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Opinião

É melhor roubar de noite ou à luz do dia?

Em 2014 estourou o escândalo LuxLeaks: veio a público que dezenas e dezenas de multinacionais - nomes como Starbucks, Volkswagen, Apple, Timberland, General Electric, Credit Suisse, Pepsi, Ikea, Burberry, P&G, Heinz, JP Morgan, FedEx, Amazon, Deutsche Bank, Verizon, Vodafone, HSBC e etc etc - aproveitaram as benesses arquitectadas por Jean-Claude Juncker e, com a ajuda das Deloittes deste mundo, abriram "delegações" no Grão-Ducado (em muitos casos essas ditas delegações não passavam de uma caixa de correio) para fugirem aos impostos dos países onde efectivamente exercem a sua actividade.

© Créditos: Guy Jallay

Cronista

Dentro do Luxemburgo propriamente dito, estas revelações surpreenderam exactamente zero pessoas; mas como o resto do mundo se fingiu muito chocado, alguma coisa tinha de mudar para que tudo pudesse continuar na mesma. Então, o governo luxemburguês anunciou, com pompa e circunstância, que o país tinha saído da "lista negra" europeia da transparência fiscal; e que, logo em Setembro de 2019, tinha sido dos primeiros a adoptar um registo de beneficiários efectivos (RBE) disponível ao público, como o exigem as directivas europeias.

Essa medida de transparência teve o seu efeito: muitos dos grandes evasores fugiram do Grão-Ducado em direcção a outros paraísos fiscais, de Malta ao Delaware passando pelos Países Baixos. Outros reagruparam as suas operações e de repente, no espaço de um ano, o número de empresas que cessaram a sua actividade no Luxemburgo quadruplicou, chegando a 25 mil. A utilidade do acesso público e transparente às informações fiscais torna-se assim evidente. Ou não?

55 000 entidades 'off-shore' no Luxemburgo gerem activos de 6 triliões de euros - tanto como o PIB de França e Alemanha juntas.

Apenas metade das empresas identificaram no registo um proprietário real (e muitas vezes é um testa-de-ferro...). A outra metade refugia-se nas excepções à lei: todos os sócios têm menos de 25% da empresa, o que acontece nos fundos de investimento (também é fácil imaginar que muitas esposas, sobrinhos e primos detêm 24%...), ou então há uma "cláusula de confidencialidade" outorgada de forma arbitrária. Muitas outras empresas (26 000, segundo a investigação OpenLux do Le Monde) simplesmente não declaram nada, e não são punidas por isso, até porque o Luxemburgo tem uma vigilância do sector financeiro manifestamente insuficiente para uma economia dependente desse mesmo sector.

É preciso que algo mude para que tudo continue na mesma.
"O Leopardo” de Tomasi de Lampedusa

O resultado é que existem hoje pelo menos 55 000 entidades off-shore no Luxemburgo, gerindo activos opacos no valor de pelo menos 6 triliões de euros - mais ou menos o PIB de França e Alemanha juntas. A maioria destas empresas fictícias serve para camuflar transacções suspeitas, e nesta verdadeira caixa negra há de tudo: compra de propriedades caras, jóias ou obras de arte, mas também branqueamento de capitais, corrupção, desvio de fundos públicos, crime organizado, venda de armas e terrorismo.

O novo escândalo OpenLux traz duas mensagens muito claras: a transparência fiscal ainda não funciona; e mesmo que venha a funcionar, não pode ser um fim em si mesmo, tem isso sim de servir de instrumento para acabar com a evasão fiscal na Europa - o único desporto em que o Luxemburgo continua líder.

Não o fazer é permitir que os que antes roubavam pela calada da noite o façam agora em plena luz do dia.

(Este autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico).

Hugo Guedes, na floresta da grande cidade

A mudança para o Luxemburgo foi feita aos 21 anos – e logo de comboio, para apimentar a aventura. Ato contínuo começou a escrever na imprensa, sobretudo sobre desporto e viagens, paixões que cultiva com mais fervor que a gestão de empresas que seguiu na universidade do Porto. Agora vive em Bruxelas, onde tenta conciliar a floresta e a grande cidade. Escreve às terças-feiras.