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O engenheiro físico português analisa os sensores que instalou há umas semanas nos tejadilhos dos autocarros do TICE.
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Cientista português tem uma arma para combater a crise no Luxemburgo: o sol

O engenheiro físico português analisa os sensores que instalou há umas semanas nos tejadilhos dos autocarros do TICE. © Créditos: Anouk Antony/Luxemburger Wort

Em plena crise energética global, um cientista prepara alternativas no Luxemburgo. O físico português David Pera está a testar a aplicação de painéis fotovoltaicos em transportes de passageiros e mercadorias no sul do Grão-Ducado. E esse é apenas o primeiro passo para uma revolução.

Grande Repórter

Uma das coisas que tem de se perceber sobre David Pera, 40 anos, é que ele fala com as mãos. Sempre que o cientista português explica um conceito muito técnico, metade do seu discurso é não-verbal. Quando há dias se dispôs a explicar o funcionamento dos painéis fotovoltaicos, metade do seu discurso tinha quadrados desenhados no ar, raios de luz traçados com as mãos, uma dança de gestos que ajuda a tornar acessível a mais ríspida ciência.

É apaixonado por energias renováveis, sobretudo por energia solar, e isso nota-se assim que abre a boca e os braços. Agora, ele tem um plano para usá-la no pequeno Grão-Ducado e, com isso, ajudar a combater uma crise energética que é global.

Há de repetir esta frase muitas vezes ao longo da reportagem: “O sol nasce todos os dias para toda a gente.” E, ainda que não estejamos habituados a olhar para o Luxemburgo como um país propriamente luminoso, ele garante que as potencialidades do astro são imensas. “O consumo total anual de energia elétrica no país ronda os 5GWh. Bastaria cada cidadão residente instalar 32 m2 de módulos solares para satisfazer as necessidades do Grão-Ducado inteiro.”

Anualmente, em média, o território luxemburguês recebe dois terços do sol que brilha em Portugal. É radiação mais do que suficiente para começar a revolução que ele propõe. Pera trabalha no LIST – Luxembourg Institute for Science and Technology, e mais particularmente no departamento de investigação e inovação ambiental, o ERIN. Desde há uns meses, começou a desenvolver um projeto com a sua própria assinatura, centrado na energia solar. Traçar um mapa que consiga medir a radiação solar em cada ponto do país. “Estou numa fase exploratória, para perceber como podemos potenciar o uso desta fonte de energia que nos chega todos os dias. Trabalho em conjunto com uma equipa de investigadores em geografia e informática e, nesta primeira fase, o objetivo é perceber quanto sol brilha em cada ponto da cidade de Esch-sur-Alzette.”

O projeto chama-se Solar E-Pace. Com o apoio da sua equipa, conseguiu desenvolver um geoportal que mostra todas as ruas, todos os edifícios, todas as árvores e todas as fases de arborização de cada metro de terreno em Esch. Depois, desenvolveu uma parceria com os camiões de distribuição da cadeia de supermercados Cactus e os autocarros de passageiros do TICE – Transportes Integrados do Cantão de Esch para instalar pequenos leitores de radiação solar no tejadilho dos veículos.

David Pera, físico do LIST que está a desenvolver um projeto que pretende libertar o Luxemburgo da dependência energética utilizando a energia solar. 

David Pera, físico do LIST que está a desenvolver um projeto que pretende libertar o Luxemburgo da dependência energética utilizando a energia solar.  © Créditos: Anouk Antony

São meios de transporte que circulam a várias horas do dia, e em todas as estações do ano. “Isso permitir-nos-á medir a intensidade solar e determiná-la perante vários fatores. Há um sem número de coisas que contam na hora de tirar medidas à radiação. A cor das casas, por exemplo, ou a sombra das árvores, têm uma enorme influência na dinâmica solar das cidades”, explica o cientista. Mas essa medição é essencial para que se possa desenvolver uma rede de transportes movidos a energia solar, escolher as rotas mais indicadas para garantir a melhor exposição, escolher parques de estacionamento onde os automóveis possam estar a carregar baterias livremente, ainda que estejam parados.

O sol é limpo e é gratuito. Já devíamos ter começado a trabalhar nas suas potencialidades muito antes.

Num momento em que a crise energética global atrapalha a vida a cada cidadão do planeta, um cientista português vem apresentar uma proposta que, no fim da linha, pode conduzir a uma rede sem custos. “O sol é limpo e é gratuito. Já devíamos ter começado a trabalhar nas suas potencialidades muito antes. A guerra na Ucrânia parece ter vindo trazer uma força nova ao discurso das energias renováveis – e à necessidade de criarmos alternativas às fontes que nos habituámos a utilizar”, diz David Pera. “Querem uma alternativa? Muito bem, aqui a temos.”

Plano de ação: Luxemburgo

O engenheiro físico português veio hoje espreitar os sensores que instalou há umas semanas nos tejadilhos dos autocarros do TICE. David Pera sobe por uma escada para o alto do veículo acompanhado por Mike Schoos e Luc Mangen, respetivamente membro da direção e chefe operacional da rede transportadora do sul do país. “Tramado é um tipo ter vertigens”, ri ele enquanto se empoleira junto aos aparelhos de ar condicionado. Ali está um pequeno aparelho que lê a radiação. E um minipainel fotovoltaico, que alimenta a captura e o registo das informações. O sol já está a trabalhar em prol do sol.

Fundado em 1914, o TICE opera hoje 157 autocarros e transporta anualmente 10 milhões de passageiros. “Metade do nosso combustível funciona a biogás, a outra metade é a diesel, que, claro, é altamente poluente. Queremos transformar isso nos próximos anos, ter mais baterias e mais hidrogénio, em vez de continuarmos dependentes das energias fósseis”, diz Schoos. “Não podemos simplesmente continuar assim. A nossa frota rola 7 milhões de quilómetros anualmente. Só no que toca a gás, temos gastos diários superiores a cinco mil metros cúbicos. Isso torna a mobilidade mais cara e menos acessível. Então claro que o solar pode ser uma grande ajuda. Não resolve necessariamente tudo, mas pode ajudar bastante.”

David Pera escuta-o atentamente. Quando ouve Mangen queixar-se que a introdução destas novas tecnologias é lenta, que levará 20 anos até a frota de transportes luxemburguesa poder funcionar a sol, ele salta para dentro da conversa para trazer otimismo à discussão: “As coisas estão a evoluir muito mais rápido do que se pensa. Há carros que conseguem hoje operar com energia solar e as empresas que os fabricam prometem já uma autonomia na casa dos 70 por cento. Para refrigerar os camiões frigoríficos, temos uma independência energética com o solar que chega a tingir os 90 por cento”, explica Pera.

Os painéis fotovoltaicos não funcionam apenas nos dias luminosos, ou quando o sol incide diretamente sobre as cidades.

Os painéis fotovoltaicos não funcionam apenas nos dias luminosos, ou quando o sol incide diretamente sobre as cidades. © Créditos: Anouk Antony

No alto de um autocarro, vai divagando sobre todas as potencialidades desta forma de energia. Diz que, se o projeto funcionar, não só a refrigeração dos transportes de mercadorias como o ar condicionado no transporte de passageiros podem funcionar graças à luz do sol. “E é por isso que este cadastro solar que estamos a fazer em Esch é agora tão importante. Vai-nos permitir analisar variáveis como sombras e clima, horas do dia e reflexo dos edifícios, e adaptar os veículos para que a cidade possa gerar políticas de eficiência que se vão traduzir diretamente numa descida dos custos que são imputados aos cidadãos”, diz. “Isto para não falar no enorme contributo que podemos dar à descarbonização do país.” Não é um sonho, garante Pera. E uma nova realidade que se está a definir para o Grão-Ducado.

Daí a umas horas, há de levar-nos para os gabinetes onde trabalha no LIST e encontrar Ulrich Leopod, um geógrafo experiente que trabalha na sua equipa do Solar E-Pace. “Abre aí o teu computador para vermos aquilo de que estamos a falar”, atira o português.

E no ecrã aparece agora o desenho pormenorizado e tridimensional da segunda maior cidade do país. Cada rua, cada casa, cada árvore, cada zona onde o sol incide direto e cada área onde a sombra vai caindo ao fim da tarde. Quando a recolha de dados estiver feita e trabalhada, esperam eles, as rotas e a dinâmica da mobilidade vai finalmente mudar. “Depois há de chegar a altura de instalarmos painéis nos melhores telhados, de equiparmos as casas e as empresas para que esta adaptação ao solar triunfe”, afirma com um sorriso que é todo esperança. O futuro, bem vistas as coisas, começa agora.

Crise global, soluções locais

Os painéis fotovoltaicos não funcionam apenas nos dias luminosos, ou quando o sol incide diretamente sobre as cidades. Se o tempo estiver nublado, eles continuam a produzir energia – simplesmente em quantidades menores. De noite não, mas David Pera acredita que o hidrogénio pode ser o condutor que guarde a energia produzida durante o dia em baterias. “Um dos grandes problemas das energias renováveis é o seu armazenamento e transporte. E é por isso que eu acredito que temos de deixar de pensar em grandes centrais de produção e em vez disso optar por comunidades energéticas, em que cada grupo de cidadãos resolva as suas necessidades localmente”, atira.

Pera é crítico das grandes centrais fotovoltaicas que estão a ser criadas por exemplo na região portuguesa do Alentejo. “Se é certo que estamos a falar de uma zona de grande exposição solar, por outro lado essa produção massiva de energia vai inevitavelmente traduzir-se num terrível desperdício, porque o transporte e armazenamento são complicados”, diz o cientista. Toda a ideia de grandes zonas centralizadas de produção é-lhe aliás adversa, seja o discurso sobre as eólicas ou as barragens, as centrais nucleares ou as de combustão.

David Pera, Mike Schoos e Luc Mangen.

David Pera, Mike Schoos e Luc Mangen. © Créditos: Anouk Antony

Pera é crítico das grandes centrais fotovoltaicas que estão a ser criadas por exemplo na região portuguesa do Alentejo. “Se é certo que estamos a falar de uma zona de grande exposição solar, por outro lado essa produção massiva de energia vai inevitavelmente traduzir-se num terrível desperdício, porque o transporte e armazenamento são complicados”, diz o cientista. Toda a ideia de grandes zonas centralizadas de produção é-lhe aliás adversa, seja o discurso sobre as eólicas ou as barragens, as centrais nucleares ou as de combustão.

A guerra na Ucrânia e a crise energética que se lhe seguiu vem dar força ao seu argumento. “Além do desperdício, temos de ver que uma produção concentrada é muito mais vulnerável. Um ataque, uma falha, um mau funcionamento vai afetar muita gente ao mesmo tempo. Não, a solução tem de ser diferente”, explica, e os braços mais uma vez a cumprirem a dança que acompanha as palavras.

O que ele acredita é que é possível que cada aldeia, cada bairro, cada prédio, crie soluções de autonomia energética. “Se tivermos políticas ultra-locais de eficiência e produção de energia, não precisamos da tal rede centralizada, gerimos a nossa própria comunidade baixando custos, preservando a segurança e melhorando o planeta”, afirma. Dá vários exemplos de como isto acontece no mundo. E depois lembra o projeto em que andou a trabalhar em Portugal, mesmo antes de se mudar para o Luxemburgo.

Até há um ano e meio, Pera era investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Depois de terminar o doutoramento, foi desenvolvendo vários projetos que melhorassem o comportamento do substrato de silício, a substância que permite a conversão da radiação solar em energia. Mas também tinha vontade de criar ideias que chegassem perto da população e tivessem um impacto imediato na vida das pessoas. E foi assim que ele desenvolveu com a Câmara Municipal de Sintra o SMILE – Sintra Motion & Innovation for Low Emissions.

Em 2018, a ideia recebeu uma bolsa do Espaço Económico Europeu. “O projeto foi pegar num bairro operário, a Tabaqueira, em Albarraque, e transformá-lo num laboratório vivo de eficiência energética”, explica. Para chegar perto das pessoas, envolveram um grupo de gente habituada a trabalhar junto das populações – a Fundação Aga Khan. Tem sido, na sua opinião, uma experiência extraordinária.

David Pera e Ulrich Leopold trabalham no projeto Solar E-Pace.

David Pera e Ulrich Leopold trabalham no projeto Solar E-Pace. © Créditos: Anouk Antony

O SMILE trabalha em quatro áreas – Ambiente, Energia, Mobilidade e Comunidade. Para a primeira parte, instalaram uma horta urbana, criaram sistemas de aproveitamento de águas fluviais, criaram um centro de reparação de eletrodomésticos, mobiliários e utensílios para que as pessoas pudessem reaproveitar e reutilizar os objetos, em vez de deitá-los fora. Em termos energéticos, andaram a visitar as casas do bairro e a prestar consultadoria em como torná-las mais eficientes. Um painel fotovoltaico foi também instalado na escola, para que a vida comunitária prosperasse sem gastos fósseis.

Se o assunto é mobilidade, então eles criaram um sistema de partilha de bicicletas elétricas para a população do bairro. E, no que toca a comunidade, tentaram pôr as pessoas em contacto umas com as outras, ensiná-las a ler as faturas da luz e do gás, dar-lhes formação informática para perceberem as entrelinhas dos documentos e a forma de consultá-los. “Através de um programa em torno do uso correto de energia, conseguiu-se criar um sentido de comunidade, reforçar laços, criar identidade”, diz abrindo os olhos e os braços. “É simplesmente maravilhoso.”

Eis o homem

David Pera nasceu em Lisboa há 40 anos. É filho de transmontanos – a mãe nasceu em Murça e o pai no Vimioso, onde se expressava em mirandês até aos 17 anos, altura em que se mudou para a capital. O rapaz cresceu com fama de engenhocas. “Quando me perguntavam o que queria ser quando era miúdo eu respondia sempre inventor”, ri-se. “Depois pensei em medicina, e tinha notas para entrar. Mas o meu pai era militar e a ideia de ir para a Força Aérea também me fascinava. Enfim, tive todas as indefinições e incertezas que os adolescentes têm naquela idade.”

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Na escola, o seu fascínio maior era a matemática. “Quando começas a perceber a dinâmica dos números entendes que é uma linguagem própria, simbólica, uma invenção que os seres humanos criaram para explicar a Natureza”, conta agora com o mesmo fascínio desses anos inaugurais.

Quando chegou a altura de entrar na universidade, pensou que não queria apenas ser físico – antes engenheiro físico, porque isso lhe dava a oportunidade de criar e não só de analisar. É, afinal de contas, um tipo prático que gosta de galgar autocarros. No início achou que o seu caminho seria o espaço. “A astronomia e a astrofísica são conceitos fascinantes. Assim que começas a perceber a expansão do universo ganhas fome de conhecimento, de saber mais e mais e mais”, diz. Mas algumas disciplinas assustaram-no e fizeram-no avançar por um rumo novo. A crise ambiental e as alterações climáticas preocupavam-no cada vez mais e então percebeu que podia usar a ciência para mudar o mundo. E foi precisamente isso que se propôs a fazer – até hoje.

Envolveu-se num grupo de trabalho na universidade que investigava as células solares. Percebeu de caras que o seu caminho era esse. Como projeto de fim de curso propôs-se criar um pequeno robot que seguisse a luz do sol. Um girassol mecânico, se quisermos. “Eu a achar que estava ali a criar uma coisa completamente nova e mais tarde vim a perceber que era um clássico entre os alunos que tinham interesse por esta área”, zomba. David Pera sabe rir de si próprio e isso é outro sinal de inteligência.

David Pera testa o minipainel fotovoltaico que alimenta a captura e o registo de informações.

David Pera testa o minipainel fotovoltaico que alimenta a captura e o registo de informações. © Créditos: Anouk Antony

Envolveu-se num grupo de trabalho na universidade que investigava as células solares. Percebeu de caras que o seu caminho era esse. Como projeto de fim de curso propôs-se criar um pequeno robot que seguisse a luz do sol. Um girassol mecânico, se quisermos. “Eu a achar que estava ali a criar uma coisa completamente nova e mais tarde vim a perceber que era um clássico entre os alunos que tinham interesse por esta área”, zomba. David Pera sabe rir de si próprio e isso é outro sinal de inteligência.

No mestrado, projetou um reator que criasse células solares. No doutoramento, que fez parte do programa MIT (Massachusetts Institute of Technology) em Portugal e no qual teve alguns dos melhores professores do globo, voltou ao instinto prático. “Na altura o mercado do silício estava a assistir a um enorme aumento de preços e eu tentei criar alternativas de produção de células que convertessem o sol em energia. Os preços haveriam de normalizar mas este trabalho está feito – e um dia que haja uma nova escalada estamos preparados para continuar a usar eficientemente a energia do nosso astro maior”, conta o cientista.

Seguiram-se anos de pequenos projetos científicos. Criou pequenas turbinas eólicas urbanas para potenciar a produção de energia nos lugares onde o vento é mais fraco. Fez consultadoria a empresas e municípios para que aproveitassem melhor a energia dos elementos e menos os combustíveis fósseis. Andou sempre fascinado com a história dos tratores e veículos de transporte movidos pelo sol – e foi essa curiosidade que emigrou com ele para o Luxemburgo, onde chegou há ano e meio. “Acredito que a minha missão na vida é, de uma forma ou de outra, prestar um serviço público para combater a emergência climática”, diz com um tom firme. Então a sua revolução já começou. Está a acontecer todos os dias, num pequeno Grão-Ducado no centro da Europa.

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