Manuel Dias, o bom ‘paparazzo’ da família real do Luxemburgo
Já lhe chamaram "o português mais conhecido do Luxemburgo", mas raramente aparece na fotografia. Manuel Dias ficou famoso pelos retratos que fez da família grã-ducal, que acompanhou ao longo de mais de vinte anos. Em vez de fugirem dele, como os famosos dos 'paparazzi', deram-lhe uma condecoração. As suas melhores fotos estão reunidas num livro que retrata três gerações de grão-duques, do falecido Jean ao atual soberano, sem esquecer o herdeiro do trono.
Manuel Dias estava a fotografar a visita de Jorge Sampaio a Esch-sur-Alzette, em 2004, acompanhado pelo Grão-Duque Henri. A comitiva avançava a pé numa rua pedonal ladeada de andaimes, e os trabalhadores portugueses da obra vieram espreitar o Presidente da República e o soberano luxemburguês. A tentar não perder pitada, Manuel Dias fotografava tudo às arrecuas, quase tropeçando, quando o Grão-Duque, preocupado, lhe pega no braço. "Fais attention, Manuel, ne tombe pas". O episódio, a que eu assisti, é um dos muitos que mostram como o português é acarinhado pela família grã-ducal.
“O Grão-Duque faz questão de me apresentar a todas as entidades", conta Manuel Dias. Em 2017, quando Marcelo Rebelo de Sousa veio ao Luxemburgo, o soberano luxemburguês viu-o no meio dos outros fotógrafos, durante a peregrinação a nossa Senhora de Fátima, em Wiltz. "Vê-me e vai chamar o Marcelo para me apresentar”, recorda Manuel Dias. Henri do Luxemburgo explicou ao Presidente da República quem era o português: "um fotógrafo que tem feito várias coisas pela família grã-ducal”. “Conhecem as pessoas, não se esquecem das pessoas. Mesmo não importa aonde, a Grã-Duquesa vem-me cumprimentar”, conta o fotógrafo amador, hoje com 71 anos.
Esta semana, Manuel Dias abriu a casa ao Contacto para recordar a história de como se converteu no "português mais conhecido do Luxemburgo". À porta, tem uma bandeira do Grão-Ducado com uma tarja negra, em sinal de luto. “Pus lá a bandeira dois dias a seguir à morte do Grão-Duque Jean, e estará lá até ao fim". Poucas horas antes de a morte ser anunciada, Manuel tinha estado à conversa com Lisi Haas, antiga secretária do Palácio e atual secretária do presidente da Câmara dos Deputados. “Na segunda-feira estivemos a falar e ela disse-me que estava muito feio, estava muito, muito mal. E aí já se começava a imaginar o pior". Ainda assim, “comove sempre um bocado e faz sempre um bocado de confusão. Conhecer as pessoas como eu conheci, é quase como seja alguém de família”.
Manuel Dias tem vários retratos da família grã-ducal, autografados pelos próprios, no escritório em casa. Não sabe onde pára a Ordem de Mérito que o Grão-Duque lhe deu em 2003. A mulher, Idalina, oferece-se para ajudar a procurar, mas acaba por trazer a medalha errada. “Não, esta é de Portugal”, diz o fotógrafo, que entretanto encontrou mesmo a condecoração do Grão-Duque no sótão, para poder ser filmada pelo Contacto. “Tens de receber uma medalha é por lavar a louça”, pica-o Idalina. Manuel não é de muitas palavras, mas admite que se comoveu com a condecoração que recebeu das mãos do atual Grão-Duque. "Um estrangeiro assim, ser um bocado reconhecido, faz prazer”
De Braga ao Palácio
Manuel Dias nasceu no lugar da Rechã, freguesia de Caniçada, no distrito de Braga, e chegou ao Luxemburgo em dezembro de 1972, com 24 anos e a quarta classe. Veio para trabalhar nas obras, mas quando chegou "havia muita neve" e a empresa com quem tinha contrato ia fechar para as férias de Natal. "Já não me quiseram”. Se não arranjasse trabalho, a autorização de residência caducava “e tinha de voltar para trás”. Encontrou emprego numa fábrica da Coca-Cola, durante um mês. Depois soube que no aeroporto pagavam mais dez francos e foi para lá, a limpar aviões e transportar bagagens. Nessa altura já era fotógrafo amador, um 'hobby' que começou na juventude. “Como queria mais tempo para as fotografias, mudei de trabalho, porque no aeroporto era noites e fins-de-semanas”. Tirou a carta de pesados e passou a ser motorista numa empresa de construção, primeiro a conduzir camiões, depois a transportar o pessoal de autocarro para as obras. Nos intervalos, tirava fotografias em eventos políticos, associativos, e sobretudo que envolvessem a família grã-ducal. "Cheguei a ir para o 'chateau' de Colmar-Berg [residência dos grão-duques] com o autocarro. Eu ia para Ettelbruck, levar o pessoal, e depois havia uma coisa em Colmar-Berg. Eu com o autocarro em frente ao palácio. Diz o polícia: ‘Tu não podes pôr aí!'. 'É pouco tempo, só vou ali dentro [risos]'”.
O fascínio de Manuel Dias com a família grã-ducal começou quando um cliente do antigo café gerido pela mulher, na mesma rua onde ainda vivem, contou que os grão-duques tinham antepassados portugueses. Levou-lhe um livro com a árvore genealógica da família que mostrava que Jean do Luxemburgo, pai do atual Grão-Duque, era neto de Maria Ana de Bragança, filha do rei português D. Miguel, por parte da mãe, e de Maria Antónia de Bragança, irmã de Maria Ana, por parte do pai (os pais de Jean, Charlotte e Félix, eram primos). "Faz um bocadinho de nostalgia”, diz Manuel Dias. "É como quando sabes que está ali uma família tua”. Começou a colecionar objetos relacionados com a aristocracia luxemburguesa: postais antigos, pilhas de revistas, livros, fotos, charutos com cintas com o rosto de cada um dos membros da família grã-ducal, que ia comprando "por aí" e acumulando no sótão de casa.
Calhou o café da mulher ser no bairro onde morava Jacques Santer, antigo presidente da Comissão Europeia, então primeiro-ministro do Luxemburgo e cliente habitual do Café de la Station. "Um dia o Jacques Santer veio ao café. 'Diz-se que tens praí umas coisitas [da família grã-ducal). ‘Eu tenho, está lá para cima, no 'grenier' [sótão], mas está tudo a monte’. ‘Não faz mal, podemos ver?’. 'Fomos para o ‘grenier’ os dois, andámos lá a remexer tudo”, recorda o fotógrafo. “Por que é que não expões?”, propôs-lhe o então primeiro-ministro. Foi também Jacques Santer que fez um telefonema para o Luxemburger Wort, o diário mais antigo do Luxemburgo, recomendando o português como fotógrafo freelance do grupo, de que faz parte também o Contacto. "Foi a partir daí que fiquei mais perto da família grã-ducal”. Ia a todas, mesmo quando não tinha encomendas dos jornais. “Eu não ganhava nada com isso. O que os jornais pagavam nem dava para romper os sapatos. Mas bom, quem anda por gosto não cansa". Manuel Dias seguiu o conselho do ex-presidente da Comissão Europeia e começou a expor no café algumas fotos e objetos da família grã-ducal, que entretanto foram aumentando. Um dia, sem avisar, o Grão-Duque Henri e a Grã-Duquesa Maria Teresa foram lá com o filho. “Entram-me um dia assim pela porta dentro, e eu sem saber de nada”. A mulher, Idalina, nem os reconheceu. “Eu estava à tarde a contar uma história aos clientes, que os clientes gostam de histórias, e naquele tempo não havia GSM [telemóveis], e eu continuei a contar a minha história". "Depois um cliente é que me disse quem eles eram, e eu disse: 'não é verdade'. E a duquesa veio e disse: 'sim, sim, c'est vrai'".
A Grã-Duquesa a assinar o seu retrato feito por Manuel Dias © Créditos: DR
De gentil "paparazzo" a fotógrafo oficial
Impressionados com a coleção, os Grão-Duques prometem voltar. Já o príncipe herdeiro, Guillaume, na altura adolescente, estava mais interessado no futebol. “Tinha ali uns emblemas do Benfica e o Guillaume queria-os, ainda os levou”, conta Manuel Dias, a rir. No dia seguinte, o canal de televisão luxemburguês ligou a pedir para ir filmar o café. "Era terça-feira, e à terça o café estava fechado", recorda Idalina. "Eles ligaram logo de manhã: 'Madame, c'est RTL'". "Oh, c'est une blague", respondeu Idalina, incrédula. E desligou. Foi preciso a televisão ligar três vezes até Idalina se convencer que não era piada.
Depois dessa visita, Manuel Dias acabou com a sala de 'quilles' do café, uma espécie de bowling à luxemburguesa, para ter mais espaço para expor as fotos que ia tirando da família real. Fez uma segunda exposição no café, e aí "estava burgomestre, marechal da corte, arcebispo, era a casa cheia de gente". O diretor do Casino, o museu de arte contemporânea, ironizou: "Tens de me dizer como é que fazes para chamares tanta gente, que eu não consigo". Idalina lembra-se que a Grã-Duquesa pediu para levar para casa o resto dos pastéis de bacalhau servidos na festa. "Ela gostava muito", diz Manuel Dias. "Estavam feitos sem trabalho, até eu os comia", brinca Idalina. A apresentação foi um sucesso, mas Manuel Dias também ouviu críticas de portugueses: "que era engraxador". Fez orelhas moucas. “A Grã-Duquesa veio sozinha, estivemos ali a falar montes de tempo, e foi dali que saiu a história do livro“.
Manuel Dias segura a fotografia que foi feita no dia da visita surpresa da família grã-ducal ao seu café © Créditos: Sibila Lind
Publicado em 2004, o livro reúne as melhores fotos que tirou da família grã-ducal. Estão lá as fotografias que fez na visita à Expo98, em Lisboa, com o Grão-Duque Jean, dois anos antes de este abdicar a favor do filho. Fotografou a tomada de posse do atual Grão-Duque, em 2000. Nesse ano esteve na exposição universal em Hanover, na Alemanha, com os atuais soberanos e com Jean do Luxemburgo. "A Grã-Duquesa andava sempre a cuidar dele, fazia muita atenção". Também foi a Inglaterra, à Academia Militar de Sandhurst, para o juramento de bandeira de Guillaume, o príncipe herdeiro: fotografou-o ao lado do Grão-Duque Jean, na mesma academia onde o antigo soberano estudou, durante a Segunda Guerra Mundial, antes de ingressar nos Irish Guards e participar no desembarque na Normandia. Tudo enquanto continuava a trabalhar como motorista na empresa de construção. “O patrão fazia um esforço e deixava-me ir”.
Grão-Duque Jean na ponte Vasco da Gama, durante a visita à Expo 98, em Lisboa © Créditos: Manuel Dias
Em 2006, os Grão-Duques convidaram-no para ser o fotógrafo oficial da boda do primeiro filho a casar, o príncipe Louis. Um casamento que provocou escândalo na época, por a noiva ser plebeia e estar grávida quando a união foi anunciada. “Olhando aos fotógrafos que há no Luxemburgo, porque há montes deles melhores do que eu e se calhar mais profissionais, com estudos e tudo, qual foi o meu espanto quando me telefonam para casa a perguntar se eu tinha tempo para fazer as fotos do casamento do príncipe Louis”. Manuel Dias tinha acabado de ser operado a uma mão, "por causa dos nervos". "E eu pus o problema: 'Eu posso ir, mas passa-se isto, terei de levar alguém comigo'. Foi mais para ajudar a levar as coisas". Do lado de lá, veio o OK. “E foi com muito prazer. Era o primeiro casamento da família grã-ducal, e telefonarem-me para casa para ver se eu o podia fazer, faz prazer”.
A era da segurança
Manuel Dias pediu a nacionalidade luxemburguesa numa altura em que não era preciso falar luxemburguês, o que já lhe causou embaraços. “Uma vez a Polícia mandou-me parar e eu mostro o bilhete de identidade luxemburguês. O polícia não larga de falar luxemburguês e eu não percebia o que ele dizia”, ri-se. Passou a mostrar o BI português, para evitar confusões, mas adora o Grão-Ducado. "Gostei sempre do Luxemburgo pelo à-vontade que a gente aqui tem". Num país em que há ministros que vão a pé ou de bicicleta para o trabalho, e em que a maioria dispensa segurança, Manuel Dias surpreendeu-se com o contraste com o que via em Portugal. As "pessoas grandes do Luxemburgo", como ele lhes chama, cumprimentavam-no "sem complicações". “Nunca ninguém me pôs fora. Hoje é que é mais complicado”
“Antigamente, onde estava o primeiro-ministro, estava tudo aberto, hoje está tudo fechado. Depois há polícia por todos os cantos. Antigamente não havia polícia, tão pouco. Eu passava no gabinete do primeiro-ministro, ele chamava-me para eu ir lá para dentro". Foi assim que conheceu Jean-Claude Juncker: foi lá levar-lhe uma foto que fez do então primeiro-ministro com a mulher, a caminho de uma festa organizada por Jacques Santer, quando este foi nomeado presidente da Comissão, em 1995. Entregou-a ao porteiro e foi-se embora, mas Juncker chamou o português para que entrasse, para lhe agradecer a foto.
A fotografia que Manuel Dias fez de Jean Claude Juncker e da mulher e que mais tarde foi oferecer ao então primeiro-ministro © Créditos: Manuel Dias
"As coisas estão muito mudadas, por causa da segurança, porque isto também está complicado. Mas antigamente era fácil, mesmo com a família grã-ducal. Podia estar à beira deles, e agora é a quatro metros: é preciso uma teleobjetiva só para fazer as fotos”, lamenta Manuel Dias. As formalidades das acreditações e a burocracia exigida pelo Serviço de Informação e Imprensa (SIP) passaram a enervá-lo, ele que nunca teve carteira profissional mas fotografou alguns dos eventos mais importantes do país no último quarto de século, várias vezes como fotógrafo oficial. “Começaram-me a chatear a cabeça e comecei a abandonar”. Continua a tirar fotografias e a filmar, mas com menos frequência, em encontros sindicais e associativos. Por isso, não sabe ainda se vai fotografar o funeral de Jean. “Estive quando foi no funeral da Grã-Duquesa, a mulher do Grão-Duque Jean”, em 2005. “Irei estar por fora, porque não tenho acesso. Se não chover. Também não pedi nada”. Há um ano, deu a coleção de objetos e a maioria das fotos ao Palácio, "por falta de espaço". A bandeira do Grão-Ducado pendurada à porta de casa, essa, vai ficar até ao fim do luto decretado no país.
Paula Telo Alves (texto) e Sibila Lind (vídeo e fotografia)
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