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Direitos humanos. Relatório aponta falhas ao Governo na gestão da pandemia

Legislação apressada, restrições abusivas nos lares e aumento das desigualdades estão entre as queixas da Comissão Consultiva dos Direitos Humanos do Luxemburgo. Em vésperas da votação de nova versão da lei-covid, o organismo soma alertas.

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Imagem de arquivo © Créditos: AFP

Jornalista

O impacto da pandemia na população dos países europeus, quando passa um ano desde que foram identificados os primeiros casos, está a fazer soar os alarmes nas organizações de direitos humanos e o Luxemburgo não é exceção. Na última semana de fevereiro, a Comissão Consultiva dos Direitos Humanos (CCDH) divulgou o relatório “A Crise Sanitária e as suas Consequências: Qual o Impacto nos Direitos Humanos” onde analisa as consequências das medidas sanitárias decididas pelo Governo nos direitos e condições de vida dos cidadãos.

Embora reconheça a necessidade de conter a pandemia, o organismo defende, desde o início da crise da covid-19, um acompanhamento dos grupos mais vulneráveis. No relatório publicado no passado mês de fevereiro, a CCDH sustenta que a resposta do Governo à pandemia deve considerar “as desigualdades existentes, e exacerbadas pela crise sanitária, e basear-se numa abordagem participativa, incluindo as pessoas afetadas, a sociedade civil e as organizações” e onde os direitos humanos sirvam de “bússola” nas tomadas de decisão. Assim, deixa vários alertas e recomendações, apontando algumas falhas na gestão da crise.

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Desde logo, a Comissão critica a rapidez com que se vão criando e mudando leis para acomodar as medidas sanitárias, recomendando “mais tempo para a elaboração de legislação (...) em particular, através do desenvolvimento de uma estratégia a médio prazo”. Antes da publicação do documento, a CCDH tinha dado parecer negativo a algumas vertentes da ‘lei covid’ votada a 19 de fevereiro, considerando que vários aspetos violavam direitos fundamentais dos cidadãos e assinalando discrepâncias entre o texto final e o conteúdo apresentado em conferência de imprensa. No relatório, a Comissão reitera que “a ação e comunicação governamentais devem ser coerentes, harmonizadas e transparentes”. O organismo quer, por isso, que as frequentes alterações legislativas e de regulamentos sejam incluídas na análise do impacto que as medidas sanitárias têm na saúde mental da população.

Em vésperas da votação de nova versão da lei-covid, A CCDH soma alertas aos já deixados no relatório de fevereiro, sobretudo no que respeita a alterações que visam a população escolar e os mais novos.

Nova versão da lei-covid: Fundamentação de opções e avisos

Nas mudanças respeitantes à aplicação das regras sanitárias às atividades escolares e extra-curriculares, merece atenção a exceção criada para uso de máscara nas crianças do primeiro ciclo, sendo obrigatória apenas a partir do segundo. A comissão, apesar de congratular o Governo pela medida, encontra contradições de texto com outras disposições legais, sobre máscaras, distanciamento e realização de atividades, aludindo a confusões na mensagem. Por outro lado, lembra que "em qualquer caso, independentemente da idade" a Organização Mundial da Saúde e a Unicef recomendam que para todas a crianças "com problemas de desenvolvimento, deficiências ou outros problemas de saúde específicos que possam interferir com a utilização de uma máscara, as máscaras não devem ser obrigatórias".

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Ainda no que respeita ao uso de máscara, a comissão interroga-se sobre as regras aplicáveis aos profissionais que supervisionam crianças, questionando se não seria apropriado oferecer alternativas aos que trabalham com crianças com menos de seis anos de idade. "A CCDH recorda que, segundo o Ministério da Educação Nacional, Infância e Juventude, 'é fortemente recomendado que usem a máscara, de preferência transparente: é de facto importante que as crianças vejam expressões faciais'", considerando que essa abordagem seria "mais inclusiva".

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A comissão pronuncia-se também sobre as medidas temporárias para estruturas afetadas por grandes cadeias de transmissão de infeções e ao ensino à distância alternado para alguns níveis de ensino.

Entre as medidas que podem ser tomadas incluem-se "medidas sanitárias específicas", uma "passagem ao ensino à distância para algumas ou todas as escolas públicas e privadas", a "passagem ao ensino à distância" de certas instalações e atividades, bem como a suspensão temporária a nível local ou nacional das atividades de certos estabelecimentos.

Considerando positivo o facto de o governo ter finalmente reconhecido a necessidade de criar uma base jurídica para medidas sanitárias, como previsto na Constituição, a CCDH entende que alguns dos termos utilizados na redação de alguns parágrafos "carecem de precisão quanto ao seu alcance e significado".

"O critério de 'ressurgimento local ou nacional da infeção' não está definido nem enquadrado pelo projeto de lei. O mesmo é válido para o outros critérios que permitem ao Governo utilizar esta secção para fazer regulamentos: estes incluem 'riscos sanitários para a população locais ou globais', 'cadeias significativas de infeção' que 'não podem ser contidas por medidas gerais de isolamento e quarentena'. Nem o comentário nem a exposição de motivos fornece mais pormenores a este respeito". Da mesma forma, a CCDH questiona ainda o que os autores da lei entendem por "medidas sanitárias específicas".

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Em caso de recurso ao ensino à distância, a comissão reforça a necessidade de disponibilizar "equipamento informático e educativo, bem como uma ligação estável à Internet em todas as casas". "É imperativo que todas as crianças tenham acesso a estes materiais, uma vez que isso é essencial para lhes permitir continuar a sua vida escolar e manter as competências necessárias (...) É também uma questão de igualdade de tratamento para todas as crianças", sublinha a CCDH.

Alertas do relatório: Das famílias aos lares para idosos e deficientes

No relatório publicado no final de fevereiro, o organismo considerou ser necessário ter em conta variáveis como o sexo, idade, origem, deficiência, estado de saúde, cor da pele, estatuto socioeconómico ou orientação sexual na definição da estratégia de combate à pandemia. “Medidas que parecem neutras, sem ter em conta a diversidade da população, podem assim contribuir para ou mesmo acentuar certas desigualdades”, refere a Comissão no documento, ao qual ainda não foi dado “nenhum feedback por parte do Governo, nem de nenhum partido político”, segundo afirmou ao Contacto Fabienne Rossler, secretária-geral da CCDH.

No relatório, a Comissão analisa os impactos das medidas para conter a pandemia em grupos e realidades concretas. As famílias são um segmento a que a CCDH dá particular destaque, começando por defender o direito de acompanhamento das grávidas antes e depois do parto. Os problemas no reagrupamento familiar de cidadãos estrangeiros residentes no Luxemburgo, devido a restrições à entrada em território luxemburguês também são assinalados, exortando-se o Governo a “adotar uma atitude aberta e flexível”.

O encerramento das escolas e o seu efeito num acesso equitativo à educação, assim como na saúde mental das crianças e dos jovens são outras das preocupações do organismo, pelo que devem ser assegurados os cuidados psicológicos e psiquiátricos adequados. A Comissão pede igualmente medidas de proteção e apoio especiais para as famílias monoparentais, já vulneráveis antes da crise e agora especialmente expostas ao risco de pobreza.

Dentro das famílias, a CCDH mostra ainda preocupação com a violência doméstica, advertindo que os números oficiais no Luxemburgo não parecem ser fiáveis, pois não indicam um aumento significativo dos casos durante a pandemia, ao contrário do que é reportado por alguns serviços de apoio que relataram uma subida na procura de ajuda e maiores dificuldades de acesso a esses serviços, por parte das vítimas, com o confinamento. Uma linha direta disponível 24 horas por dia, sete dias por semana, para todas as vítimas de violência, e recursos suficientes para os serviços de apoio, bem como a inclusão das pessoas LGBTIQ+ nas estratégias de combate à violência no seio familiar, durante o confinamento, são medidas pedidas pela Comissão.

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Paralelamente, o organismo considera especialmente preocupante o impacto da pandemia naqueles que residem em lares, sobretudo idosos e pessoas com deficiência, e nas crianças institucionalizadas, lamentando “a falta de regras claras e transparentes” para essas instituições. Isso levou a que cada uma delas, diz a CCDH, tomasse as medidas que achou necessárias o que em alguns casos gerou decisões e obstáculos difíceis às entidades supervisoras, agravados pela falta de pessoal e com formação insuficiente. Alguns utentes sofreram “com medidas consideradas abusivas”, sinaliza a Comissão, que pede ao Governo mais fiscalização, apoios e a melhorar a formação profissional na área da prestação dos cuidados.

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Resolver o problema estrutural da falta de habitação acessível, que persistirá depois da pandemia, e a criação de um plano nacional para os sem-abrigo, “duramente atingidos pela atual crise sanitária”, com direito à saúde para todos, são outras das necessidades identificadas pela Comissão, que a pandemia expôs.

A CCDH antevê que com a crise sanitária e económica o número de pessoas excluídas dos cuidados e dos seguros de saúde venha a aumentar ainda mais no futuro, assim como a precariedade laboral. A Comissão pede ao Governo para ter em conta a diversidade de situações e defende que os trabalhadores classificados como essenciais sejam adequadamente protegidos, face ao risco acrescido de contrair a covid-19. A concessão dos apoios sociais também devem ser compreensível por todos, não discriminatória e transparente, e distribuída “dentro de um período de tempo razoável”.

Já em relação aos migrantes indocumentados, a CCDH sustenta que a deterioração da sua situação não foi acautelada pelo Governo na gestão da crise, cabendo às associações do setor social a ajuda a estas pessoas, algumas das quais a morar há vários anos em território luxemburguês, vivendo de empregos informais e sem direito a apoios. A Comissão pede, por isso, que os critérios de regularização sejam adaptados o mais rapidamente possível.

Melhorar a proteção aos refugiados, garantir o direito à cultura e à informação são outros aspetos defendidos pelo organismo no relatório, que recomenda ainda ao Governo que não se foque apenas na covid-19, garantindo o acesso aos cuidados de saúde “a todo o momento e para todas as pessoas”.

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