A segunda vida de Felix Braz
"Quando um homem cai, cai sozinho." Dois anos depois do ataque cardíaco e do coma, o lusodescendente que chegou a vice-primeiro-ministro do Luxemburgo fala de traição e amor, combate e sobrevivência. Uma reportagem com depoimentos, vídeos e imagens exclusivas.
© Créditos: Paulo Lobo
Esta semana, Felix Braz, 55 anos, conduziu o seu carro durante 30 quilómetros e isso foi uma das maiores alegrias dos últimos tempos. “O meu pai tinha uma escola de condução, foi ele quem me ensinou a guiar”, explica agora na sua casa em Esch-sur-Alzette, a segunda maior cidade luxemburguesa. Fala com um discurso claro, ainda que as palavras teimem em enrolar-se. “Para mim é importante voltar à estrada, é uma forma de respeitar o seu legado.” Há dois anos, quando acordou de um coma, não fazia a mínima ideia de quem era o progenitor. Na verdade, nem sequer reconhecia a mulher ou os filhos. Também não sabia o seu próprio nome.
A última vez que Braz se tinha sentado ao volante fora precisamente a 22 de agosto de 2019. O dia em que a vida mudou para sempre. Num semáforo vermelho anunciou que não se sentia bem e desfaleceu. Estava a 300 metros de um hospital. Nas urgências, morreu e ressuscitou várias vezes. “Estive morto três minutos.” Os médicos levaram 58 minutos a estabilizá-lo. Depois, entrou em coma.
Seis dias depois, a 28 de agosto, abriu pela primeira vez os olhos. As tentativas de reanimação tinham aparentemente funcionado, mas a irrigação cerebral ficou seriamente comprometida. “Basicamente, tinha-me transformado num vegetal”, diz o antigo vice-primeiro-ministro luxemburguês com um sorriso desconcertante. Mobilidade nenhuma, discurso nenhum, raciocínio nenhum. À família de Braz, os médicos explicaram que estava num “estado de consciência mínima, uma espécie de coma acordado”. O prognóstico era reservado. A luta era pela sobrevivência.
“Eu já tinha achado estranho que ele não tivesse querido comer ao almoço, porque de manhã fomos fazer um passeio de 50 quilómetros de bicicleta e ele não quis comer nada no fim”, conta Emmanuel, o filho. Tinham tirado uns dias de descanso em Knokke, na costa belga. “No hospital os médicos disseram ao Michel, um amigo que estava connosco nesse dia, que não havia nada a fazer por ele. Estava morto. E eu não podia imaginar isso. Para mim ele não era Felix Braz, o vice-primeiro-ministro. Era o meu pai. Era o herói com quem eu podia contar sempre.”
Para o resto do mundo era, no entanto, um político em ascensão. “Ele podia muito bem chegar a ser o próximo primeiro-ministro”, diz Etienne Schneider – antigo líder dos socialistas do país e também vice-primeiro-ministro da coligação governamental liderada por Xavier Bettel – que congrega liberais, socialistas e verdes. “Ele levou Os Verdes onde eles nunca tinham chegado e acrescentou ao partido uma seriedade institucional como ele nunca tinha tido antes. No seio do nosso governo de coligação, era verdadeiramente a pessoa que assegurava o equilíbrio entre toda a gente. Tinha uma diplomacia que lhe vinha naturalmente. Era simplesmente brilhante.”
Com Etienne Schneider em Washington © Créditos: Arquivo pessoal da família Braz
Para o resto do mundo era, no entanto, um político em ascensão. “Ele podia muito bem chegar a ser o próximo primeiro-ministro”, diz Etienne Schneider – antigo líder dos socialistas do país e também vice-primeiro-ministro da coligação governamental liderada por Xavier Bettel – que congrega liberais, socialistas e verdes. “Ele levou Os Verdes onde eles nunca tinham chegado e acrescentou ao partido uma seriedade institucional como ele nunca tinha tido antes. No seio do nosso governo de coligação, era verdadeiramente a pessoa que assegurava o equilíbrio entre toda a gente. Tinha uma diplomacia que lhe vinha naturalmente. Era simplesmente brilhante.”
A proteção de dados pessoais em toda a União Europeia, a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Luxemburgo e a gratuitidade dos transportes públicos no país foram algumas das leis mais emblemáticas que negociou com a coligação. “Foi no seu mandato que se estabeleceu a lei da dupla nacionalidade, importantíssima para as comunidades imigrantes porque permite ascender no elevador social do país sem renegar as origens”, diz António Gamito, embaixador português no Grão-Ducado. “Para os portugueses em particular, a maior comunidade estrangeira aqui, ele era um símbolo e um exemplo. Um homem que aproveitou o melhor das raízes portuguesas e das oportunidades que o Luxemburgo lhe deu e com isso conseguiu angariar o respeito e a admiração de todos. Ficará sempre para a História.”
O homem invisível
Com a mulher, Bibi. © Créditos: Paulo Lobo
No dia 11 de outubro de 2019 o governo tornou pública a “demissão honorável” de Felix Braz. As pastas que exercia foram nesse dia foram ocupadas por dois dos seus colegas n’Os Verdes, o partido que ele mesmo tinha catapultado para a esfera governamental. Sam Tamson ficou com o ministério da Justiça, François Bausch com a cadeira de vice-primeiro-ministro. “Perante várias testemunhas, eles tinham-nos prometido que dariam três meses ao Felix para ser ele a tomar uma decisão”, conta agora Didi Debras, a sua mulher. “Acabaram por retirá-lo do cargo ao fim de cinco semanas e com isso roubaram-lhe a dignidade de poder usar a sua própria consciência.”
Braz agita-se no cadeirão e interrompe a conversa para deixar uma coisa bem clara: “Não tenho qualquer desejo de voltar à política.” Se lhe tivessem dado a oportunidade de resolver a vida, ele próprio teria descido do pedestal do governo. Mas, ao apresentarem a sua demissão honorável, retiraram-lhe qualquer rede que amparasse a queda. Foi por isso que Felix Braz decidiu processar o estado em maio de 2021.
“Esta demissão é pura e simplesmente ilegal”, atira Jean-Marie Bauler, advogado do político lusodescendente. “O ato de uma demissão implica a decisão do próprio e isso não aconteceu neste caso. Foi forçada e involuntária. É por isso que pedimos agora a anulação desta decisão.” Ao manter o cargo de ministro, mesmo sem pasta, Braz pode pelo menos sustentar a sua família. “Todos os ministros que saem do governo vão para um cargo na indústria, pelo menos regressam ao Parlamento e podem fazer a sua vida. Braz, no entanto, não tem direito a nada”, diz o advogado.
No Luxemburgo, não há legislação que preveja qualquer apoio para um ministro que caia doente. “Um assessor de imprensa ou um chefe de gabinete recebem ajudas se ficarem impossibilitados de cumprir a sua missão. Um ministro não tem direito a nada – e é por isso que decidimos colocar um segundo processo por discriminação contra o Centro de Gestão de Pessoal do Estado”, diz Bauler. “Se ganhar o primeiro processo”, explica, “Braz anulará o segundo. O que importa neste momento é assegurar a dignidade financeira desta família, que foi posta em causa por motivações políticas.”
Antes do enfarte, Felix Braz ganhava 18 mil euros limpos – o salário oficial de um ministro de Estado com as ajudas de custo já incluídas. Bibi Debras fazia secretariado ao Grão-Duque na Corte – e trazia mais 6.500 euros para casa no fim do mês. “Despedi-me para tomar conta dele, então perdemos logo o meu rendimento”, conta ela. Até dezembro de 2019, e tal como previsto na lei, continuaram a receber o salário dele. Desde então, os únicos rendimentos que auferem é o subsídio de espera, a compensação que o Estado dá aos ex-ministros para que estes não possam sair de cargos públicos diretamente para o setor privado. Nos últimos 19 meses, os Braz têm vivido com 5.700 euros mensais. É preciso notar que o Luxemburgo é um dos países com o custo de vida mais caro da Europa. O salário mínimo qualificado é de 2.642 euros brutos por mês. Para uma família de quatro, 5.700 euros é dinheiro curto para pagar contas.
“Temos dois filhos menores e a estudar na universidade. Há tratamentos que não têm comparticipação da Caixa de Saúde mas que funcionam, como a neuroestimulação. Ele tem três sessões por semana e cada uma custa 150 euros”, explica Bibi Debras. “Ao fim de dois anos, as nossas poupanças estão a esgotar-se.” As perspetivas de futuro são pouco animadoras. No fim de outubro o subsídio de espera termina. “É uma medida prevista para dois anos”, diz Bauler. “Para todos os efeitos, e também porque não há qualquer resolução sobre o seu futuro e foram vetados ao esquecimento, partir do fim deste mês os Braz não vão receber dinheiro nenhum.”
Caminhando a passos lentos pela sala, Felix Braz tenta combater a amargura. “Quando um homem cai, cai realmente sozinho. É uma lição que vale para toda a gente”, e liberta um suspiro que guarda uma dor inconsolável. Diz que o processo por que passou nos últimos dois anos também lhe trouxe clareza: “Sei muito bem quem são os meus amigos e quem são os meus inimigos.” Aos Verdes, que tomaram a decisão de substituí-lo, acusa de falta de lealdade – particularmente François Bausch, que o lusodescendente acredita ter acelerado o processo para tomar o seu lugar no governo. A Xavier Bettel, primeiro-ministro, recrimina por nunca se ter preocupado em resolver o seu caso. “Sou um problema que ele prefere não ver.”
© Créditos: Paulo Lobo
Caminhando a passos lentos pela sala, Felix Braz tenta combater a amargura. “Quando um homem cai, cai realmente sozinho. É uma lição que vale para toda a gente”, e liberta um suspiro que guarda uma dor inconsolável. Diz que o processo por que passou nos últimos dois anos também lhe trouxe clareza: “Sei muito bem quem são os meus amigos e quem são os meus inimigos.” Aos Verdes, que tomaram a decisão de substituí-lo, acusa de falta de lealdade – particularmente François Bausch, que o lusodescendente acredita ter acelerado o processo para tomar o seu lugar no governo. A Xavier Bettel, primeiro-ministro, recrimina por nunca se ter preocupado em resolver o seu caso. “Sou um problema que ele prefere não ver.”
Mas depois sai-lhe do peito uma alegria imprevista quando começa a falar das pequenas vitórias dos dias. “Querem um café? Já consigo tirar café da máquina”, e ri-se, ri-se, ri-se. A semana passada conduziu o carro, já se aventura a caminhar sozinho por casa, recebe visitas de amigos que nunca o abandonaram. Há umas semanas, quando recordava as férias que tirara em maio no Algarve e que lhe permitiram banhos de sol e piscina, desdobrava-se em relatos da alegria que é experimentar o mundo todo de novo. “Não é toda a gente que pode viver duas vezes”, constatava. “No fundo, no fundo, sou um tipo bastante sortudo.”
Todos por um
Com a filha, Liz. © Créditos: Paulo Lobo
Sentado no sofá, Felix Braz dança com a filha Liz. A música de Plastic Bertrand ecoa da coluna e ele vai agitando os braços enquanto repete o refrão “Ça plane pour moi, ça plane pour moi, ça plane pour moi, moi, moi, moi, moi.” A família reveza-se no apoio ao pai. É preciso levá-lo à fisioterapia e à terapia da fala, é preciso acompanhá-lo nas sessões de neuroestimulação e nas pequenas aventuras de condução pela estrada. “I am the king of the divan”, canta o antigo vice-primeiro-ministro, e toda a gente começa a rir. “Neste momento, é preciso sobretudo conversar com ele, puxar-lhe pela memória, pô-lo a recordar o passado. O cérebro esteve muito tempo adormecido e é preciso recuperá-lo”, explica Bibi.
Depois de meses de altos e baixos, o coração de Felix Braz funciona hoje em pleno. As mazelas que o enfarte deixou, essas, estão longe de curadas. “Ele não está a 100 por cento. Provavelmente nunca será igual ao que era antes”, admite Bibi. “Por outro lado, estamos todos bastante animados como os progressos que tem feito. Nos primeiros meses, os médicos disseram que seria muito difícil ele voltar a andar ou a falar. E olha só onde ele já chegou.”
Foi por isso que ela começou a gravar vídeos com o telemóvel de todas as etapas por que o marido passou. “Fiz isto para mostrar mais tarde ao Felix. Não sabia onde a sua recuperação ia estagnar e queria mostrar-lhe de onde ele tinha partido.” As coisas têm evoluído bem, pesem as muitas vezes em que tudo parecia perdido, em que Felix Braz pensou desistir da vida. O raciocínio está cada vez mais claro, embora ainda se canse e abstraia facilmente. Na fala não consegue ser tão claro quanto gostaria, parece que as palavras se enrolam em mel. As coisas correm melhor quando se exprime em luxemburguês, mas pioram com o francês e ainda mais com o português, que antes falava perfeito.
Os passos são ainda prudentes e ele prefere não caminhar sozinho. Emmanuel, o filho, está sempre a tentar retirar o braço onde o pai se encosta quando o leva a passear pela casa. “Vá, tu consegues”, diz-lhe. E às vezes, cada vez mais vezes, consegue, sim. Os dedos não têm a agilidade de se dobrar para apanhar objetos, mas estão cada vez mais certeiros a apertar botões e são bastante eficientes na hora de segurar os talheres. Conseguir comer sozinho é uma felicidade. “Agora ele está sempre a pedir-me comida portuguesa, então ando a estudar as receitas porque sei que é isso que o deixa contente”, conta Bibi. Um destes dias, ensaiou-se com uma salada de orelha de porco. “As coisas que uma pessoa faz por amor”, diz ela – e desata numa gargalhada.
As recordações portuguesas foram um dos pontos-chave para a recuperação de Felix Braz. Apesar de ter nascido em Differdange e crescido em Belvaux, no sul do Luxemburgo, os pais e os irmãos são de Castro Marim – e era lá que passava os verões, em casa dos avós, a brincar com os primos. Então as memórias de infância voltaram primeiro. Quando recuperou a fala, uma das primeiras coisas que se lembrou de fazer foi cantar o Grândola, Vila Morena do início ao fim – e explicar a um amigo que o visitava na cama do hospital que aquela canção tinha sido palavra de código para a Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura em Portugal em 1974.
Desde que saiu definitivamente do hospital, em maio de 2020, também regressou duas vezes ao Algarve – e esses foram dias essenciais para a recuperação. O sol e a família, as incursões nos restaurantes portugueses para comer peixe fresco renovaram-lhe um espírito que passara meses em baixo, a lamentar a solidão da queda. Aí recebeu amigos e todas as fotos o mostram em sorrisos. Há uma foto com Francisca Van Dunem, ministra da Justiça portuguesa, de quem é amigo, que é todo um ensaio sobre a boa disposição.
Mas, para os Braz chegarem aqui, tiveram de percorrer uma estrada cheia de pedregulhos. Tanto Emmanuel, que tinha acabado de entrar na faculdade quando o pai teve o enfarte, como Liz, que estudava direito na Sorbonne, em Paris, decidiram interromper os estudos para ajudar na recuperação do progenitor. “A vida dele mudou a 22 de agosto de 2019. A minha vida também”, conta o rapaz.
Com Francisca Van Dunem, no Algarve. © Créditos: DR
A irmã admite que tanto ela como o irmão ficaram zangados com Felix. “Eu nem sequer quis entrar no quarto e vê-lo nos dias em que estava em coma. Fazia-me impressão vê-lo entubado, com todas aquelas máquinas a tentarem prendê-lo à vida. Tinha medo de tocar-lhe e sentir o corpo frio, morto. Eu e o Manu estávamos incrivelmente chateados com ele. Estávamos furiosos. Porque a vida que ele levava era de entrega total à política, era um stress constante. Ele deu tudo ao serviço público e nunca se resguardou, nunca protegeu o corpo e a saúde. E depois caiu e os seus companheiros políticos foram os primeiros a desertar. Que nervos. Claro que sabemos que ele na verdade não tem culpa de nada. Estamos todos unidos em redor dele.” Por mais coisas que possam faltar em casa, assegura Liz, o amor nunca será escasso.
Um combate de vida ou morte
O irmão visita Felix no hospital. © Créditos: Arquivo pessoal da família Braz
Braz foi socorrido no centro de saúde de Knokke, onde passava férias, e transferido para Bruges ainda na noite de 22 de agosto de 2019. Bibi tinha ido passar uns dias de férias à casa de uma tia na Florida e, quando o filho lhe ligou a contar que o pai tinha desfalecido e os médicos achavam que ele podia morrer nessa noite, estarreceu. “Consegui um avião para essa noite, que foi a pior da minha vida”, conta agora. Antes de embarcar, ligou ao primeiro-ministro e à filha, que estava num encontro de jovens estudantes de direito.
“Foi o Xavier [Bettel, o primeiro-ministro luxemburguês] que me levou a Bruges”, conta Liz. Combinaram encontro no parque de Glacis em dia de Schuerberfouer, a grande feira popular que enche o centro da capital no final de agosto. “Chegámos em menos de duas horas. Eu tremia que nem varas verdes e o Xavier dizia-me para ter calma, que se houvesse más notícias elas chegariam rápido. Não sabermos de nada era um bom sinal.” Seria também o líder do governo a marcar quartos de hotel para a toda a gente nessa noite. E só sairia do hospital quando Bibi chegou para dar assistência aos filhos, que estavam de rastos. “Ele foi um apoio muito importante nesse primeiro dia. E hei de estar sempre agradecida por isso”, diz a rapariga. “Mas também é por isso que me revolta tanto a maneira como ele nos ignora agora, como não nos vê nem aos problemas que estamos a passar. Como nos deixa cair no esquecimento.”
Bettel visitaria Braz em dezembro de 2019, quando o seu antigo vice tinha já sido demitido contra a própria vontade. Braz tinha, entretanto, sido transferido por helicóptero para um hospital em Liège, especializado em cardioneurologia, e daí saíra para o Rehabzenter de Kirchberg, o principal centro de reabilitação luxemburguês. Bibi filmou o encontro entre os dois estadistas. Bettel diz ao lusodescendente que nada o deixaria mais feliz do que vê-lo recuperar totalmente. “Nesta altura, Felix tinha ainda um discurso vago e começava apenas a aperceber-se do que lhe tinha acontecido. Dias antes tinha-me perguntado se eu era a sua mulher. Se aqueles dois jovens ao fundo da sala eram filho deles. Como é que se chamava. Quando caiu em si, entrou numa enorme depressão.”
No final de janeiro de 2020, Bibi temeu seriamente que Felix Braz morresse. O sistema imunitário estava em baixo, sucediam-se as infeções em vários órgãos e ela temia que o fim se estivesse a aproximar. “O facto de terem entregado a sua demissão contra a sua vontade deixou-o, mais do que furioso, imensamente triste”, conta a mulher. “A única coisa que ele queria era vir para casa. Às vezes vinha por umas horas à tarde e vimos como isso o animava. Começámos a falar com os médicos de que essa ideia seria útil para o seu bem-estar psicológico. E começámos a remodelar a casa para recebê-lo.
A 16 de março, dia do aniversário de Felix Braz, o governo decretou o estado de emergência por causa da pandemia de coronavírus. “De repente vimo-nos sem qualquer possibilidade de o visitar ou sequer de vê-lo. Ao fim de umas semanas, numa videochamada combinada com os enfermeiros, percebi que ele tinha perdido metade do peso, envelhecera 40 anos, era uma sombra de si mesmo. Parecia um prisioneiro de um campo de concentração. Tentei animá-lo e ele apenas repetia que queria ir para casa. Foi muito duro.”
Bibi teve de esperar até maio para conseguir resgatar Felix à cama do hospital – e todas as noites se encolhia na cama com medo de acordar com a pior das notícias. “A partir daí as coisas começaram a finalmente melhorar. Dormia aqui e ia todos os dias fazer reabilitação. Depois levámo-lo ao Algarve e as coisas começaram a compor-se. Tinha um terapeuta lá, também, e recuperou extraordinariamente.”
Do lado do governo, pediam uma resolução para o problema em que agora se encontravam. “Todos os ministros vinham visitá-lo, mas a partir do momento em que ele mostrou o seu desagrado com a demissão deixaram de aparecer”, conta a mulher. “O pior de tudo, para Felix, foi a desilusão com o próprio partido. Ele tinha dado tudo por eles e sentia que [François] Bausch jogara uma cartada com a sua queda.” Em setembro de 2019, Os Verdes sofreram um rude golpe com a demissão de Roberto Traversini, burgomestre de Dudelange, depois de um escândalo de corrupção. O partido estava debaixo de fogo e a remodelação oferecia algum alívio no incêndio. Bausch disse em maio à RTL sentir-se “verdadeiramente desolado, mas não tinha outra solução.”
O que Braz não esperava era o silêncio em que o seu caso mergulhou desde então. “Começámo-nos a ver sem qualquer resposta aos apelos, sem retorno de qualquer espécie. Tornámo-nos um assunto incómodo que era melhor ignorar”, diz Bibi Debras. Felix fita o horizonte. Não diz muita coisa, mas as suas palavras têm a precisão de um fuzil. “Todos os dias combato pelo meu corpo e pela minha vida. Não vou deixar que me retirem a minha dignidade sem ir à luta. Disso podem estar certos.” O processo deu entrada em tribunal em maio de 2021.
Mais do que uma promessa
© Créditos: DR
Quando o Luxemburgo assumiu a presidência rotativa do Conselho Europeu, no segundo semestre de 2015, Braz ainda não era vice-primeiro-ministro – apenas ministro da Justiça – mas isso não deixou de torná-lo numa das grandes figuras do mandato. Foi sob a sua égide que se aprovou a lei de proteção de dados que hoje vigora em todo o continente. E foi ele que trouxe para o Grão-Ducado a sede da Procuradoria Europeia, que toda a gente apostava que ficaria estabelecida Bruxelas.
Antes da vida política, foi jornalista. Primeiro em Paris, onde estudou Direito durante um ano e passou os três seguintes a fazer reportagens desportivas para a RTL. Quando voltou ao Luxemburgo, pôs-se a apresentar na RTL Radio um programa em português chamado “Antes de mais nada”, que se tornou um enorme sucesso entre a comunidade portuguesa. “Muitos luxemburgueses não gostavam de ouvir uma língua esquisita na rádio e escreviam a protestar”, recorda ele. “Isso só me dava força para o que estava a fazer.”
Ao fim de um ano foi convidado a integrar Os Verdes. Começou como secretário parlamentar e, quando o partido elegeu pela primeira vez um eurodeputado, em 1994, tornou-se seu assistente em Bruxelas.
Foi no regresso desse trabalho, um ano depois, que conheceu Bibi. Tinham um amigo comum que os convidou para um almoço – e ela ficou imediatamente fascinada por aquele rapaz tão diplomático e bem-falante. As suas convicções deixaram-na francamente interessada. “O problema é que eu tinha casado seis meses antes. Mas depois conheci o Felix e, pronto, percebi que queria guardá-lo para mim. Divorciei-me uns meses depois.”
Braz apaixonou-se pela rapariga à primeira vista. Ela era luxemburguesa, filha de luxemburgueses, trabalhava no setor juvenil do CSV, o partido democrata-cristão. “Foi a visão, simultaneamente avançada e lateral que o Felix tinha sobre todos os assuntos, que me fez mudar também eu para os Verdes”, diz ela. Atividade política nunca exerceu nenhuma: “Se há lição que aprendi enquanto mulher de um ministro foi a arte de ficar calada.”
Felix, por seu lado, ia marcando pontos atrás de pontos. Em 1999 foi candidato às legislativas. Não estava em lugar elegível, mas obteve logo um bom resultado. No ano seguinte, torna-se vereador em Esch-sur-Alzette e dá nas vistas com os programas de recuperação de espaços verdes e mobilidade para a cidade. Em 2004, foi eleito pela primeira vez deputado.
Desde o final da II Guerra Mundial, todos os primeiros-ministros do país tinham sido eleitos pelo CSV – com uma única exceção: o socialista Gaston Thorn, entre 1974 e 1979. Jean-Claude Juncker era primeiro-ministro desde 1995. E, nas palavras de Braz, era inquestionável. Pelo menos até 2013, ano em que uma investigação jornalística revelou o envolvimento do primeiro-ministro num caso de escutas ilegais. O assunto chegou ao Parlamento.
“Braz fez um discurso tremendo. Fez Juncker ver que chegara a altura de sair de cena. Foi extremamente diplomático, foi extremamente incisivo e foi extremamente inteligente. Aí revelou-se por inteiro como um grande político, dotado de grande humanidade”, diz agora antigo vice-primeiro-ministro Etienne Schneider. Nos dias seguintes, Bettel, dos liberais, Schneider, dos socialistas, e Braz, dos Verdes, juntaram-se e comprometeram-se a formar uma coligação e retirar o Luxemburgo das mãos dos democratas-cristãos.
Braz trazia um discurso novo aos Verdes, afastando-os da ecologia radical e impregnando-os de um novo sentido de estado. Nas eleições de 2013 o partido conseguiria 10 por cento dos votos e entrou na coligação. O lusodescendente tomou a pasta da Justiça e brilhou no cargo. Cinco anos depois, o partido conseguia mais de 15 por cento dos votos nacionais. Felix estava a partir desse momento em igualdade de circunstâncias com os restantes parceiros da coligação. Durante 261 dias, foi vice-primeiro-ministro.
O juramento de Félix Braz como vice-primeiro-ministro. © Créditos: Julien Warnand/SIP
Como diz Bibi, a mulher, era um homem novo quando sofreu o enfarte que mudaria tudo – tinha apenas 53 anos. Ninguém pode nunca adivinhar até onde poderia ter chegado. Bibi sabe apenas que ele aprendeu a voar alto, que chegou muito longe, e que tinha muita estrada para andar. E também sabe que caiu de um trapézio sem rede, e que agora está a aprender a levantar-se devagarinho, e a dar os passos todos de novo outra vez. Mas, antes como agora, tudo o que ela sente é um imenso orgulho nele. Não é toda a gente que tem direito a uma segunda vida.