Ronaldo. Home sweet home em Old Trafford
Calha bem hoje o Newcastle, único adversário a quem o português marca três golos num jogo da Premier League.
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Há quem diga que o cinema é acção, mas é um equívoco. O movimento é apenas uma parte do cinema. O espectáculo também não é o cinema. E também não é cinema fotografar actores a representar. Fiar-se nos actores é pedir emprestado ao teatro. Para os entendidos, como Alfred Hitchcock, a montagem é o aspecto essencial de um filme. E basta ver a cena do chuveiro em Psycho. A faca de Anthony Perkins nunca toca o corpo de Janet Leigh no ecrã. Dá-se a impressão que sim, só que, na realidade, não toca. O efeito é da montagem. E também não se mostra nenhuma parte do corpo feminino que possa ser considerada tabu. A ilusão de nudez é também alcançada através da montagem. Há 70 planos com trucagem diferentes em 45 segundos. Tudo “culpa” da montagem. No futebol, as palavras acção, movimento e espectáculo desaguam invariavelmente em golo. Se for de livre directo, é uma montagem. Porque o jogador nunca vê a baliza toda nem sempre o guarda-redes assiste à partida da bola. De repente, alegria de um lado e tristeza do outro. Tudo “culpa” da montagem. Como nos filmes. Inventámos esta linha de pensamento agora mesmo para nos sentirmos mais confortáveis na abordagem da temática dos livres directos, um capítulo dominado por Ronaldo (sete na selecção – recorde nacional – e 61 na carreira – a 25 de Zico).
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Livres directos? Baaaaah, Ronaldo faz acção, movimento e espectáculo em tudo. Ele é livres directos, ele é penáltis, ele é jogadas individuais, ele é remates de primeira e sem preparação, ele é com o pé direito, ele é com o pé esquerdo, ele é de cabeça, ele é de calcanhar, ele é de bicicleta. Ele é tudo, de qualquer maneira e feitio, de qualquer lado. Até sem ângulo. É literalmente craque da cabeça aos pés, recordista de categorias infinitas. A história é assim há anos e anos. Ronaldo é Ronaldo, não há volta a dar. É o melhor marcador de sempre da Taça/Liga dos Campeões (e só começa a marcar a partir do 30.º jogo). É o melhor marcador de sempre do Real Madrid. É o português melhor marcador de sempre, à frente de dois fura-redes intemporais como Peyroteo e Eusébio.
A magia de Ronaldo é mesmo essa de nos surpreender a cada instante. Antes, é magrinho. Agora, é um touro. Antes, é um fantasista com queda para os dribles estonteantes (às vezes, poucas vezes, inconsequente). Agora, é um goleador nato. Estilo Hugo Sánchez, melhor marcador do campeonato espanhol 1989-90 com 38 golos, todos ao primeiro toque. Ronaldo está nesse caminho do toma lá, dá cá. Claro, a finta está em si. Quando alguém lhe aparece à frente, vai dar nó. Só que quando ninguém se aproxima, Ronaldo espalma a bola e é o forrobodó. Antes ou agora, o apetite insaciável pelo golo é de sempre. Nunca muda. O primeiro de sempre ao serviço da selecção é em Torres Novas, a 24 Fevereiro 2001, pelos sub-15. Ronaldo veste o número 9. Das mil e poucas pessoas nas bancadas, todas o aplaudem. Sem o conhecer minimamente. É aplaudir por patriotismo. “Era um trinca-espinhas”, garante Carlos Godinho, director-desportivo da federação. Nesse jogo com a África do Sul, o 1-0 é de Diogo Andrade. O 2-0 final é de Ronaldo. Na estreia, um golo. Está lançado, o miúdo.
Passam-se dois meses e, em Abril, a selecção sub-15 volta a jogar. É o popular torneio de Montaigu. No primeiro jogo, um golo de Ronaldo no 2-2 com a anfitriã França. No segundo, descanso vs. Camarões. No terceiro, o Japão é cilindrado por 7-0. No ataque, o trio Ronaldo, João Vilela e Hugo Monteiro. Dos três, só um se destaca: Ronaldo, com golos aos 33', 43’ e 70’. Diz o seleccionador Silveira Ramos: “Abriu o livro, assim do nada. Já sabíamos dos repentes deles mas ali ficou vincado o seu estilo que ainda hoje perdura.” A fome de bola leva-o aos sub-17 e assina seis golos (Finlândia, Holanda, Inglaterra, São Marino e Andorra-2). Assim como quem não quer a coisa, já estamos no Verão de 2002. O treinador do Sporting é o romeno Laszlo Bölöni, conhecido pela aposta destemida em juniores como Quaresma e Hugo Viana, peças-chaves na conquista do título de campeão português 2001-02, ao lado de monstros consagrados, estilo André Cruz, Paulo Bento, João Vieira Pinto e Jardel. Na pré-época, Bölöni chama Ronaldo e o jovem corresponde à sua imagem. Com um golo. Ao Betis, na Maia.
Dia 4 Agosto, tarde quente. Prepare-se, vai aquecer ainda mais. Aos 28 minutos, Toñito lança Quaresma e 1-0. Quatro minutos depois, Joaquín ultrapassa o chileno Contreras e o argentino Quiroga antes de cruzar para o 1-1 de Alfonso. Mais golos só na segunda parte. Aos 55’, Prats passa a bola a Quaresma, facto devidamente aproveitado para um centro na direcção de Pedro Barbosa: 2-1. O Betis reage e empata novamente, aos 85’, bis de Alfonso, agora de cabeça, após livre pela esquerda de Calado – esse mesmo. Quando já toda a gente espera o apito final, chega o momento alto do jogo, com Cristiano Ronaldo a ser mais rápido que Prats e a rematar ao ângulo superior esquerdo de sem espaço por aí além. No final, Bölöni refreia os ânimos da imprensa, já pronta a coroar Ronaldo. “Acredito nele, porque tem talento. Mas se pensa que um campo de futebol é uma sala de ballet, ou se pensa que já é jogador de futebol, está a incorrer num erro enorme. Tudo farei para que não pense desta forma. Fala-se muito do Ronaldo. Basta, só marcou ainda um golo.” Um, não. No particular seguinte, Ronaldo marca o segundo oficioso, num 12-0 ao Alcanenense.
Ainda a época 2002-03 vai no adro e já Ronaldo faz das suas, num Sporting-Moreirense, a 7 Outubro. Na baliza, João Ricardo, titular de Angola no Mundial-2006. “O 1-0 é daquele bielorusso, o Kutuzov. O 2-0 é do Ronaldo, ainda na primeira parte. Arranca do meio-campo e então não é que ninguém dá um pau no gajo?Entrou na área, tentei a mancha, mas ele picou-me a bola. Golo. Na segunda parte, faz o 3-0 e ainda atira uma bola à barra. Não sei se foi o primeiro jogo dele a titular ou não, mas a verdade é que esse jogo deu-lhe mais visibilidade que nunca. Naquela altura era o Quaresma a figura, o homem do momento. A partir daí, o Ronaldo deu o salto.” E de que maneira. Ainda em Outubro, no Bessa, o clássico Boavista-Sporting arrasta-se para um empate. Ao penálti de Jardel (45’), responde Martelinho (70’) a aproveitar um clamoroso erro de Contreras. É então que Bölöni faz entrar Ronaldo para o lugar de Quaresma, aos 81 minutos. No instante seguinte, Beto vê o amarelo por derubar Cafú. Aos 85’, o mesmo Éder impede um golo de Beto na linha. Aos 87’, Jardel atira à figura de Ricardo. Ya, o 1-1 afigura-se como provável. Calma. Em cima dos 90', Carlos Martins descobre Ronaldo dentro da área e o número 28 bate Ricardo. Até final dessa época, Ronaldo já aparece nos sub-21 de Portugal (um golo à Grécia, outro à Inglaterra). Pelo meio, uma batata ao Estarreja (4-1) e mais uma à Oliveira do Hospital (8-1), ambos para a Taça de Portugal.
É Verão, de novo. A selecção apresenta-se em Toulon para o mais reputado torneio de jovens de que há memória. O seleccionador Rui Caçador tem a equipa na cabeça, entre Bruno Vale; Miguel Garcia, Zé Castro, Pedro Ribeiro e Vítor Rodrigues; Meireles, Faria, Davide e Ronaldo; Lourenço e Hugo Almeida. O começo é de sonho: 3-0 à Inglaterra e 3-0 à Argentina. É de Ronaldo o primeiro golo de todos. Segue-se a derrota com Japão (1-0) e mais uma vitória (Turquia, 3-1) antes da final. Aparece-nos a Itália e resolvem os suplentes João Paiva mais Danny (3-1). A glória é um estado permanente na vida de Ronaldo. Um mês depois é a inauguração do novo Estádio José Alvalade. Para a estreia, o Manchester United. É um arranjinho de Carlos Queiroz, ex-treinador do Sporting e então adjunto de Alex Ferguson. A coisa faz-se tranquilamente, a 7 Agosto 2003. Luís Filipe marca o primeiro golo do estádio, João Vieira Pinto estica a vantagem para 3-0 e só um autogolo de Hugo encurta a distância. Nenhum destes nomes salta para as primeiras páginas dos jornais, só o de Ronaldo. Todos os jogadores do United andam vidrados com o puto maravilha, que destroça a defesa, sobretudo o pobre irlandês O’Shea, fintado vezes sem conta. Ao intervalo, já Ferguson mandara o roupeiro chamar Peter Kenyon, o homem do dinheiro no United. Quando lhe perguntam se vale meeeesmo a pena, o treinador escocês desarma qualquer um: “John O’Shea acabou com enxaqueca, contrata-o e já!”
No United, o artista português ganha músculo, experiência, categoria e tudo isso. Mais a camisola sete, a mítica sete. Essa mesmo, a de George Best, Bryan Robson, Eric Cantona e David Beckham. É o próprio Ferguson quem o desafia a vestir o sete. Best aplaude. “Ora aí está finalmente um jogador à minha imagem, irreverente, sem medo do drible nem dos adversários: Ronaldo tem tudo”. Tem mesmo. E o United sabe-o. Tal como o holandês Van Nistelrooij, seu companheiro no ataque. Os dois entendem-se de olhos fechados na primeira época. E na segunda também. Já na terceira é que não. Em 2006, conta Ferguson, “Ruud mudou e não sei ainda a razão. Primeiro insultou-me quando lhe disse que ia ser suplente na final da Taça da Liga, o Carlos virou-se contra ele e aquilo ficou feio no banco.” É o dia do United-Wigan em Cardiff, a dupla de avançados de Ferguson é Rooney mais Saha. Curiosidade: os dois marcam. Rooney 2, Saha 1. O outro é de Ronaldo, 4-0. Mais zangado que nunca, Ruud descarrega a sua fúria em Ronaldo. “Uma vez, num treino, pontapeou Ronaldo e disse-lhe: “O que vais fazer, queixar-te ao papá?” Ruud refere-se a Queiroz mas a verdade é que Ronaldo perdera o pai há pouco tempo e o comentário afecta-o. A ele e ao United – Van Nistelrooy é transferido para o Real Madrid. “Todo o episódio foi muito triste”, relata Alex.
Problemas à parte, Ronaldo eleva o seu jogo na Premier League. Aqui o elevar tem o que se lhe diga, porque há dois golos inesquecíveis de cabeça. Um é em Roma, em Abril 2008. Ele salta mais de três metros para conectar um cruzamento da direita. Pobre Doni, pobre Roma. Passam-se uns dias, tipo um mês, e o homem repete o salto mágico na final da Liga dos Campeões, em Moscovo. Pobre Cech, pobre Chelsea. No ranking dos grandes golos pelo United, um outro salta à vista. E, desta vez, o salta é traiçoeiro. Com o Porto, no Dragão, a eliminatória está a pender para o FCP, por via do 2-2 em Old Trafford. Estamos em Março 2009, o jogo dos ¼ final da Liga dos Campeões continua em fase de estudo, 0-0. Às tantas, Ronaldo pega na bola, dá um toque para a frente e dá um sapatada como uma força inaudita. Helton até está bem colocado, só que fazer o quê? A bola entra num piscar de olhos, à velocidade de 102 km/h. É eleito o golo do ano pela UEFA. Só pode. Na eliminatória seguinte (meias-finais), o United calha com o Arsenal. Em Londres, joga-se um lugar na final. É o tudo ou nada. E aparece o (super)homem. Que demora qualquer coisa como nove segundos desde o toque de calcanhar de Park até ao golo na cara de Almunia. Pelo meio, a bola ainda passa pelos pés de Rooney. Para Ferguson, “é o golo mais perfeito” da sua infinita carreira. Bola extra: é uma correria de 76 metros, de uma área à outra. Chega, é tempo de dar o salto. Aqui o salto é metafórico.
Com nove títulos no bolso (Liga dos Campeões 2008 incluída) e entre 118 golos em 292 jogos, Ronaldo sai para o Real Madrid, em 2009. Enche os cofres do United, qualquer coisa como 96 milhões de euros. É o jogador mais caro de sempre e vai entrar para o maior clube do mundo. Na primeira época, mais jogos que golos (35-33). Tssss tssss. Na segunda, mais do mesmo (54-53). O que se segue é im-pre-ssio-nan-te. Em especial em 2012, com 60 golos. Sessenta. Bate-se um recorde nacional, à frente dos 58 de Eusébio. Desses sessenta, 53 pelo Real Madrid e sete por Portugal. O registo é avassalador, até porque marca na maioria dos jogos (diga lá 33) e às vezes quando o faz é de uma pontaria incomum. A saber: oito bis, oito hat-tricks e ainda um póquer (vs. Sevilha, fora). Como se isso fosse pouco, é o melhor marcador da Liga espanhola. E também da Europa. Bota de Ouro, portanto. A segunda. Uma pelo United, outra pelo Madrid. A dinâmica repete-se em Ligas dos Campeões e Bolas de Ouros. No pares, sigue sigue.
Siga a marinha. Mesmo. Até na selecção. Conquistado Toulon, em 2003, é hora de abraçar os AA. Scolari lança-lhe o isco, em Agosto 2003, com o Cazaquistão, em Chaves. Em menos de um ano, Ronaldo é a figura de Portugal. Falamos-lhes do Euro-2004. É o número 17 e começa no banco de suplentes. A tempo ainda de participar no jogo de abertura, com a Grécia, no Dragão. Além de ser o autor do penálti sobre Seitaridis no 2-0 de Basinas, é ele quem fixa o 2-1, de cabeça, após canto de Figo, na esquerda. Marcaria ainda à Holanda, na meia-final, outra vez de cabeça, a canto de Deco. O rapaz acha-se o Klinsmann (avançado alemão que concilia Euro e Jogos Olímpicos em 1988) e dribla as férias com uma ginga de corpo. Ala para a Grécia, o berço dos Jogos Olímpicos. Lá, Portugal é eliminado na primeira fase, num grupo acessível com Iraque, Marrocos e Costa Rica. Contabilizamos duas derrotas por 4-2 e uma só vitória, com golo de calcanhar de Ronaldo (2-1 a Marrocos).
No Mundial-2006, Cristiano pede ao capitão Figo para marcar o penálti do 2-0 ao Irão. A bola entra e o 17 aponta para o céu, em jeito de homenagem ao seu pai, o autor da frase lendária “o meu filho é uma força da natureza” ainda o rapaz nem saíra do Sporting para o United. O regabofe continua no Euro-2008, já com o 7 nas costas a aproveitar a retirada internacional de Figo, com golo à República Checa de Petr Cech, a quem já havia marcado no mês anterior, para a final da Liga dos Campeões (repetimo-nos, que cabeceamento naquele United-Chelsea). Já vamos em quatro fases finais. Cinco, com o Mundial-2010, na África do Sul. É o primeiro Mundial no continente negro e Ronaldo aparece como capitão. O 6-0 à Coreia do Norte é dele, num misto de sorte (ressalto) e génio (malabarismo). No Euro-2012, de novo com a braçadeira e já com Paulo Bento no lugar de Carlos Queiroz, bis à Holanda (2-1) no apuramento para os quartos-de-final e golo à República Checa (Cech again) a caminho das meias. Sete fases finais. Mais uma e apanha Klinsmann. Atenção, Ronaldo só tem 29 anos e Klinsmann já é o seleccionador dos EUA; adversário de Portugal em Manaus. Acaba 2-2, sem golos de Ronaldo. Esse está guardado para o adeus doloroso, vs Gana, em Brasília.
No Euro-2016, o capitão assina o ponto vs Hungria, em dose dupla (3-3). O primeiro golo é sublime, de calcanhar. O segundo também, de cabeça. Agora escolha. Na meia-final, 1-0 a Gales de cabeça. Mais um golo em que salta como se fosse LeBron James. Tremendo. Ninguém o aguenta, ninguém o supera. Na Taça das Confederações, 1-0 à Rússia de cabeça. E outro golo à Nova Zelândia. Nove fases finais sempre a marcar. Ou dez, se continuar assim no Mundial-2018. Se? Essa é boa. Na primeira jornada, Ronaldo festeja um hat-trick frente à Espanha (3-3). E continua on fire, com Marrocos (1-0). Dez fases finais seguidas sempre a facturar. Há espaço para a décima primeira?
Mundial-2018, check. Euro-2021, check again. Fases finais já são 12 e o Mundial-2022 está aí ao virar da esquina. Nessa movida, Ronaldo faz história na Juventus e passa a barreira dos 30 golos na 1.ª divisão, algo nunca visto em outros ET's como Platini, Van Basten, Klinsmann e por aí fora. E agora volta ao United, 12 anos depois. A estreia é hoje, vs Newcastle, único clube a quem marca um hat-trick na Premier League. A repetir? Nunca duvide do seu limite, o sucesso está-lhe no sangue.