dar-se conta de que estão aqui. Nós navegamos, apanhamos as ondas, num ritmo mais livre, mais perto da cultura das Caraíbas", diz Adrien. "Chegar às Caraíbas de avião", acrescenta o jovem arquitecto, "é como se entrasses pela chaminé. A porta aqui é o mar!".

Manon e Adrien conheceram Quentin e juntaram-se os três numa aventura inesperada: compraram em conjunto um velho veleiro. Fazem incursões nos barcos que se afundam abandonados nas imediações da marina para recuperar todo o tipo de objectos. Dos contentores dos supermercados enchem as provisões de bordo. Se estão a zero de dinheiro, transbordam de excitação.

Hoje é o aniversário de Manon e é a primeira navegação ao longo da costa martiniquesa. A estreia junta Alexis, Flo, Berta, Quentin, Adrien e Manon. À saída do pontão, vêem-se reflectidos no super iate de Bill Gates, também por ali de passagem. Mais tarde, sob as estrelas, partilham histórias e canções no cockpit. O barco avança no mar das Caraíbas.

Outrora povoado de piratas, dissidentes dos impérios europeus, hoje povoado destes nómadas de mochila às costas, dissidentes da sociedade do consumo-trabalho, que pilham os contentores dos supermercados, conquistam o tempo, e têm por tesouro a aventura.

"Pode ser visto como um luxo: dar-se todo o tempo que nós nos damos, procurar todas as complicações que procuramos, só para andar a boleia de barco, quando podíamos simplesmente apanhar um avião. Mas quer dizer tantas outras coisas, viajar desta forma...", diz Manon.

"Mudei verdadeiramente a minha noção do tempo," confessa Alexis. "O barco avança super lentamente, para o encontrar demoras montes de tempo. Há semanas que estamos à procura de um barco para a América do Sul. Se eu tivesse esperado cinco minutos pelo meu metro estaria bem mais enervado".

"Aprendemos a não ter pressa, a desfrutar da beleza dos sítios onde estamos."

"Quando alguém nos pergunta se estamos de férias, dizemos não", diz Alexis. "Estamos de viagem." Porquê? "As férias são só uma pausa no teu tempo de trabalho", explica Manon. "Para nós", atira Quentin do fundo do barco, "o tempo de trabalho é uma pausa nas nossas vidas".

Francisco Pedro, nas Caraíbas

Publicado no CONTACTO em 3.04.2013