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As irmãs luxemburguesas que prometeram construir o santuário de Fátima em Wiltz

Tinham 17 e 12 anos na altura em que a promessa foi feita, durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje, 74 anos depois, Marie-Josée e Antonia Thill, as únicas sobreviventes, regressaram a Wiltz para rever o local onde tudo aconteceu e recordar a mais longa noite da Batalha das Ardenas.

Paula Telo Alves (texto) Sibila Lind (vídeo e fotografia)

(Reportagem publicada originalmente em maio de 2019.)

É quinta-feira. A uma semana da peregrinação ao santuário de Fátima em Wiltz, está tudo a postos: a relva foi cortada, o altar a céu aberto está limpo. Joseph Crochet, um luxemburguês que trabalha para a paróquia, poda as árvores meticulosamente. O santuário, que atrai todos os anos cerca de 20 mil portugueses, “é a grande atração de Wiltz”, explica o reformado, nascido em 1943, dois anos antes da promessa que deu origem ao local. Hoje, a romaria está tão associada aos portugueses que muitos não sabem que foi construído por luxemburgueses.

Fernanda Pereira vive “depois da ponte que sobe para o santuário”, na mesma rua que todos os anos se enche de peregrinos, na quinta-feira da Ascensão. De terço ao pescoço, balde de água na mão, faz limpezas no museu da Batalha das Ardenas, no castelo de Wiltz. Todos os dias limpa o pó aos expositores cheios de fardas com suásticas, às fotografias que mostram a destruição da localidade, aos painéis com os nomes dos mortos e os deportados durante a ocupação alemã. Passa todos os dias por um expositor com a reconstituição da promessa que deu origem ao santuário de Fátima, onde vai desde que chegou ao Luxemburgo, há três anos.

Mas quando lhe perguntamos se conhece a história, diz que “foi uma conquista dos portugueses”. “Foi colocada naquele sítio por escolha dos portugueses, pelo que sei. Foi uma grande conquista”. Fernanda tem 34 anos, não fala luxemburguês nem alemão, e não tem tempo para ver o museu que limpa há mais de um ano. “É sempre a andar, que eu tenho hora para começar e hora para acabar”, explica. “O que lá está escrito, ou as pessoas e o que representavam naquela época, não sei”. Não é a única.

Marie-Josée Thill observa a recriação de cenários do período de guerra, no Museu da Batalha das Ardenas, em Wiltz.

Marie-Josée Thill observa a recriação de cenários do período de guerra, no Museu da Batalha das Ardenas, em Wiltz. © Créditos: Sibila Lind

Viagem ao passado

Do museu onde Fernanda trabalha acabam de sair as duas últimas sobreviventes do grupo que fez a promessa, as irmãs Marie-Josée e Antonia Thill. Para elas, a visita ao museu é história viva: procuram o nome de um vizinho que foi deportado, recordam um professor fuzilado pelos nazis, que deixou mulher e quatro filhos. “A mulher não suportou o desgosto, morreu seis semanas depois”, conta Marie-Josée Thill.

A promessa foi feita há 74 anos. O voto de construir um santuário de Fátima naquela localidade do Norte do Luxemburgo aconteceu em 13 de janeiro de 1945, durante a Batalha das Ardenas, na Segunda Guerra Mundial. Wiltz, que ficaria conhecida como “cidade-mártir”, por causa das centenas de vítimas durante a ocupação alemã, fica a vinte quilómetros de Bastogne, na Bélgica, o epicentro da batalha sangrenta que opôs alemães e aliados, e a evacuação da localidade estava iminente. Uma dezena de luxemburgueses refugiados na cave do presbitério decidiu então fazer a promessa de construir um santuário dedicado a Fátima, se a localidade fosse salva.

A freira carmelita Marie-Josée Thill, então com 17 anos, fazia parte do grupo que se refugiou na casa paroquial, depois de a casa onde vivia com os pais e as duas irmãs, junto à ponte que hoje conduz ao santuário, ter sido destruída por explosões, em dezembro de 1944. “A nossa casa foi a primeira a ser destruída”, recorda. “Foi por isso que o padre veio a nossa casa, a casa do meu avô, que era muito crente, e propôs-lhe que fóssemos para a cave da casa dele. Era toda a minha família, os meus pais e nós, as três irmãs. Ainda havia uma família com duas crianças, uma senhora idosa e a irmã do padre”, conta.

As três irmãs eram Léonie, a mais velha, que morreu há três anos, Marie-Josée, que adotou o nome Anne-Thérèse quando entrou para o convento, no ano seguinte ao fim da guerra, e a mais nova, Antonia. O álbum de família mostra-as sorridentes, em julho de 1939, antes de a guerra começar, no ano em que se assinalava o primeiro centenário da independência do Grão-Ducado. “Todo o país estava em festa”, recorda Marie-Josée, hoje com 92 anos, a folhear o álbum. “Foi por essa razão que houve uma tão grande resistência durante a guerra, porque as pessoas sentiam-se inteiramente luxemburguesas”.

A ocupação

O pesadelo começou em 10 de maio de 1940, quando os alemães invadiram o país. “Eu tinha 12 anos quando a guerra começou e os alemães vieram. Lembro-me muito bem. De manhã, a minha mãe veio acordar-nos e disse: ’os alemães estão aí’. Sabíamos que iam chegar, estávamos à espera. Chamaram os cidadãos para fazer uma demonstração de máscaras de gás, ficámos logo com medo”.

Wiltz seria uma das cidades que mais viria a sofrer com a ocupação. Marie-Josée recorda as deportações de vizinhos “em vagões, de janelas fechadas”, os quatro professores fuzilados pelos alemães, a proibição de falar francês, considerada “a língua do inimigo”, a escola destruída. “Foi terrível”, conta. “Os alemães colaram cartazes a dizer 'Feind hört mit!', o inimigo está à escuta. Era uma situação de medo e desconfiança. Não sabíamos o que os outros pensavam, houve mesmo pais que denunciaram os filhos e filhos que denunciaram os pais”.

Foi em Wiltz que começou o movimento de resistência ao ocupante. Forçados a combater no exército alemão por um decreto de 31 de agosto de 1942, os habitantes de Wiltz iniciam uma greve que se alastra ao resto do país. Como represália, 21 habitantes foram executados. Dos quatro mil residentes, duas centenas foram forçados a combater no exército alemão, 91 foram deportados, 15 morreram nos campos de concentração. A contagem é de Joss Scheer, um historiador da localidade.

Por todo o lado, em Wiltz, há sinais da guerra: estátuas do general Patton, um tanque americano, campas com os nomes das vítimas. No cemitério, ao lado do túmulo do padre Prosper Colling, de quem partiu a ideia de fazer a promessa a Fátima, uma lápide recorda um habitante de Wiltz que morreu em Dachau, em 1942, com 40 anos. Dali vê-se o santuário de Fátima, no cimo da colina Baessent, com a bandeira portuguesa e luxemburguesa agitadas pelo vento. O cemitério é a primeira paragem que Marie-Josée Thill pede para fazer, durante o passeio a Wiltz com a irmã Antonia e o Contacto, para prestar homenagem ao padre Prosper Colling.

As irmãs Thill no cemitério onde estão enterrados os seus familiares e o padre Prosper Colling.

As irmãs Thill no cemitério onde estão enterrados os seus familiares e o padre Prosper Colling. © Créditos: Sibila Lind

A localidade seria libertada em setembro de 1944 pelos americanos, e Marie-Josée lembra-se da alegria quando chegaram. Um soldado americano disfarçou-se de São Nicolau, no dia 6 de dezembro, e distribuiu prendas às crianças, incluindo a Antonia, na altura com 12 anos. Mas foi paz de pouca dura. Numa manobra desesperada, Hitler decide tentar uma última cartada, concentrando as forças alemãs entre a Bélgica e o Luxemburgo. O ataque, iniciado em 16 de dezembro, apanhou de surpresa os Aliados, que davam a guerra quase por terminada, depois do desembarque na Normandia. A batalha durou sete semanas e seria uma das mais sangrentas da Segunda Guerra Mundial. Em Wiltz, 80% das casas foram destruídas. Os habitantes refugiaram-se em caves e abrigos, para se protegerem dos bombardeamentos. Viviam-se dias de desespero.

Refugiados numa cave

À esquerda, a casa da família Thill que foi destruída em dezembro de 1944.

À esquerda, a casa da família Thill que foi destruída em dezembro de 1944. © Créditos: DR

O grupo de luxemburgueses de que faziam parte as irmãs Thill viveu na cave da casa paroquial entre dezembro de 1944 e finais de janeiro de 1945, e Marie-Josée, então adolescente, recorda-se bem dessa época de terror. “Durante o dia, estávamos sempre na cave, só saíamos para ir à missa. Mas era muito perigoso. Um dia, a minha mãe e nós as três saímos da igreja e ouvimos um ’spitzer’ [bala] mesmo à nossa frente”, lembra, a imitar o siflado. E Marie-Josée dormia num beliche a um palmo do teto. “Quando havia ’einschlage’ (explosões), caía poeira e pedras”.

Uma noite “ouviram pancadas fortes na porta” da casa paroquial. “O padre subiu as escadas com uma vela e eu fui atrás dele, não o queria deixar ir sozinho. Ele abriu a porta. Havia dois ou três soldados bêbedos, ’oh mam!’. E com um fuzil virado ao contrário bateram-lhe no queixo. Um soldado disse ’Hände hoch!’, mãos ao alto, como se diz em alemão, e descemos para a cave”. Marie-Josée segurava a vela que iluminava o grupo. “Eles olharam e viram que havia vinho, porque os padres têm sempre uma reserva, e foi o meu pai e outro homem que estava na cave que foram obrigados a levar-lhes o vinho. No final, deram-lhes uma coronhada com o fuzil”.

A destruição em Wiltz durante a Segunda Guerra Mundial.

A destruição em Wiltz durante a Segunda Guerra Mundial. © Créditos: Arquivo Luxemburger Wort

O desespero instalava-se. “Já não tínhamos futuro. É por isso que percebo os refugiados que têm o olhar vazio. Vivíamos apenas o momento. O nosso padre era muito severo, não podíamos queixar-nos. Era uma desgraça coletiva. Tínhamos de ter confiança em Deus e apoiar–nos uns aos outros. Era uma situação sem saída. Perguntávamo-nos se íamos viver novamente em paz ou se era o fim”.

A agressão ao padre e ao pai de Marie-Josée terá acontecido dias antes da noite em que o grupo fez a promessa, num inverno duríssimo, com “montanhas de neve”. A 13 de janeiro de 1945, ao anoitecer, “os alemães vieram falar com o padre e disseram-lhe que tínhamos de deixar Wiltz, porque os americanos estavam a chegar e a cidade ia ser evacuada”. “Sair durante a noite, no meio da neve, com aquele frio! Era a morte certa”, recorda a freira carmelita. “Então o padre perguntou se não podíamos ficar até ao dia seguinte, porque já era de noite.”

Os alemães acederam. Com poucas horas até à evacuação, os luxemburgueses fecharam-se na cave a rezar, num torpor que Marie-Josée recorda bem. “A irmã do padre cozeu uma grande panela de batatas, e eu estava tão desolada que nem as pelei, comi–as com casca. Agora era tudo igual. Já não tínhamos capacidade de decidir, já não tínhamos coragem, estávamos no fim das nossas forças”, conta. “Foi neste momento de desolação que o padre decidiu fazer a promessa. Era o nosso único recurso, o céu, já não tínhamos mais forças.”

Aguarela feita pela mais velha das três irmãs, Léonie Thill (1922-2016), recriando o momento da promessa.

Aguarela feita pela mais velha das três irmãs, Léonie Thill (1922-2016), recriando o momento da promessa.

Os alemães acederam. Com poucas horas até à evacuação, os luxemburgueses fecharam-se na cave a rezar, num torpor que Marie-Josée recorda bem. “A irmã do padre cozeu uma grande panela de batatas, e eu estava tão desolada que nem as pelei, comi–as com casca. Agora era tudo igual. Já não tínhamos capacidade de decidir, já não tínhamos coragem, estávamos no fim das nossas forças”, conta. “Foi neste momento de desolação que o padre decidiu fazer a promessa. Era o nosso único recurso, o céu, já não tínhamos mais forças.”

A promessa

O texto da promessa foi escrito “em cima de um barril de chucrute” e assinado pelos luxemburgueses que viviam na cave – incluindo por Marie-José Thill, que entraria para o convento um ano depois, adotando o nome atual, em vez daquele com que assinou o documento. No texto, conservado nos arquivos da Arquidiocese do Luxemburgo, promete-se “construir na colina de Baessent uma ’via crucis’ dedicada ao Sagrado Coração de Jesus e a Nossa Senhora de Fátima”, em sinal de “confiança na ajuda” desta aos habitantes e “em memória do enorme sacrifício de tantas famílias” durante a guerra.

“Toda a gente conhecia Nossa Senhora de Lourdes, mas para nós Fátima era longe, era como se fosse na lua. Mas ele já tinha uma veneração por Nossa Senhora de Fátima e tomou a decisão de prometer construir-lhe um monumento”, explica Marie-Josée. O papa Pio XII tinha consagrado o mundo inteiro a Fátima em 1942, quando se assinalavam 25 anos desde as chamadas “aparições” aos três pastorinhos, e estas começavam a ser populares na Europa. Um dos segredos revelados pela irmã Lúcia, nos anos 1940, dizia que a primeira guerra mundial, em curso na altura das “aparições”, em 1917, ia acabar, mas que outra começaria.

Em Wiltz, a manhã veio, mas a localidade não chegou a ser evacuada. Uma semana depois, a 21 de janeiro de 1945, os alemães bateram em retirada. “Foi realmente a providência. Ele pensou em Fátima. E agora é um verdadeiro santuário para os portugueses. Mas muitos não sabem por que razão foi construído”, lamenta Marie-Josée.

Em 1947, a imagem peregrina de Fátima passou pelo exato local onde o monumento viria a ser construído, durante uma viagem pela Europa para assinalar o fim da guerra. A promessa foi cumprida e o santuário dedicado a Fátima foi inaugurado em 1952, na colina ’Op Baessent’, na localidade. A escultura de Fátima, em alto-relevo, foi feita por um artista de origem italiana de Esch, Aurelio Sabbatini, o mesmo que assinou as decorações na ponte Adolphe e o monumento ao general Patton em Ettelbruck. Com a chegada dos primeiros portugueses, iniciou-se uma peregrinação ao santuário, em 1968, na quinta-feira da Ascensão.

Regresso ao futuro

No alto da colina, há uma semana, a freira carmelita extasia-se com a cidade a perder de vista, a relva aparada, o cuidado posto no santuário a céu aberto. “Agora está bem arranjado, e é por vossa causa, por causa dos portugueses, porque têm cuidado para que tudo esteja bem, com flores. Vejo aí a providência. E como eu tenho muita simpatia pelos portugueses, é prazer a dobrar”, diz, a rir. “Estamos tão contentes com os portugueses”, diz Antonia. A mais nova das três irmãs tem uma loja em Mersch e diz que uma das empregadas chegou a fazer a peregrinação a pé, “desde Bissen”.

O destino das três irmãs separou-se depois da guerra. Marie-Josée entrou num convento, “uma vocação que já vinha desde os 15 anos”. “Chorei tanto!”, recorda Antonia. Marie-Josée adotou o nome de Anne-Thérèse e esteve mais de seis anos sem voltar a Wiltz, onde só regressaria para a inauguração do santuário, em 1952. “Foi uma grande emoção, uma grande satisfação. Fizemos o que prometemos”, recorda. Antonia, que não assinou a promessa, por ser ainda criança, casou com um alfaiate. Os dois abriram uma loja de roupa em Mersch que hoje está nas mãos dos filhos. A irmã mais velha, Léonie, falecida há três anos, ficou solteira, a viver em Wiltz, onde dava catequese.

Depois da morte do padre Prosper Colling, em setembro de 1968 – quatro meses depois da primeira peregrinação dos portugueses ao santuário –, tornou-se a cronista do voto de guerra que deu origem ao monumento: pintou aguarelas que reproduzem a vida na cave, a noite da promessa, deu muitas entrevistas. Os luxemburgueses conhecem sobretudo a irmã mais velha, que morreu em 2016, com 94 anos.

Passaram-se 74 anos e Marie-Josée e Antonia são agora, segundo o atual padre da paróquia, as únicas sobreviventes da noite em que tudo aconteceu. “Nunca fui tão fotografada como hoje”, brinca a freira carmelita, a posar para a foto com a bandeira portuguesa em fundo, no alto do santuário.

Nos arcos do monumento podem ler-se os nomes dos deportados e dos mortos em Wiltz. “O santuário é o agradecimento pela paz que recebemos”, frisa a religiosa. Por causa de uma costureira portuguesa que fazia os hábitos para o convento, de quem ficou amiga, a freira foi várias vezes de férias a Portugal e esteve três vezes no santuário da Cova da Iria, geminado com o de Wiltz. “Fico muito contente por termos tão boas relações com Portugal, tornámo-nos uma grande família”.

A casa onde as irmãs viviam, em ruínas durante a guerra, foi reconstruída. No dia em que lá fomos, estava em obras de renovação. O nome que se lê na caixa do correio é de portugueses. “Talvez estejam a fazer um restaurante português”, brinca Marie-Josée. As irmãs olham à volta, espantadas com tanta verdura, a água a correr por baixo da ponte onde brincavam em crianças, onde tiraram fotos com a mãe, com vestidos de festa, bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial e agora reconstruída.

“Antonia, anda passear na ponte”, pede Marie-Josée. As duas movem-se com dificuldade, apoiadas em bengalas, mas as caras estão sorridentes. “Kuckt [olha], Antonia, como tudo mudou!”. “Schéin! [que lindo]”.

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