O que eu queria mesmo era um folhado de carne
A pastelaria luxemburguesa é simpática nos doces, mas falha redondamente quando a questão se torna salgada.
Não há tradição de comer salgados no Luxemburgo e isso é uma tragédia de que ninguém fala. Se fores a meio da manhã ou a meio da tarde a uma pastelaria luxemburguesa, o melhor que encontras é uma sanduíche de qualquer coisa. Pão com queijo e fiambre, pão com queijo apenas, ou só com fiambre. Um croque monsieur, com sorte. Uma quiche, talvez. Trazem salada como acompanhamento. Opções aborrecidas para abastecer a pequena fome que nos assola a todos entre a saída do trabalho e a chegada a casa.
A pastelaria luxemburguesa é simpática nos doces, mas falha redondamente quando a questão se torna salgada. Uma das coisas que mais me faltam da minha vida lisboeta é o folhado de carne. Se me esforçar verdadeiramente, se for à procura de um salgado para compensar a tarde, sou provavelmente capaz de encontrar um lanche misto, um rissol de carne e outro de camarão. Posso conseguir um pão com chouriço, com empreendimento e esforço. Ou, maravilha das maravilhas, um folhado de salsicha e uma empada de galinha. Mas nunca neste país encontrei um folhado de carne – e essa é dor que me desfaz o coração.
Eu, que sou de Lisboa e particularmente do bairro da Graça, habituei-me a crescer perto de algumas das melhores pastelarias da capital portuguesa. É um lugar onde convivem dois mundos. Nas vitrinas expõem-se as montras que abastecem a gula forasteira: pastéis de nata e bolas de berlim, bolos sortidos com creme ou sem creme. Mas, lá dentro, na prateleira da ponta, jaz o segredo português valiosíssimo de que ninguém fala: o salgado.
As pastelarias portuguesas têm uma ética na hora de apresentação dos salgados. Se aos doces reservam os palcos principais das montras, permitindo showrooms complexos de formatos e texturas que prendem o olhar à gula, nos folhados e fatias de bola reina uma tabela de segredo que permite misturar tudo num único tabuleiro, esperando que o consumidor adivinhe a exata medida de delícia que vai encontrar em cada produto.
Uma empada de galinha pode permanecer perfeitamente exposta ao lado de um rissol de camarão, mesmo que o primeiro tenha ido ao forno e o segundo à fritadeira. Encaixam-se os folhados de salsicha na travessa onde se pôs os de espinafre e requeijão – e ainda se oferecem os croquetes de carne no mesmo suporte. São os salgados, afinal de contas, e para eles não há funfuns nem gaitinhas.
Talvez seja precisamente por isso que lhes sinto tamanha falta. Assim que chego a Lisboa, tento ir à Graça comer um folhado de carne – os da Cabreira são os melhores do país. E na prateleira dos fundos há os simples e os com queijo, os que levam cogumelos e os que trazem fiambre. Os fritos, os de forno e os de panela estão separados em travessas diferentes. Não são para turistas. São para portugueses.
Passei uns meses fora do Luxemburgo, e sonhei com um folhado de carne. À chegada, procurei-o por mais de uma dezena de sítios sem nunca o encontrar. Havia sanduíches por todo o lado, rissóis de carne e camarão nas casas portuguesas, um folhado de salsicha aqui e outro misto ali. Folhado de carne nada, nicles. Era o sabor que eu precisava. Era sabor que dava jeito ao Luxemburgo, também. Se souberem onde os há, por favor digam qualquer coisinha. E vai que ainda somos capazes de torná-los num pitéu para toda a gente.
(Grande Repórter)