Dentro da mente de um assassino
Em três meses, duas mulheres portuguesas foram brutalmente assassinadas e desmembradas no Luxemburgo. Apesar das semelhanças no método, são casos completamente diferentes no motivo. O que é que levou os homicidas a cometer tais crimes? O que é que leva alguém a matar e a desmembrar outra pessoa? Especialistas da medicina legal, da psiquiatria, da polícia e do serviço prisional dão a resposta. Este é o raio-x do cérebro de um assassino.
Fúria
Como é que alguém pode matar outra pessoa? É difícil imaginar o que é que vai na cabeça de um homem naquele momento. Naquele instante. O que é que os levou a pegar numa faca, a olhar para as suas vítimas enquanto desferiam os golpes, matando-as em sangue frio. O que é que os levou a desmembrar os seus corpos, a cortar-lhes a cabeça, os braços, as pernas. Terão sido dominados pela raiva? Pelo ciúme? Agiram num impulso de fúria que não puderam controlar? Ouviram vozes dentro da cabeça que os comandaram? Ninguém, além deles próprios, pode saber ao certo. A mente de um assassino continua a ser um enigma.
Mataram duas mulheres portuguesas no Luxemburgo. Ambas se chamavam Diana. Tinham 40 e 32 anos. Foram brutalmente assassinadas em setembro e em dezembro do ano passado. Dois crimes separados por apenas três meses. E ligados por algumas semelhanças. Além do mesmo nome – que quase parece uma maldição, embora seja somente uma terrível coincidência –, o facto de terem sido mortas em circunstâncias distintas, mas com métodos idênticos. Os seus corpos foram mutilados e desmembrados. As suas vidas tragicamente roubadas.
A história começa com o mistério da morte de Diana Santos. O seu corpo nu, desmembrado, decapitado foi encontrado no dia 19 de setembro de 2022, atrás de um edifício abandonado em Mont-Saint-Martin, na fronteira francesa com o Luxemburgo. Os membros inferiores tinham sido cortados ao nível dos joelhos, não havia braços, nem cabeça. Seria quase impossível de identificar, não fosse a tatuagem com o nome do filho, “Kiko”, cravada na pele. O ex-namorado confirmou que era Diana, uma portuguesa de 40 anos que vivia no Grão-Ducado.
Ler mais:Quem matou Diana? Tudo o que se sabe desta história
Um dos suspeitos foi detido no dia 6 de outubro, quase três semanas após a descoberta do corpo. Said B., um cidadão marroquino de 48 anos, está em prisão preventiva na penitenciária de Schrassig, acusado de homicídio “com premeditação”. É considerado o principal suspeito do crime. O alegado marido de Diana, chamado Gibran, sobrinho de Said, também teria estado na casa de ambos, em Diekirch, no dia em que o homicídio foi cometido, domingo, 18 de setembro. Continua até hoje desaparecido e as autoridades não confirmam se é considerado suspeito e se está a ser procurado. Em novembro, foram encontradas outras partes do corpo da portuguesa em Temmels, na fronteira alemã com o Luxemburgo. O caso ainda está a ser investigado.
Poucos meses depois, outra mulher portuguesa assassinada e desmembrada. Outra Diana, outra tragédia. A jovem de 32 anos foi morta por um vizinho numa divisão partilhada de um edifício em Bonnevoie, no dia 22 de dezembro de 2022. Naquela manhã, o homem de 45 anos atacou a mulher, que vivia num dos quartos com o namorado, e matou-a. O corpo foi encontrado "parcialmente desmembrado e mutilado" no quarto do suspeito. Horas depois, o homicida atacou outro vizinho, um estudante sírio de 27 anos, com uma faca. A vítima sofreu vários golpes em diferentes partes do corpo, mas tentou defender-se e conseguiu fugir.
Ler mais:"Ele queria matar toda a gente". A verdade sobre a morte de portuguesa em Bonnevoie
O assassino foi detido pouco depois. Quando a polícia chegou ao local, encontraram o homem no seu quarto, junto ao corpo desmembrado de Diana. Segundo os vizinhos, ele terá dito aos agentes: 'É bom que tenham vindo agora, senão ia matar toda a gente'. Descrevem-no como hispânico, porque tem um nome espanhol, e dizem que era cozinheiro. Vivia naquele apartamento há cerca de um ano e meio e teria ficado desempregado ou estava de férias naquela semana. Está em prisão preventiva na cadeia de Sanem. É acusado de homicídio, homicídio qualificado e tentativa de homicídio. O caso também ainda está a ser investigado.
Autópsia
Um dos elementos mais importantes na investigação de um homicídio é a autópsia do corpo da vítima. É naquela mesa fria de metal que se identificam cadáveres ou restos humanos, que se determinam a causa e as circunstâncias da morte. No Luxemburgo, as autópsias são realizadas no Departamento de Medicina Legal do Laboratório Nacional de Saúde (LNS), em Dudelange.
É ali que trabalha Thorsten Schwark, chefe de serviço de Patologia Forense. Não esteve envolvido nas autópsias das duas portuguesas assassinadas, mas já viu casos suficientes nos 18 anos de carreira para saber como desvendar crimes como este.
No caso de um corpo desmembrado, o procedimento é o mesmo de uma autópsia normal. O cadáver é examinado por dois médicos legistas, um assistente e um polícia. “Tentamos descobrir, por exemplo, que tipo de armas foram usadas. Não é assim tão fácil desmembrar um corpo. É preciso usar armas e as armas deixam marcas. Isso é um pouco diferente do que nas autópsias normais”, explica Schwark. Através das feridas ou dos ossos, conseguem descobrir se o assassino usou uma faca, um machado, uma serra ou algo completamente diferente.
Thorsten Schwark, chefe de serviço de Patologia Forense do LNS. © Créditos: António Pires
A parte difícil quando se tem apenas partes de um corpo é descobrir qual foi a causa da morte, porque se por exemplo a vítima morrer de um traumatismo craniano e a cabeça não for encontrada, não se consegue saber a origem do ferimento mortal. “Tentamos descobrir o que podemos. Depois é feita uma análise de ADN para identificar a vítima. Se outras partes do corpo forem encontradas, seremos capazes de confirmar muito rapidamente a ligação dos membros”, garante o especialista. Foi isso que aconteceu no caso de Diana Santos, quando partes do corpo foram encontradas na Alemanha e foram associadas às partes encontradas em França através do ADN.
Uma autópsia também pode revelar muito sobre as motivações de um assassino para desmembrar o corpo da vítima. Segundo Schwark, existem dois tipos de mutilação: defensiva e ofensiva. “A defensiva tem a ver com razões de ordem prática, como, por exemplo, quando o autor do crime precisa de se livrar do corpo, então corta-o em partes para que caibam em sacos ou numa mala. Outra razão poderia ser para tentar tornar impossível ou pelo menos mais difícil a identificação da vítima”.
Uma terceira hipótese é a tentativa de não deixar quaisquer vestígios. “Li o relatório de um caso de uma mulher que foi violada e depois estrangulada, então o perpetrador cortou os dedos das mãos e a zona genital, ou seja, todas as zonas com que teve contacto próximo. Para tentar impedir a polícia de encontrar vestígios de ADN no corpo”.
Ler mais:Há cinco homicídios por ano que não são detetados nas autópsias no Luxemburgo
Depois há o lado ofensivo da mutilação, que, de acordo com o médico legista, tem mais a ver com o próprio assassino e a sua relação com a vítima. “Se a morte tem alguma coisa a ver com uma relação sexual, o perpetrador pode cortar os seios da mulher, por exemplo. Ou mutilar a cara, porque era a sua amada e o deixou, então ele pega numa faca e corta-lhe a língua ou algo do género. Pode ser uma pessoa necrófila que corta as partes genitais ou qualquer parte do corpo apenas para satisfação sexual. Nesses casos, são normalmente pessoas com um problema psiquiátrico que mutilam um corpo para estímulo sexual, ou vingança, ou outro motivo pessoal”, explica Schwark.
É de alguma forma lógico, embora cruel, que alguém pense em desmembrar outra pessoa para que não seja identificada.
A mutilação ofensiva também pode ter motivos religiosos, quando o perpetrador tem a convicção de que precisa de cortar partes do corpo para impedir que o espírito da vítima volte. “Às vezes são crenças religiosas, como por exemplo num ataque terrorista, quando se corta a cabeça de alguém. Os motivos podem ser diferentes, mas frequentemente os perpetradores têm um problema psiquiátrico quando recorrem a uma mutilação agressiva. Na defensiva, são mais as necessidades práticas para se livrar de um corpo”. Por isso, o especialista acredita que a mutilação defensiva é mais frequente, enquanto que a ofensiva é muito rara.
Após vários anos a participar em autópsias, Schwark já consegue distinguir as motivações de um homicida e reconhecer os padrões de comportamento. “É de alguma forma lógico, embora cruel, que alguém pense em desmembrar outra pessoa para que não seja identificada ou para transportar partes do corpo mais facilmente. Se olharmos para a mutilação agressiva, não vemos este padrão. Geralmente é mais focada nas partes genitais, nos peitos ou na cara, mas é de certa forma mais aleatória”, reflete o médico, afirmando que é possível perceber a motivação quando se olha para a vítima. Mas nem sempre.
Há uma primeira impressão, mas quanto mais informação houver, melhor. “Se o perpetrador for apanhado, é possível descobrir mais. Não é apenas um diagnóstico que fazemos. Tentamos classificar o crime, mas depois poderá descobrir-se outros motivos”.
Impulso
Em 2022, foram realizadas 115 autópsias médico-legais no país: 85 ordenadas pelo tribunal da comarca da Cidade do Luxemburgo e 30 pelo tribunal da comarca de Diekirch. São os números mais elevados dos últimos oito anos, segundo os dados cedidos ao Contacto pelo LNS. Os registos mais próximos são as 107 autópsias em 2019 e as 108 em 2015. Em comparação com o ano de 2021, que registou 93 destes exames, houve um aumento de 22 casos. Pode isto significar que existe um maior número de homicídios – e de casos de mutilação – no Luxemburgo?
Ler mais:LNS faz uma centena de autópsias por ano
Thorsten Schwark acredita que, tendo em conta um “número tão pequeno” de casos no geral, não existe um aumento considerável. Especialmente nos casos de mutilação. “Fiz uma pesquisa das estatísticas e obviamente existem mais casos em áreas com muitas pessoas, como grandes cidades. Li num artigo de um colega que em 500 autópsias forenses, havia um corpo mutilado. Isto em Hamburgo, na Alemanha, uma cidade com quase dois milhões de habitantes. Em outras áreas, não se encontram casos desses tão frequentemente”, compara o especialista, que considera que a proximidade entre os dois recentes casos no Luxemburgo é apenas um acaso. “Às vezes, as situações acontecem próximas umas das outras sem qualquer significado estatístico”.
Em 2021, foram registados três homicídios no Grão-Ducado, mais um do que em 2020. As agressões também aumentaram em 5% de um ano para o outro, segundo o relatório apresentado pela polícia luxemburguesa e o Ministério da Segurança Interna em abril do ano passado. Os números de 2022 ainda não foram revelados, mas tendo em conta os casos de homicídios tornados públicos, e confirmados pelo Ministério Público – como o do português que matou um casal vizinho a tiro em outubro ou do homem que matou a mulher com um martelo –, é expectável que haja um ligeiro aumento.
Nos casos que ainda estão a ser investigados, como os das duas portuguesas, a polícia não está autorizada a publicar pormenores sobre o homicídio, como a arma utilizada ou a relação entre a vítima e o perpetrador.
Como regra geral, a polícia classifica os homicídios de acordo com o contexto e motivo do crime, por exemplo, homicídio ligado a um roubo violento, violência doméstica, acerto de contas, crime de honra, crime sexual, entre outras categorias, que não são mutuamente exclusivas. Além desta classificação, “é também importante analisar a relação perpetrador-vítima e as circunstâncias que precederam imediatamente o ato fatal”, explica Marc Stein, diretor do Serviço Psicológico da Polícia Grã-Ducal.
Marc Stein, diretor do Serviço Psicológico da Polícia Grã-Ducal. © Créditos: Guy Jallay
As hipóteses são várias: “Qual era a intenção do assassino na altura do ato? Será que ele queria quebrar a resistência da vítima numa violação, por exemplo? A morte ocorreu acidentalmente? Matou para não deixar viva uma testemunha que o pudesse denunciar, identificá-lo e mandá-lo condenar? O assassino estava sob a influência de álcool ou drogas na altura? Ou sofria de uma doença mental, por exemplo, delírios ou alucinações? Ou um distúrbio de personalidade, como a sociopatia? Também aqui, vários fatores podem estar interligados, como a realidade no terreno demonstra”, assinala o especialista.
Ler mais:
Quando se traça a personalidade de um assassino, Stein é da opinião de que não existe um “perfil típico”. No entanto, pode encontrar, num número significativo de homicidas, semelhanças “em termos de uma socialização muito inadequada com ou devido a uma falta de controlo e instabilidade emocional”.
É esta predisposição, segundo o psicólogo, que pode precipitar uma “dinâmica fatal em interações sociais conflituosas, por exemplo durante uma luta, um roubo, um assalto ou uma agressão sexual”. No caso dos psicopatas, por exemplo, existe uma combinação de fatores psicológicos, biológicos, genéticos e ambientais que pode resultar em “comportamentos psicológicos particulares, tais como impulsividade ou destemor, que os levam a procurar o risco e os tornam incapazes de integrar normas sociais”.
Uma mudança nas condições de vida do assassino, por exemplo um emprego ou uma relação conjugal estável, poderia ser um fator preventivo.
Para a polícia, uma das soluções para evitar estes impulsos mortais passa pela prevenção de comportamentos agressivos e ataques físicos, que podem resultar em homicídios. Mas será possível cortar o mal pela raiz? Stein acredita que sim, mas admite que isso é bastante difícil de conseguir no terreno. “Uma mudança nas condições de vida do assassino, por exemplo um emprego ou uma relação conjugal estável, poderia ser um fator preventivo, tal como a terapia com treino comportamental alternativo em situações críticas. Para alguns assassinos, o tratamento farmacológico poderia também reduzir o risco de cometer o ato”, reflete, notando que estas medidas exigiriam uma certa “consciência e motivação” para mudar por parte da pessoa em risco, “o que infelizmente nem sempre é o caso”.
Psicose
O ano de 2022 parece ter sido particularmente violento. Os casos de homicídios subiram, assim como as agressões. Estará a criminalidade a aumentar no Luxemburgo? E, por conseguinte, há mais pessoas nas prisões? “Se considerarmos toda a população prisional, não podemos dizer que há realmente um aumento. Houve um aumento nos anos 2007-2008, em que tivemos em Schrassig uma grande sobrelotação de reclusos. Porque não se deve confundir a disponibilidade arquitetónica das celas com as camas efetivamente disponíveis, especialmente para a detenção preventiva”, explica Serge Legil, diretor da Administração Prisional do Luxemburgo.
Ler mais:Mais de uma centena de portugueses presos em Schrassig em 2021
A 23 de janeiro de 2023, o serviço prisional tinha uma população total de 702 reclusos, 33 dos quais em prisão preventiva por “homicídio intencional” e 59 condenados pelo mesmo crime. A prisão de Uerschterhaff, em Sanem, destinada apenas para homens, contava com 155 prisioneiros, todos em preventiva. A prisão de Schrassig, em Contern, tinha 468 reclusos, dos quais quatro menores. Destes, 293 haviam sido condenados e 171 aguardavam julgamento. A prisão de Givenich, em Rosport-Mompach, tinha 79 reclusos, incluindo duas admissões voluntárias e 77 condenados. Entre todos os prisioneiros, há 58 nacionalidades, contando-se 117 pessoas de nacionalidade portuguesa.
A população prisional sofreu uma “diminuição considerável” durante a pandemia da covid-19. “Por duas razões. Em primeiro lugar, porque a concentração de pessoas nas prisões era obviamente prejudicial para os funcionários e para os prisioneiros. Então os tribunais tentaram que ficassem em prisão preventiva apenas aqueles em que tal era estritamente necessário e inevitável. E, em segundo, todos aqueles que estavam no final das sentenças e que sairiam nas duas ou três semanas seguintes foram libertados, precisamente para evitar a propagação do vírus”, recorda Legil. Depois da covid, o número de reclusos voltou “a estabilizar relativamente depressa”.
Serge Legil, diretor da Administração Prisional do Luxemburgo. © Créditos: Pierre Matgé
Quanto ao tipo de crime, o diretor das prisões não acredita que haja um aumento nos casos de homicídios no Luxemburgo. “Isso é algo que ainda é bastante raro. Se compararmos com o mesmo período do ano passado, em que havia 544 reclusos no serviço prisional, 45 dos quais condenados por homicídio e 28 em prisão preventiva pelo mesmo crime, a proporção é a mesma. As categorias que realmente explodem são os roubos com violência e narcóticos. Mas não os crimes de sangue”, compara. E o que é que acontece aos reclusos que cometeram crimes violentos? São separados dos outros? “É um pouco mais complexo do que isso”, assume Legil.
Em casos de homicídio, o estado psicológico dos reclusos deve ser avaliado. “É preciso distinguir imediatamente duas coisas. Em primeiro lugar, as pessoas que são detidas são rapidamente rastreadas nos primeiros dois ou três dias. Um rastreio psicológico também, dentro de 20 a 40 horas após a chegada, em consulta com um médico”, conta o responsável.
“E, em segundo, se houver a menor dúvida, há sempre um rastreio por uma enfermeira psiquiátrica, também nos primeiros dois ou três dias. Há médicos que têm dúvidas sobre o estado psiquiátrico da pessoa. E não falo apenas de adictologia, mas de patologia psiquiátrica ou psicose, entre outras coisas”.
Há grupos de psicopatas, que são muito raros. São capazes de compreender o que fizeram e o significado do seu ato.
Caso haja dúvidas sobre a capacidade da pessoa para ser responsável pelo seu crime, “há imediatamente um psiquiatra que entra em linha e que faz uma análise”. Se essa avaliação médica levar a que o recluso fique detido devido a uma doença psiquiátrica no momento dos factos, ou mesmo depois, há uma mudança na ordem de detenção e esta pode ser convertida em colocação judicial.
“A pessoa é colocada no hospital neuropsiquiátrico estatal durante 30 dias para observação. E se após esse tempo os psiquiatras chegarem à conclusão de que existe realmente uma patologia psiquiátrica significativa, geralmente o juiz de instrução levanta a ordem de internamento e a pessoa já não é declarada criminalmente responsável”.
Depois, o recluso ficará sob supervisão médica num estabelecimento psiquiátrico até que dois médicos, que não são membros do mesmo hospital, cheguem simultaneamente à conclusão de que ele já não representa um perigo. “Também há casos de crimes muito graves e violentos em que os homicidas estavam em plena posse das suas faculdades. Há grupos de psicopatas, que são muito raros. São capazes de compreender o que fizeram e o significado do seu ato”, salienta Legil, mostrando o outro lado da moeda. “E há aqueles que o fizeram por alguma razão, em fúria, e que se arrependem depois. Que se encontravam num estado ligeiramente secundário, mas consciente”.
Redenção
Até que ponto pode um assassino realmente arrepender-se do crime que cometeu? Pode alguém que matou e desmembrou outra pessoa merecer redenção? Niamh Catherine Power, médica especialista em psiquiatria no Serviço Psiquiátrico Prisional (SPMP), acredita que sim. “Muitos pacientes que cometeram infrações no contexto de doenças psiquiátricas graves podem beneficiar de tratamentos multidisciplinares e de reabilitação e podem ser reintegrados com sucesso na sociedade”, afirma, lembrando que uma pessoa que regresse à prisão após um período de tratamento psiquiátrico não será julgada pelo mesmo delito original e que pode voltar ao hospital em qualquer altura “se houver uma deterioração subsequente na sua saúde mental”.
A psiquiatra salienta também que um prisioneiro pode dirigir-se por vontade própria, em qualquer momento, à equipa de ajuda psiquiátrica. Outros profissionais que trabalham no estabelecimento prisional, como assistentes sociais ou capelães, também podem assinalar alguns casos. As possíveis intervenções do serviço psiquiátrico incluem a prescrição de medicamentos, observação médica ou de enfermagem regular, apoio psicológico, transferência para uma unidade psiquiátrica especial dentro da prisão ou, ocasionalmente, transferência para uma unidade segura num hospital psiquiátrico para observação e/ou tratamento ao abrigo da legislação relevante sobre saúde mental.
Sintomas psiquiátricos tais como crenças ilusórias ou alucinações auditivas de comando também podem ocorrer, mas são consideravelmente mais raros.
Niamh Power lida diretamente com reclusos que cometeram crimes de homicídio. Como médica psiquiatra, é responsável pela análise da saúde mental dos prisioneiros, que são submetidos a avaliações de risco regularmente. “As decisões são influenciadas pelo estado mental predominante da pessoa e não apenas pela natureza da infração cometida”, esclarece a especialista, que sabe melhor do que ninguém como funciona a mente de um assassino. “Existem múltiplos motivos de homicídio, tais como vingança, discussões domésticas, dinheiro, roubo ou consequência inadvertida de agressão. Sintomas psiquiátricos tais como crenças ilusórias ou alucinações auditivas de comando (‘ouvir vozes a dizer a uma pessoa para matar outra pessoa’) também podem ocorrer, mas são consideravelmente mais raros”.
Para perceber os motivos, é também preciso entender a origem do problema. Segundo a psiquiatra, as causas da psicose são variadas, mas incluem vulnerabilidade genética, abuso de substâncias e fatores de stress ambiental. Mas como é que se prova se o perpetrador sofria ou não de um distúrbio psiquiátrico no momento do crime? O psiquiatra independente e especializado nomeado pelos tribunais faz um relatório, oferecendo uma opinião sobre se havia provas de uma perturbação psiquiátrica quando a infração foi cometida. “E, se havia, em que medida isto pode ter afetado ou influenciado a responsabilidade da pessoa. Isto equivale, em termos gerais, a conceitos de diminuição ou falta de responsabilidade criminal”, explica a médica.
Sendo a psicologia humana como é, não há garantias [de reinserção social]. Mas é certo que o tratamento psicoterapêutico tem uma influência.
Serge Legil concorda com a doutora Power na questão da redenção e da reinserção social dos autores de homicídio. Porém, acredita que o sucesso desses casos vai muito além da ajuda psicoterapêutica. “Sendo a psicologia humana como é, não há garantias. Mas é certo que o tratamento psicoterapêutico tem uma influência. E não é apenas o tratamento. É um conjunto de fatores que levam à reinserção social”, argumenta. “É inútil, por exemplo, fazer um prisioneiro beneficiar de todo o tipo de intervenções psicológicas para diminuir o seu desejo de violência e as possibilidades de reincidência, se quando for libertado não tiver qualquer formação, rendimentos, perspetivas ou contactos sociais. O que vai ele fazer? Vai ficar, porque não tem nada lá fora”.
Para o diretor da Administração Prisional, é preciso dar a estas pessoas os meios, além das aptidões psicológicas, comportamentais e sociais. “O fator trabalho e o fator alojamento aquando da libertação são pelo menos tão importantes como os cuidados durante a detenção. Sem os melhores cuidados, se os deixarem sair no final da pena em frente da prisão, não se surpreendam se os voltarem a ver um ano mais tarde”, avisa.
Por enquanto, as investigações dos homicídios das duas mulheres portuguesas continuam em segredo de justiça. Os suspeitos de as terem matado estão a aguardar julgamento. O que vai acontecer a estes homens? A que penas serão condenados? Que avaliações psiquiátricas vão receber? Estão arrependidos do crime que cometeram? É difícil imaginar o que é que vai na cabeça deles neste momento. A mente de um assassino será sempre um mistério.