Em Portugal também se gritou contra a ocupação
As experiências de dois palestinianos que vivem em Lisboa traçam uma radiografia do que é viver num país sem liberdade.
Foi só na sexta-feira da semana passada que Israel aceitou parar os bombardeamentos sobre a Faixa de Gaza, depois da mediação do Egito entre Telavive e o Hamas e das pressões das principais potências mundiais. As duras palavras do secretário-geral da ONU sobre a quantidade de crianças palestinianas mortas e os ataques a edifícios que albergavam vários meios de comunicação social deixavam antever um desconforto cada vez maior entre os habituais aliados de Israel.
Com o tema a abrir telejornais, as principais capitais do mundo foram palco de grandes mobilizações contra a ocupação israelita. Lisboa não foi exceção. Entre os milhares que se juntaram na Praça do Martim Moniz estava o palestiniano Hindi Mesleh. Com 38 anos, veio de Ni’lin, uma pequena cidade na Cisjordânia. Com família e amigos também em Gaza olha para a violência como algo que “tem acontecido desde sempre”. Ao Contacto, explica que é ciclico e que “Israel tenta apagar a identidade palestiniana”.
Para este comerciante, o que se vive na Palestina é um apartheid. “Nunca trataram os árabes como cidadãos. Israel é uma sociedade muito racista com muita discriminação”, denuncia. Quando vivia na Cisjordânia e precisava de viajar era muitas vezes sujeito a postos de controlo onde o revistavam, agrediam e humilhavam. Enquanto fotojornalista na Palestina, afirma que foi várias vezes agredido mesmo tendo carteira profissional e um colete vestido a dizer imprensa. “Qualquer família palestiniana tem um preso ou alguém que foi assassinado”, descreve. Para Hindi, Israel é “imune ao direito internacional” devido à hipocrisia dos Estados Unidos e da União Europeia.
Com milhares de pessoas nas ruas, entende que as manifestações são importantes para combater aquilo a que chama de “propaganda israelita” e para mostrar aos palestinianos que “não estão sozinhos”, num cenário que diz ser diferente. Desta vez, há um levantamento de árabes em todos os territórios ocupados, incluindo dentro das fronteiras do Estado de Israel, e há mais ferramentas para mostrar o que realmente se passa através das redes sociais.
O caminho, diz, passa por um boicote internacional a Israel e exigir dois Estados, um israelita e outro palestiniano, com os mesmos direitos.
“Israel não me deixou ser criança”
A comunidade palestiniana em Portugal não é extensa como noutros países mas denuncia experiências parecidas. É o caso de Ashraf Abuhajleh, de 42 anos, nascido em Deir Istiya, uma localidade perto de Nablus, também na Cisjordânia. “Ir de casa até à escola implicava assistir a confrontos diários e nós não éramos alheios ao que viviamos. Nós não pudemos ser crianças. A presença de Israel nos nossos territórios é criminosa”, descreveu Ashraf.
Aos onze anos, quando atirou a primeira pedra contra um tanque israelita com outras crianças, cercaram Deir Istiya e impusaram o recolher obrigatório. “Não podíamos andar nas ruas”, contou. “Depois, perseguiram-me até casa, falaram com os meus pais e acusaram-me de os ter apedrejado. O capitão disse-me que da próxima vez ia preso”.
Quando rebentou a primeira intifada, em 1987, Ashraf tinha nove anos e assistiu ao levantamento do povo palestiniano contra a ocupação. Sucessivas greves gerais, boicote às instituições israelitas, recusa em pagar impostos a Telavive e a trabalhar nos colonatos e
ações da resistência foram a primeira resposta à morte de quatro civis num campo de refugiados em Jabalia. Israel contra-atacou com o envio de 80 mil soldados. O resultado foi brutal.
Em 1988, a organização Save the Children estimava que 7% dos palestinianos com menos de 18 anos tinham sido vítimas de disparos, bastonadas ou gás lacrimogéneo. Entre 23 e 30 mil crianças tiveram de ser assistidas pelas agressões das tropas israelitas.
“Em plena intifada, comecei a fazer coisas sozinho. Atirava pedras aos soldados, pintava faixas e pichava paredes. Depois, pouco antes dos 12 anos, juntei-me com um grupo de amigos”, recorda Ashraf. Até que chegou o dia que jamais vai esquecer. “Fomos emboscados pelo exército quando alguns camaradas lançavam cocktail molotovs contra tanques israelitas”, descreveu. As metralhadoras dispararam mais de 25 tiros contra as crianças palestinianas. Uma delas caiu abatida e a outra foi levada em estado grave para um hospital sob detenção.
Tinha 13 anos quando recebeu a notícia de que ia ser capturado. “Eu não queria ser preso. Como a maioria dos jovens palestinianos eu queria continuar a resistir mesmo que isso significasse a morte. Mas por causa da minha família decidi permanecer em casa”, explicou. Dias depois, um enorme aparato militar cercou a casa da família Ashraf. “Puseram um lança-rockets apontado para a casa. Tinham ordens para a demolir como vingança pelas minhas atividades políticas. À última hora, um advogado conseguiu cancelar essa barbárie”.
Até ao centro de detenção, ninguém lhe tocou mas mal o jeep parou atiraram-no algemado para cima de umas roseiras. Levava um saco na cabeça e foi arrastado pelo chão até ao detetor de metais. “Depois, dois soldados alternavam entre si para me espancar. Foi a madrugada inteira e ainda nem sequer era o interrogatório. Fui insultado e agredido. Mas já sabia que isso ia acontecer. É o que acontece sempre”, descreveu. “O interrogatório foi pior. Não fui só insultado. Ameaçaram matar-me e à minha família. Não me davam de comer nem de beber. Obrigavam-me a ficar acordado. Lembro-me que metiam gravações de ópera no volume máximo. Despiam-me, batiam-me e apertavam-me os testículos com força”, recordou. “Apesar de não nos deixarem ter infância claro que eu continuava a ser uma criança. Tinha apenas 13 anos e estava a ser torturado”, denunciou.
Foi condenado a dez anos de prisão dos quais só cumpriu oito meses graças aos acordos de paz assinados em Oslo que permitiram a libertação de centenas de crianças. Ashraf descreveu o período no cárcere como algo desumano: “Eu era uma criança e estava numa cela cheia de ratazanas e baratas. A sanita era um barril meio caído cheio de excrementos e moscas com um cortinado desfeito”. Quando saiu tinha perdido dois anos lectivos. “Perdi praticamente dois anos porque fui preso no segundo período do 9º ano e fui libertado quando já devia estar no 10º. Felizmente, Iasser Arafat decidiu que as escolas deviam aprovar todas as crianças presas”, recordou.