Há um cantão no Luxemburgo que tem a sua própria moeda
A nota de 20 euros foi desenhada com base no tema do Ambiente por um rapaz de 15 anos da região. © Créditos: António Pires
Nas comunas do cantão de Rédange há quem pague as compras em Beki. É uma moeda alternativa ao euro, que pode ser trocada no banco e só circula entre dez municípios luxemburgueses. História do sistema independente de dinheiro que tenta dar vida à região mais deprimida do país.
A moeda do cantão de Rédange
A padaria Beim Bäcker Jos é uma instituição de Beckerich. É aqui que os habitantes do centro-oeste do país vêm encomendar os seus bolos de casamento e batizado, comprar o pão para o pequeno almoço e os pretzels para a hora da merenda. A estrela da casa são as caixas de bolinhos sortidos – metade baunilha, metade chocolate e compota de morango a unir as duas partes. "Estamos aqui há 50 anos e vem gente de toda a região fazer aqui as compras, até da Bélgica", diz Natacha Orban, que há mais de um quarto de século é o rosto atrás do balcão. "A maioria paga em euros, mas também temos muita gente a pagar em Bekis. Aceitamos as duas, às vezes recebemos numa moeda e fazemos o troco noutra, mas na verdade não é nada complicado."
© Créditos: António Pires
Na caixa das moedas e notas há um compartimento para o Beki. É esse o nome do sistema monetário alternativo que circula nesta região desde 2013. "Nestes nove anos, calculamos que mais de 1,5 milhões de euros foram transacionados em Beki", diz Max Hilbert, o homem que implementou a ideia e que dirige o De Kär, a associação que gere toda esta fortuna. "Neste momento, temos 170 mil Bekis em circulação. Quando começámos, eram apenas 60 mil e ao fim de dois anos já tínhamos crescido para os 120 mil. E agora estabilizámos aqui."
Esta é a moeda local do cantão de Rédange. Está indexada ao euro, e por isso um euro equivale a um Beki. Há notas de 1, 2, 5, 10, 20 e 50, mas se alguém pagar com uma nota destas e precisar de receber troco em moedas é certo que vai recebê-las em cêntimos. "Todos os bancos da região trocam as duas divisas", explica Hilbert. "Mas, quando se vai converter Bekis em euros, perde-se cinco por cento na transação. No entanto, há muitas pessoas que são defensores convictos da ideia e insistem sempre. Eu sou um desses", e ri-se.
Foi para proteger o comércio local que o Beki nasceu em 2013. A divisa, bem vistas as coisas, só circula nos dez municípios que compõem o cantão de Redange. Há cerca de 100 estabelecimentos aderentes, de cafés a seguradoras, de cabeleireiros a agências de serviços, de supermercados a restaurantes. "A ideia é que o dinheiro circule na região e permaneça na região. É um incentivo para que as pessoas comprem localmente, incentivem a economia nas suas aldeias, contrariem o despovoamento a que este cantão tem sido sujeito nos últimos anos", insiste Hilbert. Os sinais, até agora, têm sido animadores.
Segundo o dirigente do De Kär, há um efeito de contágio quando se começa a usar Beki. "Umas pessoas começam a apresentar a moeda às outras, e um estabelecimento que receba nesta divisa vai passar a usá-la mais frequentemente, também", diz ele. Mas a medida só funciona nas terras de Redange. "Uma vez, andou aqui um holandês e perguntaram-lhe se queria receber o troco em Bekis. Ele perguntou o que raio era aquilo e explicaram-lhe que era dinheiro a sério, e valia tanto como o euro. Só não lhe disseram que aquilo não valia nada fora desta zona. Nessa noite, num café em Diekirch, ele tentou pagar uma bebida em Bekis e olharam para ele como se fosse de outro planeta."
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O dono do bar acabaria por chamar a polícia, porque o turista holandês insistia que aquilo era mesmo dinheiro a sério. "A sorte é que um dos agentes era de Beckerich e conhecia o projeto. Se não, o pobre do holandês ainda havia de acabar preso por andar a circular dinheiro falso", diz Hilbert desmanchando-se a rir. "Mas bom, agora ele sabe que o Beki é a moeda do cantão de Redange e só pode ser usada no cantão de Redange."
Dinheiro contra o capitalismo
A ideia de criar uma moeda local nesta zona do país nasceu da cabeça de um dos políticos mais conhecidos do país, Camille Gira. Em 1990, foi eleito burgomestre de Beckerich pelos Verdes, cargo onde permaneceria até 2013, quando assumiu a pasta de secretário de estado do desenvolvimento sustentável na primeira coligação Gâmbia – a união entre liberais, socialistas e verdes liderada por Xavier Bettel. Gira teria uma morte trágica em 2018, foi vítima de um ataque cardíaco quando discursava em pleno parlamento. Mas, nas terras do centro-oeste, ainda hoje é lembrado como o impulsionador de uma nova filosofia de poder local.
Max Hilbert revelou-se o parceiro ideal para a aventura. "Eu tinha estudado em Salzburgo, na Áustria, e a minha tese de curso tinha sido sobre dinheiro. Dediquei um capítulo inteiro às moedas locais e o impacto que elas tinham não só na economia de uma região como no meio ambiente", conta ele. Gira, que ouvira falar desta ideia num encontro internacional na Suíça, andava entusiasmado em criar qualquer coisa do género para aquela zona. "Eu andava com ideias de apresentar um projeto destes para a minha região de origem, o Nordstad [a grande cintura urbana do norte, que inclui as comunas de Bettendorf, Colmar-Berg, Diekirch, Erpeldange, Ettelbruck e Schieren]. Mas o Camille convenceu-me a arrancar as coisas aqui. Então vim para cá."
Max Hilbert está no projeto desde o primeiro dia. Acredita que uma moeda local tem o condão de proteger o comércio da região e fortalecer os elos entre os seus habitantes. © Créditos: António Pires
Trabalhando num único município a moeda nunca teria a mesma força. Em 2012 nasceu um grupo de trabalho que tentava por em contacto os dez municípios e, a 1 de janeiro de 2013, as primeiras moedas entraram em circulação. "O nome Beki não foi cunhado por nós, mas por um jornalista da RTL que soube que andávamos a preparar isto e batizou-o assim. O Camille Gira não gostou nada da ideia, porque assim a moeda ficava associada a um município – Beckerich – e isso podia fragilizar os outros", conta Hilbert. "Mas, a partir do momento em que o nome saiu, já estava. E, pronto, ficou Beki."
Para se apresentar ao mundo, o Beki puxou dos galões anticapitalistas. "O sistema monetário em que vivemos tende a enriquecer os que já são ricos. Os outros trabalham para aceder a essa riqueza, quase como se alugássemos um pedaço de terra. Isso cria uma pressão tremenda sobre o sistema. Para que os trabalhadores acedam a um quinhão dos bens, e para que os acumuladores de riqueza a preservem, a economia tem de estar sempre a crescer", opina Hilbert. "Então assistimos a fenómenos como a globalização, que escavam um fosso ainda maior entre ricos e pobres." Foi precisamente isso que eles quiseram contrariar.
Pensamento global, ação local
A globalização traz outro problema que, nas palavras de Hilbert, o Beki resolve. "Qual é o sentido de ir a um supermercado para comprar produtos vindos da China e depois ignorarmos o que produzimos na nossa própria região", pergunta o homem. "Ao incentivarmos o comércio local reduzimos a pegada ecológica que os transportes internacionais provocam. E ainda garantimos um balão de oxigénio às economias regionais."
Todas as notas de Beki têm uma temática diferente. Simbolizam as apostas estratégicas da administração local. © Créditos: António Pires
Um bom exemplo do que acontece em Redange é o projeto de uma associação de jovens agricultores. Recuperaram terrenos que iam deixando de ser cultivados, ergueram estufas e apostam no respeito total pela sazonabilidade do produto. "Eles também estão a receber em Bekis, e neste caso fizeram um contrato ainda mais ousado. Os clientes são pessoas daqui que, todas as semanas, recebem um cabaz de frutas e legumes. Mas pagam à cabeça aquilo que vão ter nos meses seguintes", explica Hilbert. É uma ideia de gestão partilhada: se for um bom ano agrícola, a cesta vem cheia, se for mau vem mais vazia.
O conceito parece-lhe particularmente pertinente se se considerar o contexto luxemburguês. "A economia luxemburguesa está saturada. Temos classes riquíssimas que não investem aqui porque aqui já não há onde investir. Então põem o seu dinheiro noutras partes do planeta, deixando muitas vezes esta região ao abandono. Ao investirmos numa moeda que só funciona localmente, os produtos frescos vão chegar mais frescos aos que aqui vivem, atividades que estão à beira da extinção têm uma nova oportunidade e o desenvolvimento sustentado, ambiental, social e cultural, também cresce", diz Hilbert.
Este privilégio que o Beki dá à sua própria região é visível até na impressão das notas. Se a primeira série de 2013 foi desenhada por uma das mais conceituadas ilustradoras do país, Patricia Lippert, a segunda – deste ano – foi alvo de um concurso aberto a toda a população do cantão. E os vencedores foram na verdade dois miúdos: um tem 20 anos e chama-se Gilles Even, outro tem apenas 15 e responde por Felix Reinard, ou Mr. Neko.
As notas têm temáticas diferentes, e falam as linhas-mestras em que a administração local quer investir na região. Economia (nas notas de 1 Beki), Desenvovilmento Rural (2), Turismo (5), Crianças e Jovens (10), Clima e Ambiente (20) e Terceira Idade (50). São impressas com requintes de uma casa da moeda, têm filetes de segurança e desenhos que só se conseguem ver em contraluz. No verso, têm publicidade ou histórias de lendas locais, escritas à mão por gente que vive nesta zona. Se é o dinheiro deles, então também é feito por eles.
O orgulho de Redange
Quando se pensa qual é a parte mais isolada do Luxemburgo, a tendência natural é pensar que ele é mais forte nas terras do Eislék, as Ardenas florestais do norte onde a II Guerra se tornou infame. Mas, quando se olha para os números, a verdade é diferente. As mais pequenas comunas luxemburguesas, aquelas que menos população têm e mais perderam nos últimos anos, não estão nos cantões de Clervaux, Vianden ou Wiltz, como seria expectável. Estão em Redange.
Dos 102 municípios do país, esta região acolhe os três mais pequenos em população. O menor de todos é Saeul, depois vêm Wahl e Grosbous. "Estão muito mais perto da capital do que as terras do norte, qualquer coisa entre 30 e 40 quilómetros. Mas este eixo do centro-oeste não tem estradas nem interesses económicos que aguentassem aqui gente. Então as pessoas foram desaparecendo, e com elas os pequenos negócios que davam vida às terras", diz Max Hilbert.
Há, no entanto, um orgulho imbatível dos cidadãos desta região pelo seu território. "Aqui as pessoas conhecem a história e fazem questão de contá-la. Ser deste cantão é pertencer ao Luxemburgo mais antigo, mais tradicional, e penso que isso foi o fator determinante para tornar a moeda num caso de sucesso", explica ele. Apesar de toda a gente conhecer o Beki, nem todos o utilizam frequentemente. "Os mais indefetíveis são pessoas que vivem e trabalham aqui, a maioria com uma idade já avançada, mas um amor total pela região onde vivem. Eles sentem que o Beki é um novo traço de identidade que chegou a uma região que o perde", continua.
Há quem acredite tanto no Beki que chega a levá-lo em viagens para fora para mostrar aos forasteiros o orgulho de Redange. "Um dos meus vizinhos fez isso há pouco tempo quando foi passar uns tempos a Espanha", conta Hilbert. "O problema é que foi assaltado e roubaram-lhe a carteira. Gostava de ter visto a cara do ladrão quando descobriu que tinha sacado uma pequena fortuna que não podia usar para coisa nenhuma", diz entre gargalhadas. "Bom, pode ser que apareça por aí um dia desses. Assim como assim, vai contribuir para o desenvolvimento do comércio local."