
A amizade de uma vida
Manuel Ceriz tinha 14 anos e estudava no liceu de Mirandela, quando certo dia chegou uma carta com o seu nome, com remetente das Filipinas. © Créditos: Valter Vinagre
A Internet e as redes sociais tornaram demodé as cartas. Em tempos, a grande novidade entre jovens de mais de 100 países era a troca de cartas. Estudantes de todo o mundo, entre os 10 e 20 anos, uniam-se através da escrita. Esta é a história de Manuel Ceriz, músico que tocou com Sérgio Godinho, e Maria Mitos Ojeda, filipina, que em 1966 lhe escreveu uma carta. Trocam correspondência desde aí. São provavelmente os mais antigos penfriends em actividade no mundo. Nunca estiveram juntos. Talvez seja isso que os une.
1966. Algures na latitude 14º 36´15 N e a longitude 120º 58´55 E, com o cesto de lixo repleto de rascunhos amarrotados, uma rapariga escrevia uma carta para um rapaz que estava do outro lado do mundo, um perfeito desconhecido, que vivia e estudava na cidade de Mirandela, distrito de Bragança, Portugal. Como boa católica, temente a Deus, acreditava nas encruzilhadas do destino.
Não foi o acaso ou um sorteio aleatório numa tômbola planetária que os juntou, nenhum mecanismo de Inteligência Artificial, antes uma espécie de cripto-algoritmos, que hoje mais parecem pré-históricos, tal como as cartas parecem ser do domínio da arqueologia. A International Youth Service estava na sua fase boom, o mais próximo que havia de uma rede social, destinada a estudantes entre os 10 e os 20 anos. Ideia magnífica: aproximar jovens de todo o mundo e promover o intercâmbio cultural, através das instituições de ensino, que conjugava estudantes com base nos seus interesses, nos seus gostos pessoais e do seu nível de inglês, fio condutor entre pessoas de universos diferentes.
Maria Mitos Ojeda, nascida em Manila, então a viver em Quezon City, na altura a capital das Filipinas, sabia lá o que era isso de ser penfriend de alguém. À época, vivendo as Filipinas sob uma ditadura, tal como Portugal, parecia até uma coisa um tanto ou quanto subversiva. É da História: as ditaduras temem a força e a irreverência da juventude. Gostam de manter os jovens sob a sua trela ideológica. Era assim no sudoeste asiático, como naquela vírgula ocidental da Europa, reduto último (ou primeiro) do Atlântico, que ela encontrou no globo terrestre da escola, mesmo ao lado de Espanha, nação à qual as Filipinas conquistaram a sua independência.
Mitos tinha 12 anos, vivia com os avós paternos, estudava num colégio católico (Religious of the Good Shepard). O acesso a um colégio privado era, é, um privilégio ao alcance de poucos. A religião católica (93 por cento da população filipina) é o fruto de mais de três séculos de colonização espanhola. O inglês, o fruto da presença americana que se seguiu. Por junto, conta muito da história e da cultura deste recente país.
Não era que os portugueses lhe fossem inteiramente desconhecidos nas aulas de História. Foi Fernão de Magalhães, na circum-navegação ao serviço da coroa espanhola, que em 1521 avistou pela primeira vez aquele infinito arquipélago, com mais de sete mil ilhas. Em 1548, o navegador espanhol Ruy de Villalobos baptizou o arquipélago de Las Islas Filipinas, em honra de Filipe II, rei de Espanha, e de Portugal, entre 1581 e 1598. A primeira colónia espanhola estabeleceu-se nas Filipinas em 1565. Era um ponto estratégico do império espanhol para o comércio com a Ásia, razão pela qual Espanha nunca quis abrir mão deste território.
A revolução filipina só viria a acontecer em finais do século XIX (1896). Em 1898, as Filipinas declaram a sua independência, que Espanha não reconheceu, vendendo o território, como mercadoria, aos EUA. A guerra filipino-americana seria inevitável e longa, tendo de permeio a ocupação japonesa, durante a II Guerra Mundial. Seria reconhecida como nação a 4 de Julho de 1946.
Em 1966, estava no início a lôngeva ditadura de Ferdinand Marcos – casado com Imelda Remedios Visitación Romualdez Marcos, extravagante socialite, que conquistaria o epíteto de “borboleta de ferro”, conhecida por ter sido Miss Filipinas e pela sua infame colecção de sapatos -, que conduziu o país à opressão e à pobreza, à perseguição e à tortura aos opositores do seu regime. Havia que ter muito cuidado com o que se escrevia nas cartas, pois até na mais pura inocência se podia desencantar subversão. Mitos não se enquadrava na “nouvelle vague” da miséria. A sua família não era propriamente rica, não sendo propriamente pobre. “O meu pai era gerente na Delta Motor Corporation (construtor de automóveis filipino) e a minha mãe trabalhava para o Governo, na Comissão de Auditoria. A minha mãe viria a falecer em 1999 e o meu pai no ano seguinte”. Uma tristeza sem fim, que nas cartas o Manuel aprendeu a decifrar.
© Créditos: Valter Vinagre
Em 1966, estava no início a lôngeva ditadura de Ferdinand Marcos – casado com Imelda Remedios Visitación Romualdez Marcos, extravagante socialite, que conquistaria o epíteto de “borboleta de ferro”, conhecida por ter sido Miss Filipinas e pela sua infame colecção de sapatos -, que conduziu o país à opressão e à pobreza, à perseguição e à tortura aos opositores do seu regime. Havia que ter muito cuidado com o que se escrevia nas cartas, pois até na mais pura inocência se podia desencantar subversão. Mitos não se enquadrava na “nouvelle vague” da miséria. A sua família não era propriamente rica, não sendo propriamente pobre. “O meu pai era gerente na Delta Motor Corporation (construtor de automóveis filipino) e a minha mãe trabalhava para o Governo, na Comissão de Auditoria. A minha mãe viria a falecer em 1999 e o meu pai no ano seguinte”. Uma tristeza sem fim, que nas cartas o Manuel aprendeu a decifrar.
Nessa altura (1966) era muito jovem, com os sonhos mais fortes que ela. Podia não saber muitas coisas, mas sabia que as palavras escritas têm esse condão vinculativo. Essa história do penfriend, que à primeira vista parecia de todo insuspeita, tinha a sua quota de perigosidade. Para um jovem, era uma excitação irresistível, só comparável à excitação de escrever uma carta para alguém nos antípodas. Como seria, esse rapaz? Como seria a sua cara, o seu sorriso, a sua casa, a sua escola, a sua cidade, o seu país? Será que conhecia o seu? Tantas eram as suas interrogações que não se lembrava de nenhuma para preencher a terrível agonia do espaço em branco.
Estava difícil encontrar as palavras debutantes. Optou pela objectividade. Uma breve descrição de si, do país, de pretexto à pergunta sacramental: "Would you like to be my penfriend?" No dia seguinte, deixou a carta na caixa postal dos correios de Manila. Sabia que demoraria perto de dois meses a chegar ao destino. Tentou não pensar muito nisso.
Cartas ao vento
Onde estará essa carta? O Manuel sabe que a tem, entre a papelada da sua vida. Um dia destes, quando andar à procura de outra coisa, tropeça nela – mais do que certo. Manuel Ceriz é natural de Mirandela. Ou melhor, "é uma daquelas aldrabices do tempo de Salazar. Na verdade, nasci na Figueira da Foz. Em Mirandela foi uma espécie de naturalização". Em Mirandela, viveu com os seus pais. Mas, como tinha uma saúde delicada, "os médicos disseram que eu precisava de sol e de mar".
Nada a opor. "Acabei por ir viver com os meus avós para a Figueira da Foz, onde fiquei até aos 12 anos. Nessa altura, regressei a Mirandela". Tinha 14 anos e estudava no liceu de Mirandela, quando certo dia chegou uma carta com o seu nome, com remetente nas Filipinas. Das Filipinas o Manuel já tinha ouvido falar. O mesmo não se podia dizer da International Youth Service. De qualquer modo, "foi uma sensação incrível receber essa carta". Imagine-se o que não passa pela cabeça de um jovem. "Como é que a minha fama tinha chegado às Filipinas? Ainda não tinha começado a cantar e já era famoso."
Manuel Ceriz é um músico de eleição. A música, é a sua substância. Nessa altura, ele já tocava guitarra, mas ainda só cantava no duche, quase de certeza temas dos Beatles. Estava ele e muito boa gente sob o efeito enebriante dos Beatles, que atingira Portugal de Salazar com o respectivo delay, com a contracultura a passar por entre as porosidades da censura. Pensando bem, foi por causa dos Beatles que ele recebeu aquela carta que, embora nenhum deles soubesse, os marcaria para o resto da vida.
"Foi de tanto ouvir os Beatles que tinha excelentes notas à disciplina de Inglês. Nem precisava de estudar. Tinha sempre nota máxima". Soube depois que os alunos com melhores notas a Inglês faziam parte de uma lista de professores, que os aconselhavam à International Youth Service (IYS). "Recebi a carta, cheio de curiosidade. Respondi que seria seu penfriend' com muito gosto, embora soubesse lá o que isso representava. Sempre me considerei um ser universal. Achei interessante. Assim começou e assim continuou nos 57 anos que se seguiram". Uma vida por correspondência.
A IYS foi fundada em 1952, em Turku, Finlândia. Unia penfriends em mais de cem países. A organização teve vida longa, mas, qual "Video killed the radio star", tema dos velhinhos Buggles, a Internet matou as cartas. A organização não conseguiu competir com o universo online. Em 2008, caracterizando a triste ironia do momento, escreveu o seu próprio epitáfio numa derradeira carta e entregou-a ao ciber-espaço. A páginas tantas, dizia assim: “A Internet conduziu a uma situação em que o envio de cartas se tornou old-fashioned'. A escrita de cartas, em tempos muito popular, é agora um hobby de poucos. Não conseguimos mais encontrar jovens interessados em amizades penfriend”. Ponto final parágrafo.
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Apesar da carta inaugural se encontrar aparentemente em parte incerta, o seu conteúdo não está perdido, assim como não estão as primeiras sensações nas memórias de Manuel Ceriz, que mantém a sua ligação a Mirandela e à Figueira da Foz, mas encontrou refúgio na aldeia de Monsanto, concelho de Idanha-a-Nova. É lá, ao abrigo de um magnífico labirinto de granito, sobre um horizonte sem fim, que ele saboreia a vida na sua absoluta simplicidade. É como um inselberg que se ergue da sua natureza, nascendo desta a sua música. Ceriz já percorreu muitos países do mundo. "Felizmente, tenho casa e amigos por toda a parte". Mas é a Monsanto que ele sempre torna. É aqui o sítio onde ele melhor viaja no tempo, com a paisagem à janela, como uma pintura impressionista onde o sol nunca nasce da mesma maneira.
Manuel Ceriz e Maria Mitos Ojeda nunca deixaram de trocar cartas, resistindo ao que a organização que os aproximou não conseguiu. E assim se foram descobrindo pelas palavras e até pela sua ausência. E assim se foram partilhando uma vida inteira, atravessando guerras e pazes, regimes, amores e desamores, gerações, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, tantos sonhos construídos e desfeitos, tantos e tantos determinismos que os aproximaram mais e mais, tendo por lei a distância. Se um dia pensaram quebrar essa regra e encontrar-se pessoalmente? Claro. "Pensei muitas vezes em viajar para as Filipinas para a conhecer, mas por alguma razão, monetária ou por causa do meu trabalho de topógrafo e a música, os concertos, sempre fui adiando", explica Manuel.
A música escreveu desde sempre a sua vida. “Ainda muito jovem, actuei num espectáculo onde estiveram em palco Adriano Correia de Oliveira e o padre Fanhais”, intérprete maior da música de intervenção e activista anti-regime, que chegou a integrar a LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária) e por inúmeras vezes tornou em duo as canções de Zeca Afonso. Em 1976, com a guerra ainda tão fresca, "co-formei o grupo rock Tau-Céti (quarta estrela do nosso sistema), que passou a Tribo Nordeste um ano mais tarde. As canções originais da minha autoria (letra e música), interpretadas pelos Tau-Céti, ficaram em 1.º e 3.º lugar no 1.º Festival da Canção de Bragança". Manuel tinha regressado a Mirandela. E, como a sua alma determina, à Figueira da Foz: "Na gala internacional dos Pequenos Cantores, na Figueira da Foz, ganhei o prémio da canção para crianças em 1983 e em 1986".
Há pouco tempo, Manuel disse-lhe que estava a reler as cartas dela. Foi quando soube que um tufão lhe levou o telhado e com ele muitas coisas, incluindo a sua correspondência. © Créditos: Valter Vinagre
A música escreveu desde sempre a sua vida. “Ainda muito jovem, actuei num espectáculo onde estiveram em palco Adriano Correia de Oliveira e o padre Fanhais”, intérprete maior da música de intervenção e activista anti-regime, que chegou a integrar a LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária) e por inúmeras vezes tornou em duo as canções de Zeca Afonso. Em 1976, com a guerra ainda tão fresca, "co-formei o grupo rock Tau-Céti (quarta estrela do nosso sistema), que passou a Tribo Nordeste um ano mais tarde. As canções originais da minha autoria (letra e música), interpretadas pelos Tau-Céti, ficaram em 1.º e 3.º lugar no 1.º Festival da Canção de Bragança". Manuel tinha regressado a Mirandela. E, como a sua alma determina, à Figueira da Foz: "Na gala internacional dos Pequenos Cantores, na Figueira da Foz, ganhei o prémio da canção para crianças em 1983 e em 1986".
Talvez isso diga algo sobre uma estranha forma de inocência que ele sabe manter, nas cartas e na vida. Enquanto músico e compositor, Manuel Ceriz trabalhou com pesos pesados, entre os quais Sérgio Godinho e, noutro compartimento, José Cid. "Fui co-fundador do grupo à capela Canto Nono, nos início dos anos 90. Actuei, integrado nesse grupo, com Amélia Muge, João Afonso e o Sérgio Godinho, entre outros". Manuel Ceriz já tocou em vários pontos do mundo. Mas, quem o conhece, sabe que ele toca e canta exactamente onde estiver.
Por estranho, nunca esteve num dos sítios que mais deseja conhecer: as Filipinas. Pode até ter sido a razão que o impediu de se remeter em direcção à remetente. Mitos diz o mesmo: “Imensas vezes o quis visitar e conhecer Portugal, mas as circunstâncias nunca estiveram do meu lado”. Analisando o fenómeno à distância (temporal), nenhum deles é capaz de garantir que, se tal tivesse acontecido, ainda seriam penfriends forever, título da canção que Manuel Ceriz compôs para Mitos nos anos 80, devidamente registada na Sociedade Portuguesa de Autores.
Não é possível chegar a uma conclusão racional sobre algo que nunca aconteceu. Nos últimos tempos, Manuel pôs-se a reler as cartas dela. São indefectíveis “penfriends”, mas não são negacionistas da tecnologia. "É evidente que a Internet mudou a vida de toda a gente. Nós não iríamos ser diferentes". Continuam a escrever as suas cartas, mas também vão comunicando à velocidade da rede móvel. Tal como ele, Mitos também guardava todas as cartas. Mas, aqui há uns anos, um dos habituais tufões daquela região do sudoeste asiático, varreu tudo o que tinha na sua casa. As cartas dele, levou-as o vento. "Ultimamente temos trocado impressões sobre a leitura das cartas e a conclusão é recíproca", diz Manuel.
As cartas são as mesmas, mas a sua leitura não. Nas palavras antigas, descobrem-se novos significados. A memória é um processo selectivo. Rever o passado tem igualmente os seus perigos, com alguma verossimilhança àquelas cartas inocentes que trocaram nos tempos em que ambos viviam sob ditadura. Essa inocência, mesmo que há muito a tenham já perdido algures no decurso das suas vidas, é algo só deles. Um vínculo que permaneceu incólume, que resiste à passagem dos anos. "Pertencemos um ao outro. Não é amante, não é amiga, não é mulher, não é família. É outra coisa diferente e única, difícil de explicar. É, mais que tudo, fruto de uma boa educação que é corresponder aos anseios de terceiros dentro das nossas possibilidades, sem que isso nos afecte negativamente. Ter e dar prazer sem cobrar. O resto vem por acréscimo... a amizade".
Foi há pouco tempo que Manuel lhe disse que estava a reler as cartas dela. Foi quando soube "que um tufão lhe levou o telhado e com ele muitas coisas, incluindo a minha correspondência". Foi como uma parte dele se tivesse perdido na tempestade. "Acho que ela ficou contente por saber que ainda guardo as suas cartas". Nas cartas, no sortilégio da escrita, eles aprofundaram conhecimento mútuo. E, no silêncio, dialogaram. O silêncio das cartas é a sua linguagem secreta. Sempre que uma carta não chegava por mais tempo do que era normal, sabiam que alguma coisa importante para o outro estava a acontecer. Sempre souberam esperar.
Tempos de guerra
No tempo das ditaduras, apesar de jovens, ambos sabiam que não deviam falar de política nas cartas. Após o 25 de Abril de 1974, tornou-se difícil conciliar vidas, regimes e semântica. Mitos permanecia num regime opressivo, Manuel, vindo da guerra colonial, guardou os traumas nos seus esconderijos mais secretos e entregou-se de boa-vontade à democracia, não sabendo bem se fora por isso que tinha andado pelo mato em Angola, a defender os invasores dos invadidos. “A revolução foi para colocar um fim nesta guerra”, onde tantos jovens como ele perderam a vida. A revolução libertara igualmente as suas palavras. As da sua penfriend continuavam aprisionadas. E não eram só as palavras. Ela própria se sentia assim com o curso da sua vida. À distância, Manuel sentia a sua amargura. “A Maria é, como eu, um ser universal que se interessa pelo seu semelhante. Católica de formação, humanista, sensível, dada, zelosa, interessada pelo seu país e pelo seu desenvolvimento."
A Maria é, como eu, um ser universal que se interessa pelo seu semelhante. Católica de formação, humanista, sensível, dada, zelosa, interessada pelo seu país e pelo seu desenvolvimento.
Era isso. O seu humanismo não a deixava quieta num emprego estável, no aparente conforto, na agridoce previsibilidade dos seus dias. Mitos tinha acabado o ensino secundário no mesmo colégio onde entrou para o infantário. Tirou um curso de gestão na Polytechnic University of the Philippines e começou a trabalhar numa empresa privada, depois noutra, finalmente num banco estatal das Filipinas, onde permaneceu quatro longos anos, até a sua vida se transformar num pesadelo, só compatível com o pesadelo em que o seu país se havia transformado.
Mitos seguiu o que a consciência lhe dizia, sem pedir conselhos à família, talvez por saber de antemão qual seria o feedback. Tem três irmãs, todas casadas, todas a viver em Quezon City, e um irmão que emigrou para a Austrália, onde constituiu família. Mitos, mesmo com a segurança da distância que havia nas cartas, sempre foi muito reservada quanto à sua vida amorosa. Fortemente religiosa como é, Manuel sempre achou que ela um dia lhe escreveria a contar pormenores do seu casamento, de véu e grinalda, no altar da catedral de Manila.
Só muito recentemente Mitos lhe contou que viveu um amor e que com este tinha juntado os trapinhos, à revelia dos mandamentos cristãos, coisa que nas Filipinas não é assunto de somenos. Não percebeu se foi duradouro se passageiro, mas isso também não tem importância. Não abala um milímetro na correspondência da sua amizade. Ele próprio, que deriva entre ateu e agnóstico, deu consigo um dia num altar. Foi naquela altura em que esteve quase um ano sem enviar uma carta para as Filipinas. Esse ano foi a duração do seu casamento. Manuel Ceriz prefere viver consigo próprio: "Para citar Saramago: nunca serei avô".
Uma decisão radical Mitos deixou bem explícita numa missiva, que para si foi uma espécie de carta de alforria. Previsível, pois as cartas que enviava do período em que era empregada bancária descreviam um verdadeiro suplício. "Decidi despedir-me do banco e ir trabalhar para áreas rurais, para ajudar os mais pobres. Nunca fui uma extremista de esquerda. Só queria ajudar os mais necessitados". Mudou-se para Eastern Samar, uma das regiões mais pobres das Filipinas, onde ainda se encontra. "Comecei por trabalhar nos serviços sociais da diocese de Borongan, antes de ser recrutada por uma ONG". Não correu bem. "Não acreditava nas suas políticas". Tal como Manuel, Mitos nunca será avó. O que não significa que não receba muitas vezes em sua casa alguns filhos adoptivos, órfãos de situações desesperadas. "São crianças problemáticas, que não têm para onde ir. Às vezes ficam um ano, às vezes mais".
À distância, as palavras de Mitos transparecem felicidade com a sua escolha, ainda que de vez em quando tomem forma algumas interrogações. Essas, Manuel também as tem. Era inevitável que as tivessem. Passaram mais de meio-século sem nunca estar na presença do outro e boa parte desse tempo sem ter uma imagem um do outro, enquanto a sua relação penfriend se aprofundava muito para além das cartas. "A partir de certa altura, comecei a sentir que era uma pessoa muito próxima", diz Manuel Ceriz. O mesmo sente Mitos do outro lado do planeta. "O Manuel é uma pessoa muito sensível, um gentleman. É alguém muito especial para mim, não consigo explicar. As suas cartas sempre me trouxeram imensa alegria. Crescemos e envelhecemos a escrever cartas um ao outro. Toda a minha família o conhece desde que nos correspondemos".
Sempre que há lapsos na sua correspondência, há razões para alarme, sabem ambos. O Manuel sabe que a morte da mãe foi o momento mais duro da vida da sua penfriend. A Maria sabe que o divórcio não foi um período fácil para ele. Ele sabe que ela viveu muito tempo com a tristeza, é capaz de enumerar no tempo cada uma das suas fadigas sociais. Ela sabe que ele vive para a música. Ele sabe que ela vive para os outros. Ele teme pela sua vida, sempre que ouve notícias de um tufão nas Filipinas, como ela temeu pela sua quando ele lhe disse que ia para a guerra.
© Créditos: Valter Vinagre
A guerra já ia longa e sangrenta, quando Manuel Ceriz para lá foi. Voluntário? “Para a guerra? Defender este país? Nunca tive essa insensatez. Não. Fui cumprir o tal 'dever' que me era incutido mas que nunca foi do meu agrado. Só para não ser intitulado de desertor ou cobarde”. Partiu, com o único desejo de voltar. "Fui para Angola em Janeiro de 1974. Ou seria 1973? Teria 21 anos, talvez". Não há qualquer tipo de ironia na sua hesitação. Lembra-se como se fosse ontem da viagem para Angola, pois nunca tinha andado de avião, e de chegar a Luanda. "Nessa mesma noite puseram-me dentro de uma Berliett rumo ao sudeste angolano, mais precisamente, Serpa Pinto, actual Menongue, a cerca de mil quilómetros de Luanda. Viagem inesquecível... de madrugada passámos um posto de controle e um soldado veio 'oferecer' ananás. Foi um dia de viagem de Luanda para Serpa Pinto".
Lembra-se dos "convívios com os amigos militares, alguns dos quais já falecidos, mas também civis". Lembra-se das famigeradas MVL (Movimento de Viaturas Logísticas), "colunas de transporte de mercadorias para as companhias militares no mato, em plena selva". Lembra-se de detalhes ínfimos, de cheiros, de sons, até de silêncios, do calor. "Tenho algumas memórias vivas de cenas surrealistas, como a que assisti na Neriquinha – comuna angolana na província de Cuando-Cubango, município de Rivungo -, em que o capitão da companhia, que tinha a alcunha de 'china' passeava duas locais, vestidas de noivas, uma sentada, outra de pé, fazendo esvoaçar os seus véus num jeep Willys descapotável, circulando em volta do aeródromo. Fellini não faria melhor".
Da guerra, guerra, lembra-se de muito pouco, não porque tenha falta de memória, mas por ser um mecanismo de integridade mental. "Apaguei a memórias desses tempos". Talvez por isso tenha sido especialmente doloroso reler as cartas que Mitos lhe enviava para o Ultramar, por obrigá-lo a reposicionar-se num tempo que ele arquivou. As memórias da guerra trazem-lhe lágrimas. Ele, que é músico, gosta mais de as provocar. Uma coisa é verdade: "nunca mais vesti uma peça de roupa verde".
Talvez o tufão tenha vindo por bem. Talvez não lhe fizesse bem ler o que escreveu quando lhe escreveu da guerra. Não pelo que tenha dito, pelo que não disse. "Do que me lembro, não me alargava na descrição dos sentimentos. Incidia mais sobre a vontade que o regresso a Portugal fosse breve, fazendo-a sentir que estava bem e que tudo corria na normalidade". Do outro lado, ela só acreditou em parte. "Tinha muito medo que lhe acontecesse alguma coisa. Ele tranquilizava-me. Parti do princípio que não participava nos actos de guerra".
Nas cartas, Manuel fez o mesmo que fez na guerra: protegeu-se. Quando em Portugal se concretizou a revolução dos cravos, Manuel Ceriz estava numa selva de Angola. Ainda demorou a regressar. Foi algo muito estranho, estar numa guerra que lhe diziam já não existir. Mais estranho, foi uma carta que Mitos lhe enviou, sem saber que a guerra já tinha acabado.
"Todas as palavras que ela escreveu foram importantes para mim, por banal que fosse o assunto. Da mesma forma que ela sempre me apoiou, eu retribuí sempre". Ambos sabem que entre eles há qualquer coisa bela, sabendo que essa beleza reside precisamente na distância. É a distância que os une e que os separa. Através das suas cartas, já viveram muito. Nem ele nem ela são de queixume, embora também não sejam capazes de camuflar a nostalgia quando esta se instala. O que escreveram em cada momento das suas vidas, é algo que eles prezam, só deles.
A não ser que uma carta do Manuel por alguma razão tenha sobrevivido à força centrífuga de um tufão e tenha ido parar a um destinatário ilegítimo. Às vezes, escreviam só para desejar um bom Natal, um feliz aniversário, coisas de datas. Noutras, eram cartas longas, profundas. Incertas, quando são relidas tanto tempo depois. É um exercício difícil, doloroso até, que só ele pôde fazer. A vida a passar é demasiado insuspeita, demasiado hipnótica. É o mais velho feitiço do tempo, o seu passar, a velocidade sucedânea que há na sua falsa lentidão, como uma indústria transformadora de amplitude em pedaços, ilusão em realidade, sonhos em melancolia, futuro em recordação.
Uma vida depois, não é possível ler as cartas da mesma maneira. Encontra-se nelas novos significados e talvez algo que tenha ficado por fazer. Mas essa não é somente a beleza das palavras. Mesmo que às vezes não pareça, é a beleza da vida. O resto, será sempre uma página em branco.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)