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ReportagemBettendorf

O burgomestre português que não chegou a ser e que agora quer ganhar

Há seis anos, houve uma surpresa em Bettendorf: José Vaz Rio foi o candidato mais votado nas eleições comunais. Poderia ter-se tornado o primeiro presidente de câmara português no Luxemburgo, mas recusou o cargo por achar que não estava à altura. Desde então, estudou a língua e as leis do país. E agora volta à corrida. Para ganhar.

Grande Repórter

Trim-trim-trim-trim. No dia 9 de outubro de 2017, o telefone de José Vaz Rio tocou. No ecrã aparecia um número português que ele não conhecia – e por isso hesitou se haveria ou não de atender. Estava numa reunião com os candidatos à comuna de Bettendorf que tinham conseguido arrecadar mais votos nas eleições do dia anterior. E tinha acabado de lhes anunciar que, apesar de ter tido o melhor resultado, iria renunciar ao posto de burgomestre. Trim-trim-trim-trim. O aparelho continuava a convocar-lhe atenção. Já tinha largado a bomba, e por isso decidiu atender. “Deem-me só um minuto que eu já volto”, disse aos colegas, e saiu de uma sala de conferências cheia de gente estupefacta.

Do outro lado da linha falou-lhe uma voz que tinha a impressão de conhecer, mas não sabia bem de onde. “Olá, sabe quem fala”, perguntaram-lhe, e ele balbuciou que não estava bem a ver. "Sou Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República Portuguesa, e queria felicitá-lo pelo seu resultado nas eleições luxemburguesas". Apesar de Marcelo não lhe pedir diretamente para aceitar a liderança da autarquia, Vaz Rio sabia que aquela chamada acrescentava pressão. Era afinal o primeiro português a ganhar uma câmara no Grão-Ducado. "Mas a minha decisão estava tomada. Passei uma noite sem dormir nem saber o que fazer, mas a partir do momento em que fiz uma escolha, ela estava feita."

A sua deliberação deixou um punhado de gente revoltada. Pois se tinha ido a votos, se tinha dado a cara por um projeto, porque raio recuava agora que o povo tinha decidido confiar nele? Vaz Rio continua convicto de ter tomado a decisão correta. "Eu não sabia sequer falar luxemburguês, sou um homem humilde e com poucos estudos. Tenho ideias para a minha terra, sim senhor, e tenho força para pô-las em marcha", diz agora num gabinete da autarquia. "Mas precisava de algum tempo para perceber as leis, a língua, as minhas obrigações. Agora, que tive esse tempo, estou pronto para assumir as responsabilidades que o povo me quiser entregar."

Passou os últimos cinco anos como primeiro vereador de Bettendorf, uma espécie de vice-presidência da autarquia. O cargo de burgomestre acabaria por ser assumido por Pascale Hansen, que não se recandidata este ano ao cargo. E, durante quatro anos, frequentou aulas da língua nativa do Grão-Ducado, que lhe permitem falar de forma corrida, trocar mensagens escritas, meter-se com os gaiatos da escola que existe mesmo ao lado da sede do município. "Foi muito engraçado voltar à escola com esta idade", ri-se. "Tinha aulas todas as segundas-feiras das sete da tarde às nove da noite. E tinha de apresentar os deveres, como qualquer outro aluno. Passava o fim de semana naquilo, a trocar as voltas ao sotaque para acertar. Mas o que eu mais gostava era das práticas de conversação que tínhamos. Porque é isso que eu mais gosto, de falar com pessoas."

Adelaide e José Vaz Rio cumprem a tradição transmontana na sua casa em Gilsdorf: o queijo e o fumeiro na mesa.

Adelaide e José Vaz Rio cumprem a tradição transmontana na sua casa em Gilsdorf: o queijo e o fumeiro na mesa. © Créditos: Gerry Huberty

Isso é bastante notório quando se passeia pelas ruas da sede do município – e ainda mais quando está na aldeia onde vive há mais de 40 anos, Gilsdorf. Se calha passar de carro, as pessoas levantam-lhe os braços e acenam. Não pode passar por uma esplanada sem parar para beber um café ou uma cerveja – e há de haver sempre alguém a pedir-lhe que resolva um imbróglio ou um problema. Ele acena, toma nota, guarda contactos. "Quando há uma coisa para resolver, tento resolvê-la logo. Esta coisa de adiar e pensar muito no que se vai fazer é demasiado comum no Luxemburgo e na nossa comuna. Ora aí está uma coisa que eu quero mudar: a burocracia desnecessária."

Ideias para mudar o mundo

Em 2017, havia apenas 2.800 habitantes em Bettendorf, o que significa que as candidaturas eram individuais. Mas como agora a população ultrapassou os 3.000 (em bom rigor, são 3.080 cidadãos), o sistema eleitoral obriga a que se formem listas de candidatos à comuna. São três as candidaturas concorrentes e, numa delas, é José que está à cabeça. A tabela onde ele aparece tem no total 11 elementos – maioritariamente luxemburgueses, com alguns lusodescendentes pelo meio, mas no topo está ele, o homem de 66 anos que toda a gente trata por "José" e mais nada.

O candidato português tem um plano traçado para o caso de vencer as eleições. "Uma das minhas principais prioridades é construir bacias de retenção para as cheias, que desviem as águas quando houver inundações como as que tivemos no verão de 2021", atira. A pequena comuna do norte do Grão-Ducado é banhada pelo Tirelbaach e sobretudo pelo Sûre, um dos principais rios do país. "As catástrofes são recorrentes. E estas obras são relativamente invisíveis. Podem não ganhar votos porque não são trabalhos de montra, mas são essenciais ao bem estar da população", atira o candidato.

Também tem projetos sociais na manga, e o seu objetivo é misturar os mais novos com os mais velhos. "Quero fazer uma casa para os idosos e os jovens se encontrarem e trocarem aprendizagens. E até já temos uma infraestrutura preparada em Bettendorf para fazê-lo, a Härenhaus. Às vezes não é assim tão difícil mudar o estado das coisas, basta arregaçar as mangas", opina. Além disso, quer desenvolver uma rede de apoio aos cidadãos séniores com a construção de residências, serviços de entregas de medicamentos, apoio às tarefas domésticas e táxis a custo reduzido para que a mobilidade esteja assegurada.

Faz questão de cumprimentar Tine Mulder, que aos 76 anos decidiu casar em Bettendorf.

Faz questão de cumprimentar Tine Mulder, que aos 76 anos decidiu casar em Bettendorf. © Créditos: Gerry Huberty

Para os mais novos, quer construir um campo desportivo em conjunto com os clubes locais – e não lhe sai da cabeça a ideia de ter um campo de voleibol de praia nas margens do rio. Aumentar os lugares da Maison Relais, onde as crianças passam os tempos livres enquanto os pais trabalham, está nos planos. "Mas se há uma urgência que eu tenho em resolver é a instalação de semáforos com medição de velocidade para proteger os alunos das escolas. A estrada principal tem imenso trânsito, sobretudo gente que comuta da Alemanha para o Luxemburgo e tem pressa em carregar no acelerador. Preservar a integridade física das nossas crianças é essencial", defende.

Mas é na habitação que José Vaz Rio vê as maiores disparidades do concelho – e é nessa área que ele diz que alguma coisa tem de mudar e rápido. "Este é o grande problema que temos no Luxemburgo e, da nossa parte, temos um plano para o concelho", avisa. A primeira coisa que o candidato lusodescendente quer fazer é desbloquear as licenças para construção de novas casas. "Há uma parte da burocracia que tem a ver com os aspetos ambientais e patrimoniais. Mas, desde a pandemia de Covid-19, há também atrasos injustificáveis que se devem à inércia da comuna. A crise de saúde pública tem as costas largas para adiar uma data de resoluções e deixá-las em banho-maria. Estou farto desses adiamentos sem sentido que existem em Bettendorf. Estou farto do 'depois logo se vê'. O tempo para fazer as coisas é só um: o mais depressa possível", e mete-se no carro a caminho de casa.

Zé, homem do povo

Adelaide Vaz Rio vai cortando o queijo e o salpicão em fatias. Em casa transmontana ninguém entra sem que lhe seja servida comida e, se esta noite, o marido vai ter reunião com os demais candidatos da lista, ai dela que não lhes pusesse petisco à mesa para irem debicando. "Naquele dia em que soubemos que ele tinha ganho as eleições ele ficou tão nervoso", conta ela. "Estávamos a ver o jogo de futebol em Gilsdorf ele recebeu a notícia ao intervalo." Nem um nem outro quiseram acreditar, até lhes mostrarem o site com a contagem oficial. O marido disse-lhe para irem embora. "Chegámos a casa e eu disse-lhe: Zé, toma a decisão que quiseres. És o meu homem e eu apoio-te como sempre te apoiei em tudo. Ele ficou a noite às claras, a pensar, a pensar. E depois pronto, fez a escolha dele."

Laida, é assim que ela é conhecida por toda a gente, não se inibe no entanto de dizer que ela e os três filhos do casal sentiram um orgulho imenso pelo resultado – e novamente pela humildade com que ele decidiu abdicar de uma posição de poder. "Mas percebi-o, sabe? Sempre tentámos ensinar uma coisa aos nossos filhos, que foi não pensarem apenas neles mas pensarem no que era melhor para todos. E ele deu-lhes o maior exemplo a que eu pude assistir. Temos uma história de amor muito antiga, nós os dois. Mas nesse dia consegui amá-lo ainda mais", diz emocionada, como se fosse cebola e não queijo que a mulher estava a partir.

Desde que chegaram de Portugal, ele no final de 1979, ela no início de 1980, meteram na cabeça de que haveriam de se esforçar para conhecerem o Luxemburgo e os luxemburgueses. "Às vezes há uma bolha portuguesa e as pessoas não saem da sua comunidade, o que torna a integração difícil", diz José Vaz Rio. "Eu tentei sempre conhecer os meus vizinhos, saber quem eram, quais eram as tradições deles. Não imagina como fiquei contente no dia em que descobri que eles comiam tripas como nós", diz com uma gargalhada.

Meteu-se na bola, ao menos essa era linguagem que sabia falar. "Nunca fui grande jogador da bola, mas sempre gostei da comunhão que o futebol consegue provocar. Dentro de campo somos todos iguais", remata certeiro. Então entrou para o Jeunesse de Gilsdorf. Foi jogador, técnico e hoje é presidente do clube. Todos os dias vai aliás dar uma volta pelo campo, para ver se está tudo bem. Tem um orgulho danado por ter conseguido instalar um placard eletrónico no relvado da II Divisão. "E comprámos um robot para cortar a relva. Às vezes venho aqui vê-lo a trabalhar. Tenho um orgulho neste campo verdinho e bem aparado que você nem consegue imaginar", confessa.

José Vaz Rio é também presidente do Jeunesse de Gilsdorf. Todos os dias passa no campo para ver o robot que corta a relva.

José Vaz Rio é também presidente do Jeunesse de Gilsdorf. Todos os dias passa no campo para ver o robot que corta a relva. © Créditos: Gerry Huberty

Além disso, ajudou a fundar um clube português na região e dá a voz num grupo coral onde a mulher entrou. "A minha esposa estava sempre a queixar-se que faltavam vozes masculinas e eu decidi contribuir. Onde eu fizer falta, vou", explica-se. Com isso e todas as pessoas que o abordam na rua, acaba por ter os dias bastante ocupados. Num dos dias em que foi feita esta reportagem, fez questão de ir dar um abraço a Tine Mulder, uma holandesa de 76 anos que habita em Moestroff, outra das aldeias do município. Após viverem 31 anos juntos, ela e o marido decidiram esta semana casar-se e houve toda uma comunidade comovida a assistir à cerimónia. O amor não tem tempo, nem idade.

Agora, se a conversa é sobre construir pontes, aquela que José Vaz Pinto mais orgulho tem é de ter feito um acordo de geminação entre as suas duas terras de coração: Bettendorf e Vila Pouca de Aguiar. Em frente à sede do município está uma placa que assina a cerimónia, celebrada em junho de 2019 no Luxemburgo, com os autarcas dos dois países presentes. "Um ano depois, levei uma comitiva de 50 pessoas daqui à minha terra e repetimos o acordo em Portugal. Foram todos a minha casa, viram as minhas raízes, comeram rojões e regalaram-se. E eu estava tão orgulhoso que parecia que conseguia voar", diz. Foi, admite sem embaraços, um dos dias mais felizes da sua vida.

Um português do mundo

José Vaz Rio nasceu numa pequena aldeia de Vila Pouca de Aguiar chamada Raiz do Monte. Aos quatro anos, os pais emigraram para o Brasil e levaram o rapaz para outro hemisfério e outro mundo. Instalaram-se em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, onde ele cresceu feliz até aos 15 anos. "Tínhamos um café e as coisas corriam bem. Mas depois começámos a ter notícias de assaltos, raptos e assassinatos e os meus pais começaram a planear o regresso", explica. De Portugal chegavam notícias de uma revolução que tinha deposto a ditadura. Os tempos adivinhavam-se promissores.

Quando chegou e conheceu a sua prima direita, apaixonou-se imediatamente. "Ela era a rapariga mais bonita da aldeia, mas éramos família e por isso tivemos de começar a namorar às escondidas. Mas a nossa paixão era tão verdadeira que nunca mais nos conseguimos largar um ao outro", conta ele. Ela escuta e concorda. "A nossa família não aceitava a relação então fomos nós contra o mundo", diz Adelaide. Casaram aos 17 só com as testemunhas e nenhuma festa. E instalaram-se numa casa velha de pedra "onde o vento entrava de um lado e saía de outro."

O rapaz encontrou trabalho no Campo de Jales, ali mesmo ao lado. Era aldeia e cidade ao mesmo tempo, porque acolhia a única mina de ouro do país e uma enorme comunidade que descia aos fundos da terra para garimpar minério. "Eu nem tive tempo de estranhar a vinda do Brasil. Vinha de um sítio grande mas ali também havia muita vida. Escolas, armazém, salões de festas, até cinema, imagine lá", recorda. Desde essa altura, coleciona todo o tipo de pedras e tem vários exemplares dispostos em prateleiras na sua casa de Gilsdorf. Pega num pedaço de volfrâmio, noutro de granito onde o ouro areado reluz amarelo, e todo ele é sorrisos. São os seus tesouros.

Passa por um café na sua aldeia e não tem como não parar. Toda a gente quer falar com José.

Passa por um café na sua aldeia e não tem como não parar. Toda a gente quer falar com José. © Créditos: Gerry Huberty

Aos 18 foi convocado para a tropa – recruta em Elvas e serviço militar em Vendas Novas, dois anos de farda no Alentejo. "Os meus pais, entretanto, tinham regressado e mudaram-se para o Luxemburgo. E eu, assim que saí do Exército, pus-me numa carrinha e fiz-me à estrada." A prioridade das prioridades era trazer Adelaide e a filha mais velha do casal, acabadinha de nascer. "Trabalhei três meses na construção civil até poder alugar uma casa. Depois lá fui buscá-las a Trás os Montes", recorda. Mudou de emprego para a fábrica de pneus da GoodYear, onde passaria três décadas redondas. A mulher fazia limpezas, a vida ia-se compondo. Acabariam por ter mais dois rapazes, nascidos já no Grão-Ducado.

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Não havia tantos portugueses como hoje no Norte do Luxemburgo, recorda. Estranhou o tempo frio, mas transmonstanos estão habituados à neve e eles adaptaram-se. "Desde o início ajudava a organizar os bailaricos, as festas de Carnaval, as festas luxemburguesas. Foi um espírito que nunca perdi até hoje e que nunca quero perder. Quando vamos para um lugar, é importante tornarmo-nos parte dele", remata. "Nós somos de um lugar, mas o lugar também é nosso." E é esse espírito que vai a votos dia 11 de junho.