
A sopa dos pobres no Luxemburgo
Nunca houve tanta gente a pedir ajuda para comer no Luxemburgo. O número de pessoas que recorrem aos restaurantes e mercearias sociais não pára de aumentar. Procuram refeições a 50 cêntimos e compram produtos mais baratos em fim de prazo. Muitas têm trabalho, mas o dinheiro não chega ao fim do mês. Este é o retrato de um país rico em gente pobre.
Na fila para comer
É segunda-feira de manhã e as ruas de Esch-sur-Alzette estão praticamente vazias. Os seis graus celsius e o céu nublado entristecem este dia pouco primaveril. Num café na Rue de l'Alzette, vai-se formando uma pequena fila de pessoas. Pedem um expresso ou algo rápido para comer no caminho para o trabalho.
Ali a poucos metros, vê-se outro grupo a fazer espera à porta do número 21 da Rue de l'Église. Aquela casa, que antes albergara uma escola de música, é agora um dos três restaurantes sociais da Stëmm vun der Strooss, uma associação que ajuda pessoas carenciadas.
Pelas 11h30, já uma dúzia de homens e mulheres aguarda de pé pela abertura da porta. São novos e velhos, luxemburgueses e estrangeiros, trabalhadores e sem-abrigo. Ali o acesso é para todos, sem discriminação.
De casacos longos e gorros na cabeça, vão combatendo este frio atípico de abril, antes de poderem aquecer o estômago com uma refeição quente. Para alguns, a única do dia.
O número 21 da Rue de l'Église em Esch é a morada de um dos três restaurantes sociais da Stëmm vun der Strooss. © Créditos: Chris Karaba
Vinte minutos depois, quando já se conta o dobro das pessoas, a porta abre finalmente. Em fila, vão subindo calmamente os degraus, esperando cada um pela sua vez, pela sua comida.
Uma equipa de voluntários e trabalhadores comunitários vai recebendo os beneficiários. À entrada, duas pessoas recolhem o valor simbólico de 50 cêntimos por refeição e 25 cêntimos pelas bebidas. Apontam o número de pessoas que são servidas, através de umas pequenas fichas azuis, que são moeda de troca pelo prato do dia.
A ementa de hoje é ‘currywurst’, uma especialidade alemã que consiste em pedaços de salsicha de porco com um molho de ketchup e curry, acompanhada por batatas fritas e salada. Para beber, há água, refrigerante, sumo e café.
De prato nas mãos, as pessoas vão ocupando os lugares livres nas várias mesas do espaçoso salão, em frente a um palco que outrora se encheu para aulas e concertos. Agora, não é a música que enche a sala. É a fome. Em apenas 40 minutos, mais de 120 refeições já foram servidas.
No restaurante social da Stëmm vun der Strooss em Esch-sur-Alzette, mais de 200 refeições são servidas por dia. © Créditos: Chris Karaba
Ana Paula ainda está na fila, mas não sabe se vai ter tempo para almoçar no restaurante, porque daqui a nada tem de ir trabalhar. “Acho que vou pedir para levar”, confidencia. A cabo-verdiana da cidade da Praia, na ilha de Santiago, frequenta este espaço há seis meses. Praticamente desde que chegou ao Luxemburgo, há oito.
Quando decidiu deixar Saragoça, cidade espanhola onde viveu durante 15 anos, estava longe de imaginar que hoje se encontraria ali, a pedir ajuda para comer. Veio porque uma amiga lhe ofereceu casa, mas dois meses depois teve de sair. Encontrou um quarto em Esch por 800 euros.
Trabalha nas limpezas, a sua profissão de sempre, mas o que ganha pelas quatro horas diárias, que é pouco mais de mil euros ao fim do mês, mal chega para sobreviver. “Fica apertado para conseguir pagar o quarto, as contas e não ficar a viver na rua. Não resta nada. Foi por isso que comecei a vir comer aqui, porque não quero ficar na rua”.
Se não fosse esta ajuda, eu ia embora. Já estava pronta para ir embora. Graças a esta casa, podemos comer.
Sempre que pode, ou quando não tem tempo para cozinhar, a mulher de 54 anos vai àquele restaurante. Antes ainda tentava fazer as compras no supermercado, mas gastava 200 euros por semana “só com as coisas básicas”, como leite, pão ou massa.
“Nem sequer me atrevia a comprar uma garrafa de azeite”, admite. “A vida aqui é caríssima. Não sei como as pessoas conseguem viver assim. Se não fosse esta ajuda, eu ia embora. Já estava pronta para ir embora. Graças a esta casa, podemos comer”.
Entre o tempo de espera, Ana Paula decide levar o almoço numa caixa que guarda gentilmente na mochila, para comer no caminho para o trabalho.
Mais de 200 refeições por dia
Se quisesse comer ali na sala, já teria dificuldades em encontrar um lugar vago. Pelas 12h30, as mesas estão praticamente todas ocupadas. “Vem muita gente. Há dias em que nem temos sítio para sentar”, lamenta a cabo-verdiana.
Para garantir que o restaurante funciona normalmente e que haja espaço e comida para todos, há um responsável que vai orientando o serviço. Adilson Silva, 32 anos, é educador e a sua função é formar os trabalhadores de serviço comunitário (TUC), que são pessoas que recebem o REVIS (rendimento social de inserção) e que procuram apoio para a integração laboral no âmbito do projeto Caddy, da associação.
Além disso, trata da gestão de conflitos, porque quando abrem as portas, explica, “as pessoas querem comer rápido, têm sempre perguntas e como recebemos por dia umas 200 pessoas, há sempre um conflito”.
O jovem, nascido no Luxemburgo mas de origem cabo-verdiana, trabalha no restaurante há quatro meses, mas já conhecia bem “a população que necessita de ajuda”, uma vez que tinha trabalhado no Abrigado, na Cidade do Luxemburgo.
É normal que as pessoas venham aqui. Se podem comer todos os dias por 50 cêntimos, gastam 15 euros por mês, em vez de gastarem 15 euros por dia.
Quando começou, serviam cerca de 180 a 200 refeições por dia. Agora, há dias em que servem 270. Já não são apenas os sem-abrigo que batem à porta do restaurante para comer. Nos últimos anos, têm aparecido cada vez mais pessoas com emprego.
“Há umas que trabalham, outras que vivem na rua. Nota-se um aumento. Até pessoas que trabalham na comuna de Esch, a limpar as estradas, vêm comer aqui”, afirma Adilson, que acredita que os números vão continuar a subir. “As pessoas têm dificuldade em ir às compras, é normal que acabem por vir comer aqui. Se podem comer todos os dias por 50 cêntimos, gastam 15 euros por mês, em vez de gastarem 15 euros por dia”.
No último ano, foram servidas 123 mil refeições nos dois principais restaurantes da Stëmm vun der Strooss, em Esch e em Hollerich, na capital. Um aumento de 27% em comparação com as 97 mil refeições em 2021.
Quanto ao número de pessoas que frequentam as instalações da associação, seja para comer, vestir ou ir ao médico, também houve um grande crescimento: 6.972 em 2022 em comparação com 4.922 em 2021. Ou seja, um aumento de 41% num ano. Desses, metade são novos utentes. Se tivermos em conta a progressão desde 2014, o número de beneficiários subiu em 150% e o das refeições em 81%.
Bob Ritz, responsável de comunicação da associação Stëmm vun der Strooss. © Créditos: Chris Karaba
Quanto ao número de pessoas que frequentam as instalações da associação, seja para comer, vestir ou ir ao médico, também houve um grande crescimento: 6.972 em 2022 em comparação com 4.922 em 2021. Ou seja, um aumento de 41% num ano. Desses, metade são novos utentes. Se tivermos em conta a progressão desde 2014, o número de beneficiários subiu em 150% e o das refeições em 81%.
Para Bob Ritz, responsável de comunicação da associação, é inegável que os números não param de aumentar. “Em Hollerich, servimos 300 refeições por dia, em Esch servimos mais de 200 e em Ettelbruck, que começou oficialmente há dois meses, servimos 80. Com a covid, a guerra, a crise, a inflação, tudo ficou mais caro. Há um crescimento visível de pessoas que vêm aos nossos restaurantes. Procuram cada vez mais este tipo de espaços onde podem obter ajuda e comida por um preço acessível”.
Ali também se veem cada vez mais trabalhadores pobres, dos setores das limpezas, da restauração ou da construção. “Não somos os únicos. Há outras associações que notam que pessoas com trabalho começam a recorrer a estes espaços”.
Estes restaurantes funcionam de segunda a sexta-feira, das 11h30 às 15h30. Em Hollerich e em Esch, há sempre um fim de semana em que um dos espaços está aberto, para que as pessoas tenham sempre uma opção.
Os portugueses são os que mais recorrem a esta associação, representando 16% do total de beneficiários no ano passado, seguidos pelos luxemburgueses (13%) e romenos (6%). Especialmente naquele restaurante em Esch, onde há uma grande comunidade lusófona.
Penso que ninguém que está aqui quer vir cá comer. Vêm porque há necessidade.
Ana Paula faz parte dessa estatística. E não tem vergonha de admitir que precisa de ajuda. “É preciso ter coragem. Penso que ninguém que está aqui quer vir cá comer. Vêm porque há necessidade. Graças a Deus, dão comida a toda a gente”.
Com a mochila às costas, vai-se despedindo dos funcionários, que já são amigos. Agradece uma e outra vez pela comida que leva para o almoço. Está pronta para sobreviver mais um dia. “Vamos lutando. Não é fácil, mas em todo o sítio se luta. Passei fome neste país e se um dia tiver dinheiro vou dar para ajudar aqui”, promete.
Até lá, vai aguentando. Tem esperança que as coisas vão melhorar. “Mas se continuar assim, não vale a pena, porque trabalhar para pagar a renda, com a minha idade… Não me resta nada. Só tenho o meu dinheiro, as minhas mãos e Deus”.
Fazer compras por dois euros
Na tarde daquela segunda-feira, a última do mês, também já havia fila à porta da mercearia social Cent Buttek, em Beggen, na capital. Às 14, hora de abertura das portas, uma dúzia de pessoas aguardava com os sacos e carrinhos de compras nas mãos.
Ali o funcionamento é diferente dos restaurantes sociais. O acesso é apenas permitido aos beneficiários que solicitaram um cartão no gabinete de ação social. À entrada, pagam um preço simbólico de dois euros para levar o que estiver disponível. Os produtos, em fim de prazo de validade, são fornecidos por supermercados, padarias e outras lojas.
Entre as pessoas que ali se deslocaram esta tarde, está uma mulher portuguesa de 64 anos que é cliente habitual da mercearia há quatro, altura em que foi diagnosticada com um cancro. De casaco vermelho e gorro de cor cinza, vai falando com os voluntários da loja, que estão do outro lado do balcão, pedindo-lhes, numa voz suave e em francês, este e aquele produto.
Primeiro, passa na secção dos alimentos secos e começa a encher o carrinho que trouxe consigo. Depois, vai para a secção dos frescos. Aponta para um iogurte, pede um cesto de frutas, vai olhando com calma os produtos que estão na vitrine.
Nas mercearias Cent Buttek, os beneficiários pagam dois euros à entrada e podem levar os produtos que estiverem disponíveis. © Créditos: Chris Karaba
Quando já não tem espaço no carrinho, abre uns sacos de compras para colocar mais uns alimentos. “Hoje levo muita coisa, mas não tenho a carne, nem o leite. Há coisas que às vezes não tem”, desabafa a portuguesa, que não quer ser identificada.
Para a ajudar a levar a mercadoria, veio também a irmã, que aguarda à saída. A mulher vive em Dommeldange, ali a cerca de dois quilómetros, e costuma vir à mercearia de autocarro, três vezes por semana. “Quando preciso, também me levam as coisas a casa. Como tenho cancro, eles ajudam-me. Já conheço toda a gente aqui, são sempre muito simpáticos”.
A portuguesa, que está no Luxemburgo há mais de 50 anos, vive com a filha e a neta num apartamento com dois quartos. Pagam uma renda de 2.000 euros. Ao fim do mês, já não sobra muito. “Se não tivesse esta ajuda, não sabia o que havia de fazer. Com esta doença gasto muito dinheiro, ainda este mês gastei 700 euros. Há anos que já não entro num supermercado”, conta.
Nos últimos meses, tem notado que há cada vez mais pessoas a vir à mercearia, sobretudo mais jovens. “E famílias também. É uma coisa louca. Quando chega às 16 ou 17 horas, já não têm quase nada para dar”.
A mercearia Cent Buttek de Beggen apoia 144 famílias e mais de 300 pessoas. © Créditos: Chris Karaba
O número de pessoas que frequentam as três mercearias sociais Cent Buttek, em Beggen, Bettembourg e Pétange, também aumentou no último ano.
No primeiro trimestre de 2023, entre janeiro e março, contabilizam-se 1.484 beneficiários e 561 famílias, com um aumento de 216 pessoas – mais 66 famílias, incluindo 150 adultos e 66 crianças – em relação ao período homólogo de 2022.
Hoje em dia há mais pessoas que vivem sozinhas e que não conseguem ter dinheiro ao fim do mês.
A maior das três lojas é a de Bettembourg, que ajuda 333 famílias e mais de 900 pessoas. Já a loja de Beggen apoia 144 famílias e mais de 300 pessoas. Cerca de 50% dos beneficiários são luxemburgueses e portugueses.
Para Avelino Dinis, gerente da mercearia social de Beggen desde 2021, é evidente que tem havido um “constante aumento de pessoas”. Se antigamente a maioria dos beneficiários eram sobretudo famílias em dificuldades, agora há cada vez mais pessoas solteiras.
Avelino Dinis, gerente da mercearia social de Beggen. © Créditos: Chris Karaba
Para Avelino Dinis, gerente da mercearia social de Beggen desde 2021, é evidente que tem havido um “constante aumento de pessoas”. Se antigamente a maioria dos beneficiários eram sobretudo famílias em dificuldades, agora há cada vez mais pessoas solteiras.
“Hoje em dia há mais pessoas que vivem sozinhas e que não conseguem ter dinheiro ao fim do mês. Há pessoas que trabalham, outras que não trabalham, ou que tiveram um acidente na vida, uma doença. Todo o tipo de situações”, reconhece o português de 45 anos.
Muitas vezes, nota Avelino, o espaço fica particularmente lotado no final do mês. Há utentes que já são habituais e frequentam a mercearia há vários anos, como a portuguesa que ali veio esta segunda-feira. “Temos entre 40 e 50 famílias que vêm cá todos os dias em que abre. É a assistência social que define durante quanto tempo é que podem vir”, explica o gerente.
O cartão que dá acesso à loja tem de ser renovado a cada três meses. A situação da pessoa ou do agregado familiar é reavaliada por um assistente social, que definirá se esta ajuda é ainda necessária.
Ajuda com números recorde
A mercearia social de Beggen abre todas as segundas e quartas-feiras, das 14h às 18h, e às sextas-feiras, das 13h30 às 15h. Mas o dia começa mais cedo. Todas as manhãs, de segunda a sábado, pelas 8 horas, cinco carrinhas saem para recolher a comida.
Um grupo voluntários recolhe, classifica, limpa e distribui os alimentos, que estão em fim de prazo de validade, mas ainda têm qualidade. Cerca de 750 toneladas de alimentos são poupadas por ano.
Alguns dos produtos são fornecidos pelo Fundo Europeu de Ajuda para os Mais Desfavorecidos (FEAD), desde alimentos, roupas e outros bens essenciais, que são oferecidos às pessoas vulneráveis.
Nunca houve tanta gente a precisar das mercearias sociais no Luxemburgo, desde a sua criação em 2009. No ano passado, 10.741 pessoas fizeram compras nas lojas geridas pela Caritas e pela Cruz Vermelha, com um aumento de mais de 500 pessoas em relação ao ano anterior.
Em comparação com o ano de 2014, o número de utentes mais do que duplicou. Se compararmos o primeiro trimestre de 2023 com o período homólogo de 2022, houve um aumento de 103 famílias e 419 pessoas que beneficiam destas mercearias.
Mapa dos restaurantes e mercearias sociais no Luxemburgo
(clique nos ícones para ver todas as informações)
Segundo dados cedidos ao Contacto pelo Ministério da Família, que contabiliza toda a oferta social do país, em 2022 havia 5.643 famílias e 13.471 pessoas beneficiárias de ajuda alimentar no Luxemburgo. Um aumento de 222 famílias e 765 pessoas em relação ao ano anterior.
Em comparação com o ano de 2019, antes da pandemia da covid, o crescimento é ainda mais significativo nestes quatro anos: há mais 528 famílias e 861 pessoas a precisar de ajuda para comer no país. Para obterem o acesso às mercearias, os interessados devem recorrer aos gabinetes de ação social. No ano passado, os 30 gabinetes do país receberam uma contribuição financeira de cerca de 24 milhões de euros para ajudarem estas pessoas.
Ler mais:Olhem para nós
Em 2022, foram contactados por mais de 19 mil utentes, um aumento em relação às 18.500 em 2021. A maioria das pessoas que contactaram um serviço social tinha entre 30 e 50 anos (42%). Em termos de nacionalidade, os utentes mais representados são os luxemburgueses (28%) e os portugueses (23%).
Sobrecarregados com pedidos de ajuda, os gabinetes sociais estão a precisar de mais recursos humanos. A ministra da Família, Corinne Cahen, comprometeu-se a recrutar mais funcionários para dar apoio às pessoas confrontadas com um risco elevado de pobreza.
Apesar de ser o país mais rico do mundo e com o salário mínimo mais elevado da Europa, o risco de pobreza afeta 18% da população do Luxemburgo, em comparação com 17% a nível europeu para o ano de 2021. A taxa de trabalhadores pobres, de 13,5%, é a mais elevada da zona euro, cuja média é de 5%.
O Ministério do Trabalho diz que está a par do fenómeno dos trabalhadores pobres, mas não dispõe de estatísticas para saber o número exato de pessoas que se encontram nessa situação. Segundo um relatório do instituto luxemburguês de investigação socioeconómica (Liser), mais de 11 mil pessoas vivem abaixo do limiar da pobreza na Cidade do Luxemburgo, o que representa 22% dos trabalhadores da capital.
Estas pessoas ganham uma média de 705 euros, independentemente do tipo de contrato. O salário médio de todos os residentes empregados da cidade é de 5.617 euros.
Pobreza também chega ao Norte
As desigualdades não se notam apenas na capital. A pobreza afeta todo o país, do Sul até ao Norte. Wiltz, por exemplo, é a comuna com maior índice de pobreza em todo o Luxemburgo. É lá que se encontra uma das oito mercearias sociais da Cruz Vermelha.
A tarde de terça-feira é solarenga e silenciosa na pacata zona comercial de am Pëtz, no bairro de Weidingen. Pelas 14 horas, ainda não há muita gente na loja. Ali, ao contrário das mercearias Cent Buttek, os produtos são vendidos em média a um terço do preço de mercado.
O acesso, no entanto, funciona da mesma forma. A loja é reservada a pessoas cuja necessidade foi identificada pelos gabinetes sociais. Nélia é uma dessas pessoas. A portuguesa de 43 anos veio à mercearia esta tarde para fazer as primeiras compras para o próximo mês.
Ler mais:"É inadmissível este aumento galopante da pobreza no país mais rico da Europa"
À entrada, mostra o seu cartão do gabinete social. Tem direito a 50 euros que pode gastar por semana naquela loja, e um total de 650 euros nos três meses em que o cartão é válido, até ao dia 14 de maio. Traz um carrinho de compras e alguns sacos, que vai enchendo com vários alimentos.
Começa pela zona das frutas e legumes. As bananas custam 51 cêntimos por quilo e as laranjas custam 1 euro por quilo. Leva também ovos e uma embalagem de seis garrafas de um litro de leite, que ali custa 75 cêntimos em vez do preço de mercado de 1,59 euros. Os cereais, por exemplo, custam 1,27 euros em vez de 1,85 euros.
Em cerca de cinco minutos, Nélia já tem as compras feitas. Vai pondo os produtos na caixa, para que a funcionária registe e faça o cálculo total. Contas feitas, leva 29 artigos, que lhe custam 37,55 euros. Ainda lhe sobram 12,45 euros para gastar no resto da semana.
Nélia é beneficiária da mercearia da Cruz Vermelha em Wiltz desde 2014. © Créditos: Chris Karaba
A portuguesa já frequenta a mercearia de Wiltz há oito anos, praticamente desde que chegou ao Luxemburgo, em 2014. Na altura, decidiu deixar Lisboa porque o marido perdeu o emprego e o filho mais velho tem necessidades especiais. Em Portugal, não encontravam uma solução para ele.
O casal emigrou com os três filhos. O quarto já nasceu no Luxemburgo. Só uns meses depois é que Nélia conseguiu arranjar emprego. Começou nas limpezas, mas há cinco anos que trabalha como ajudante de cozinha numa escola.
Foi quando se instalaram em Wiltz, ainda em 2014, que Nélia recorreu à assistência social. “Eles é que me ajudaram, porque na altura eu não trabalhava e só tínhamos o rendimento do meu marido. Fui lá, expliquei o meu caso e encaminharam-me para a mercearia da Cruz Vermelha”, recorda.
No entanto, o apoio não foi contínuo. Quando começou a trabalhar nas limpezas, não tinha necessidade de ir à loja. A família viveu num alojamento social em Harlange durante dois anos, que era o limite máximo, uma vez que tanto ela como o marido tinham emprego. Desde 2021, estão a viver em Surré, na comuna de Boulaide, a 15 minutos de carro de Wiltz. Pagam 1700, mais encargos, por uma casa com cinco quartos.
Não temos escolha. Só não há mais pessoas porque têm vergonha de pedir ajuda.
Juntos, Nélia e o marido auferem cerca de 5.000 euros por mês. Desses, mais de 2.000 vão para a casa. “Com as coisas das crianças, não sobra muito. Esta ajuda é uma bênção. Sou cliente habitual, venho pelo menos uma vez por semana. Venho mais pela fruta, os legumes, a carne. Faz uma grande diferença”, garante.
O que não pode comprar na mercearia, compra nos supermercados. Ao fim do mês, não dá para pôr muito dinheiro de lado. “Mas conseguimos viver graças a esta ajuda. Dá para os bens essenciais, o básico. Também temos direito ao vestuário. Tudo o que estou a vestir hoje é daqui”.
Como ela, a portuguesa nota que há muitas outras famílias a recorrer à mercearia social em Wiltz. Sobretudo de manhã, quando as longas filas se formam à porta. “É uma loucura. Tem muita gente, é assustador. De todas as classes, idades e nacionalidades. Como já venho aqui há oito anos, via que no princípio havia mais refugiados, mas agora não. Há trabalhadores como eu e muitos portugueses”.
E a tendência, prevê Nélia, é que o número continue a aumentar. “Não temos escolha. Só não há mais pessoas porque têm vergonha de pedir ajuda. Não querem mostrar que precisam de ajuda. Mas isto não é vergonha nenhuma. Dou graças a Deus por existirem sítios como este”.
Luta contra o desperdício
Numa terça-feira como esta, a mercearia social de Wiltz recebe cerca 50 pessoas. A loja abre às 9h30 e a essa hora, normalmente, já há beneficiários à espera, “porque sabem que vêm os camiões com produtos frescos”, justifica Jessica Schuler, gerente daquele espaço.
É neste dia que recebem as entregas com os produtos com prazo de validade curto dos supermercados. Além de Jessica, trabalham ali mais três pessoas com o REVIS e quatro voluntários.
Jessica Schuler, gerente da mercearia da Cruz Vermelha em Wiltz. © Créditos: Chris Karaba
É neste dia que recebem as entregas com os produtos com prazo de validade curto dos supermercados. Além de Jessica, trabalham ali mais três pessoas com o REVIS e quatro voluntários.
No primeiro trimestre deste ano, a loja tinha 182 famílias (mais 36 do que no ano passado) e 546 pessoas beneficiárias (mais 106). A gerente nota que há cada vez mais jovens sozinhos que trabalham, mas que têm dificuldade em pagar a renda. “Ou jovens casais com um filho, por exemplo. Antes também havia, mas agora vemos mais”, afirma.
As consequências da guerra da Ucrânia, como a inflação dos preços e a crise energética, podem explicar esse aumento, que é no entanto “ligeiro”, segundo o chefe do departamento de ajuda material e alimentar da Cruz Vermelha, François Authelet. “Em média, tínhamos 126 beneficiários por mercearia social em 2022. Em março deste ano, tínhamos 138. Portanto, há um ligeiro aumento de 7%”.
Para a Cruz Vermelha, não deverá ser um desafio responder a este aumento, “porque não é enorme”, reforça Authelet. “Foram concedidos muitos apoios para ajudar as pessoas a ultrapassar a crise energética. Por isso, estas não se dirigiram em massa às mercearias sociais. Há um aumento de preços, mas há também um aumento da população. No Luxemburgo, a população aumenta 2% por ano, pelo que é normal que a população das mercearias sociais também aumente”.
O facto de os beneficiários terem de se dirigir a um serviço social também funciona como “tampão”. “Existem sistemas que fazem com que não seja massivo. Sabemos que há muito mais pessoas, mas isso vem gradualmente e adaptamo-nos de acordo”.
François Authelet, chefe do departamento de ajuda material e alimentar da Cruz Vermelha. © Créditos: Chris Karaba
O facto de os beneficiários terem de se dirigir a um serviço social também funciona como “tampão”. “Existem sistemas que fazem com que não seja massivo. Sabemos que há muito mais pessoas, mas isso vem gradualmente e adaptamo-nos de acordo”.
O responsável não vê, portanto, razões para preocupação. Assegura que a Cruz Vermelha, através das suas oito mercearias sociais, está a fazer “o que é necessário” para garantir o acolhimento das pessoas que precisam de ajuda. “Para já, está tudo dentro do que é aceitável e 100% controlável”.
As lojas disponibilizam cerca de uma centena de artigos, desde produtos alimentares a produtos de higiene. “No ano passado, vendemos 285 mil artigos com um prazo de validade muito curto, entre 0,10 e 1 euro. Portanto, representa mais ou menos 22% do cabaz, ou seja, um em cada cinco artigos tem um prazo de validade muito curto, por um preço que também é muito baixo. É a luta contra o desperdício alimentar”.
As quatro mercearias sociais da Caritas, que funcionam da mesma forma que as da Cruz Vermelha, também registaram uma subida do número de beneficiários.
Entre 2017 e 2021, houve um aumento de 31%. “Ainda antes da covid já estava a aumentar. Durante a pandemia estagnou, mas os números do primeiro trimestre de 2022 até ao primeiro trimestre de 2023 mostram que houve um aumento 10%”, aponta Carole Reckinger, a responsável pela política social da Caritas. “Podemos ver que o risco de pobreza está a aumentar todos os anos. E as desigualdades no país também”.
Não acho que as pessoas passam fome, mas têm menos opções do que podem comer.
Apesar disso, Reckinger não acha que as pessoas passam fome no Luxemburgo, apenas a qualidade da sua comida não é tão boa. “Já não comem legumes frescos, ou carne e peixe fresco, porque têm menos opções. Se as pessoas tiverem de comprar no supermercado, não vão poder comprar produtos de boa qualidade. Este é um grande problema, porque é mais barato comprar comida que não é tão saudável”, reflete.
Além da ajuda das lojas sociais, a responsável defende que deve haver uma visão do Governo. “Não há um plano para reduzir a pobreza e as desigualdades. Sempre que há uma crise, há uma medida que é muito especifica, mas limitada no tempo. Não resolve o problema, apenas o adia. A ajuda deve ser dada de uma forma mais rápida, direta e simples”.
Portugueses são os mais afetados
Naquela tarde de quinta-feira, pelas 14h30, Ana (nome fictício) entrava na mercearia social da Caritas em Diekirch com o filho bebé de poucos meses ao colo. A mulher, na casa dos 30 anos, é uma das várias beneficiárias de nacionalidade portuguesa, a mais representada (24%) naquela loja e nas outras três da instituição – em Esch, Redange e na capital –, à frente dos luxemburgueses (22%).
Veio de autocarro desde Colmar-Berg, a cerca de 10 quilómetros, onde vive num apartamento de três quartos com os três filhos. Além do recém-nascido, tem um rapaz de 18 anos e uma rapariga de 15. Quando o pai do bebé foi embora, ficou sozinha a pagar 1.500 euros de renda, mais 450 de encargos.
Foi nessa altura que Ana decidiu procurar ajuda. Trabalha como ajudante de cozinha em Ettelbruck há oito anos, mas neste momento está em licença de maternidade, recebendo 2.450 euros, mais mil e poucos euros de abono dos miúdos.
“Ao todo, recebo por mês cerca de 3.500 euros. Desses, 2.000 vão para a casa. Mais as despesas todas. Fico quase sem nada. Então fui à assistente social e tive direito a vir fazer compras aqui”, conta. Tem um cartão durante três meses, com um limite de 70 euros por semana para gastar naquela mercearia. “Fica mais barato do que ir ao supermercado. Às vezes até nem venho, porque não tenho dinheiro”.
Há muito tempo que estou nesta situação, sozinha com os meus filhos. Não posso fazer nenhum projeto com eles. Não dá para juntar.
A portuguesa, proveniente da Amadora, está no Luxemburgo desde 2011. Antes, já tinha passado pela Suíça, França e Países Baixos. A vida nunca foi meiga para si, mas nunca passou tantas dificuldades como agora. “Não posso deixar o meu apartamento, porque fico na rua e os miúdos vão diretamente para o Estado. Não temos férias, nem lhes posso comprar a roupa, porque o dinheiro não chega”, lamenta.
Além da ajuda da Caritas, Ana procura também um alojamento social, para poder pagar menos, mas dizem-lhe sempre que “não estão disponíveis”. Só lhe resta o desespero. “Há muito tempo que estou nesta situação, sozinha com os meus filhos. Não posso fazer nenhum projeto com eles. Não dá para juntar”.
Na mercearia social da Caritas em Diekirch, os produtos são vendidos em média a um terço do preço de mercado. © Créditos: Carlo Nilles
Como o caso de Ana, há outros que se vão multiplicando nas mercearias sociais. Cláudia Kühn, responsável pela loja da Caritas em Diekirch, tem notado esse aumento nos últimos meses. Já ali trabalha há sete anos e notava que o número de beneficiários era constante. Mas isso mudou. “Especialmente no ano passado, em que o número aumentou mesmo muito. Pessoas de todas as idades e de todas as classes”, constata.
Entre esses utentes, nota que há muitos portugueses e cabo-verdianos. No entanto, é na loja de Esch-sur-Alzette, a maior de todas as mercearias da Caritas e da Cruz Vermelha, que existe um maior impacto no número de portugueses. É precisamente em Esch que reside o maior desafio para a instituição, porque é no Sul do Luxemburgo que “se encontra a maior população pobre”, relembra Irène Jamsek, responsável pelas mercearias sociais da Caritas.
Irène Jamsek, responsável pelas mercearias sociais da Caritas. © Créditos: Carlo Nilles
Entre esses utentes, nota que há muitos portugueses e cabo-verdianos. No entanto, é na loja de Esch-sur-Alzette, a maior de todas as mercearias da Caritas e da Cruz Vermelha, que existe um maior impacto no número de portugueses. É precisamente em Esch que reside o maior desafio para a instituição, porque é no Sul do Luxemburgo que “se encontra a maior população pobre”, relembra Irène Jamsek, responsável pelas mercearias sociais da Caritas.
“É de facto onde temos o maior crescimento no número de pessoas. Se olharmos para os números, podemos ver que há um aumento de 13% no primeiro trimestre do ano em comparação com dezembro de 2022. Por isso, o nosso desafio é realmente ter a capacidade de acolher estas pessoas de forma decente, correta e respeitosa e sermos capazes de lhes fornecer alimentos suficientes”, afirma.
Na mercearia de Diekirch, o aumento foi de apenas 3% no mesmo período e, no total das quatro lojas, houve um crescimento de 6%. A mercearia que registou uma subida mais acentuada foi a de Redange, com 44%.
Mais pessoas precisarão de ajuda para ter algo para comer no seu prato e no prato dos filhos, acima de tudo.
E a tendência é que continue a aumentar. “Quanto mais dificuldades houver para fazer as compras, pagar a renda, a energia e todas as despesas, então, naturalmente, teremos mais pessoas nas mercearias sociais que precisarão de ajuda para terminar o mês e ter algo para comer no seu prato e no prato dos filhos, acima de tudo”, prevê Jamsek.
Ana vai caminhando com o seu bebé nos braços para a porta de saída, cruzando-se com outros beneficiários que acabam de chegar à mercearia. Não sabe qual será o seu destino ou qual o futuro dos filhos. Mas sabe que não vai sair do Luxemburgo. “Vou para onde? Está cada vez pior em todo o lado. Pelo menos não estou na rua. Oxalá que um dia tenha sorte e que me deem uma casa que seja mais barata. Aí a minha vida vai mudar”, afirma, com tremida esperança.
Por enquanto, vai lutando, como os milhares de beneficiários da ajuda social em todo o país. “As pessoas que ganham o salário mínimo não vivem, sobrevivem. Nós somos os trabalhadores pobres”.