Senegal vs Egipto. Queiroz na senda de Nelo Vingada e Fernando Santos
Com um campeão asiático (Arábia Saudita 1996) e um europeu (Portugal 2016), Portugal parte hoje à conquista de África.
© Créditos: Charly Triballeau/AFP
Ásia, Europa. Para bom entendedor, todo um continente basta. Na história do futebol português, há um treinador campeão da Ásia e outro da Europa. Na história de Carlos Queiroz, há um título de campeão mundial conquistado na Ásia e outro na Europa. A nossa vida anda à volta desses dois continentes. Hoje, a aventura leva-nos a África, por ocasião da final da CAN entre Senegal e Egipto.
Em todos os outros países do mundo, fala-se do duelo entre o senegalês Mané e o egípcio Salah, companheiros no Liverpool. Em Portugal, fala-se obrigatoriamente de Carlos Queiroz. É dele o mérito de pegar numa selecção há cinco meses, em Setembro, e levá-la à final com um percurso esquisito na fase de grupos: derrota a abrir (vs Nigéria) e duas vitórias por 1:0 (vs Guiné-Bissau e Sudão). Já a eliminar, Queiroz vai sempre além dos 90 minutos. Primeiro penáltis vs Costa do Marfim, depois prolongamento vs Marrocos e finalmente penáltis vs Camarões.
O percurso do Senegal é bem diferente, para melhor, muito melhor, e sempre resolvido no tempo normal. Na fase de grupos, o exótico 1:0 em golos num total de três jogos. Golo esse marcado de penálti aos 90’+7 na estreia, vs Zimbabué. Segue-se o duplo zero-zero vs Guiné-Conacri e Malawi. Daí em diante, é uma espécie de trigo limpo farinha amparo com 2:0 vs Cabo Verde, 3:1 vs Guiné Equatorial e 3:1 vs Burkina Faso.
Se se apresenta mais fresco que o Egipto em matéria de minutos jogados nesta CAN (540 contra 630), o Senegal entra em campo na qualidade de vice-campeão em título e ainda sem qualquer título conquistado em 35 edições. Zero tituli, o Senegal. No outro lado, o Egipto é só o rei de África com sete, três dos quais no século XXI. Se a história contasse, Queiroz estaria nas sete quintas.
Queiroz, um nome incontornável na nossa história. Pelos métodos aplicados na Federação Portuguesa de Futebol a partir do início dos anos 80 de que resultam dois títulos mundiais. O primeiro em 1989, na Arábia Saudita. Inesquecível essa sexta-feira, 3 Março. Pelo título, claro, e também pelo futebol apresentado. Nos primeiros dez minutos, Portugal ganha cinco cantos e cria três situações claras de golo, todas por JVP, uma das quais salva na linha por Ogaba. O figurino mantém-se até à meia-hora com jogadas atrás de jogadas para a área da Nigéria. Sim, repete-se o confronto da fase de grupos – e, desta vez, acaba 11 para 11 com um resultado mais desnivelado.
O primeiro golo é ao cair do pano da primeira parte com um lançamento lateral de Amaral para JVP, cujo chapéu de aba larga apanha Chinedu desprevenido. Jorge Couto recolhe o esférico e, com o peito, chama o pé esquerdo de Abel Silva à entrada da área. A bola anicha-se nas redes de Amadi com grande espectacularidade. No final, o lateral diria de sua justiça a propósito do encontro imediato com o rei no protocolo inicial. "Disse a Pelé que ia marcar um golo dos dele."
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Na segunda parte, Portugal continua por cima e a falhar golos em série. Que o digam Amaral e JVP aos 61 e 74 minutos. Na outra baliza, Bizarro nem toca na bola. Culpa de Morgado a desarmar Balogun na hora agá e culpa da aselhice de Ohenhen num remate ao lado. Aos 77’, Jorge Couto apanha a bola e corre para a baliza da esquerda para o meio. O remate é forte e frontal, Amadi deixa passar a bola por debaixo do corpo. É o chamado frango, motivo pelo qual o seleccionador Olalunde Disu substitui-o de imediato por Ikeji. No final, a festa é portuguesa. Campeões mundiais, somos campeões mundiais.
Passam-se dois anos e Queiroz volta a levantar a taça de campeão do mundo, agora em Lisboa, na Luz. O seleccionador Ernesto Paulo aterra em Portugal com a ideia fixa de ganhar o Mundial, que foge ao Brasil desde 1983. A sua táctica é simples. "Vamos jogar à Mike Tyson, famoso por entrar sempre a matar para desfazer o adversário. Se não é vitória por KO, é quase." O resultado é vistoso: Costa de Marfim, 1:0 aos 29 minutos. México, 2:0 ao intervalo. Suécia, 1:0 aos 29’. Coreia, 2:0 ao intervalo. URSS, 3:0 aos 32’.
E agora, a final? Nada, zero. O início também é diferente com a selecção portuguesa. Muitos nervos à flor da pele é o que é. Pela emoção de uma final e pela presença de mais de 120 mil pessoas na Luz. O estádio não está cheio, nada disso. Transborda, isso sim. Muita emoção, pouca razão. Por isso, o árbitro argentino Lamolina mostra três amarelos a Peixe, Djair e Zelão nos primeiros 8 minutos para serenar os ânimos.
No instante seguinte, Queiroz tem um dilema com a lesão de Nélson, titular em vez de Abel Xavier. Entra Tulipa, que seria substituído aos 70’ por Capucho. Seguem-se dois golos anulados a Paulo Nunes por fora-de-jogo, duas defesas de Roger a remates venenosos de JVP e um falhanço de Elber na cara de Brassard.
O teimoso 0:0 vai até ao prolongamento e, depois, penáltis. O destino encarrega-se de empurrar Portugal para o título. Se a bola de Jorge Costa bate na trave e entra, Élber imita-o no remate seguinte e a bola salta para fora. Brassard ainda mergulha à bola de Marquinhos para antecipar a festa e é Rui Costa quem fecha as contas da glória. Portugal é bicampeão mundial, com Peixe eleito pela FIFA como o melhor jogador do torneio.
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Se sairmos da vida de Queiroz e fizermos zoom à de Portugal nas conquistas continentais, a dinâmica é a mesma. Primeiro Ásia, depois Europa. Primeiro é Nelo Vingada, depois é Fernando Santos. Separados por 20 anos. Começamos a epopeia em 1996, nos EAU. Na estreia, vs Tailândia, já há 4:0 para a Arábia Saudita. No jogo seguinte, 1:0 vs Iraque. Para fechar as contas do grupo, a Arábia apanha 3:0 do Irão e acaba em segundo lugar. Evita a Coreia do Sul e joga vs China. Ao quarto de hora, 2:0. Nelo até treme. Ah pois, que susto. A Arábia reage e chega ao 3:2 antes do intervalo. No fim, 4:3 – o mesmo resultado da ½ final, vs Irão, após 12 penáltis. Na final, dia 21 Dezembro, a Arábia encontra o anfitrião, treinado pelo nosso conhecido Tomislav Ivic. É o segundo 0:0 seguido de Nelo, é o segundo desempate seguido a 11 metros. Decide Al-Muwallid, 4:2.
O cenário de uma final com o anfitrião repete-se em 2016, no Stade de France. Tal como Nelo em 1996, também Santos segura o 0:0 até aos 90 minutos. Antes de chegar aos penáltis, o suplente Éder despede um remate de longe e desata a loucura. Portugal é campeão europeu. Magia no ar. Pede-se o mesmo ao Egipto de Queiroz.