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OpiniãoPolémica no atletismo

Pichardo, Évora e o desporto enquanto direito

A polémica entre os atletas de triplo salto, Nelson Évora e Pedro Pichardo, é menos sobre uma questão medalhas, protagonismo ou nacionalidade, e muito mais sobre o direito ao desporto.

Raquel Ribeiro
@Rodrigo Cabrita

Raquel Ribeiro @Rodrigo Cabrita © Créditos: Rodrigo Cabrita

Se os pânicos morais à volta da liberdade de expressão de Gary Lineker foram um óptimo pretexto para quem queria esconder o seu mal-disfarçado apoio à terrível lei da imigração britânica, esta semana mais do mesmo: somos chamados a dirimir egos para tornar impossível discutir o essencial.

Em entrevista à rádio Observador, Nelson Évora envolveu-se numa polémica com Pedro Pablo Pichardo, no rescaldo dos Europeus de Atletismo de pista coberta, de onde Portugal trouxe três medalhas, entre elas, a de ouro no triplo salto de Pichardo. Esta foi a nossa melhor participação em Europeus de pista coberta.

"Não temos um atleta júnior que salte 16 metros. Que possamos dizer que saltará 17 metros em sénior, que possa ganhar uma medalha. Fico contente que ele [Pichardo] traga uma medalha. Mas isto espelha o quê? Interesse de quem? Quem é que lucrou com isso? Foi Portugal! Claro, é bom, no curto prazo. Foi um investimento feito no curto prazo. Foi comprado um atleta para poder ter resultados a curto prazo", disse o atleta que foi campeão olímpico por Portugal em Pequim, em 2008.

Pichardo respondeu e o que poderia ser lido como picardia entre dois atletas rapidamente escalou: o de Évora, aparentando ressentimento; o de Pichardo, com a arrogância dos (jovens) vencedores: "Quando dizes que fui comprado estás a faltar-me ao respeito. Não sou uma prostituta, nem sou como tu que saíste mal do clube, porque te ofereceram mais"

O Secretário de Estado do Desporto, João Paulo Correia, comentou: "A questão da nacionalização dos atletas foi algo que nunca levantou polémica ou dúvida, é um não assunto.” Não é um não-assunto. O sociólogo Carlos Nolasco escrevia esta semana no Público que, ao contrário de milhares de estrangeiros que estão na interminável lista de espera para obter a nacionalidade, o caso de Pichardo é dos excepcionais: "Outra forma de naturalização reside no poder discricionário que a lei concede ao Estado de atribuir a nacionalidade portuguesa a estrangeiros que tenham prestado, ou sejam chamados a prestar, serviços relevantes ao país. Foi por esta via que (…) Pichardo obteve a nacionalidade portuguesa."

Interessa-me pouco os egos dos atletas. E, por agora, interessa-me ignorar a questão da nacionalidade, até porque Pichardo, sendo excepção, não é caso único, sobretudo no desporto. E se agora Marcelo Rebelo de Sousa não comentou, fê-lo em 2021, quando Pichardo ganhou o ouro nas Olimpíadas de Tóquio: "Honrou-nos por ser o campeão que é, o campeoníssimo, e honrou-nos porque isto é um triunfo do que há de melhor em Portugal há séculos."

O que há de melhor em Portugal há séculos? Temos dúvidas. Mas completa-se com as declarações da Federação Portuguesa de Atletismo nestes Europeus: “Tivemos dois quartos lugares. Um ficou a seis centímetros e outro a nove. Podíamos estar aqui a falar de cinco medalhas ou até mais. Acho que foi um bom resultado, entre as grandes potências da Europa."

É aqui que a entrevista de Nelson Évora importa: não temos um atleta júnior e portanto não vamos ter um atleta sénior a ganhar medalhas dentro de anos. "Foi um investimento feito no curto prazo." Sim, porque Portugal não investe no longo prazo.

Pichardo só é o atleta que é porque nasceu e cresceu num Estado que lhe deu todas as condições e oportunidades para ser atleta: tout court, full-time. Em que o Estado lhe deu até a escolher poder ser atleta. Um Estado que investiu de tal modo em desporto escolar, amador e de alta competição, que, das dezenas de atletas que saem em fornadas no desporto cubano, pelo menos um estará na alta competição a nível olímpico. Não é a excepção que nos mostra o que há de melhor em Portugal há séculos: são precisos muitos para chegar à excepção.

Não vale a pena comparar números entre os dois países, Portugal e Cuba, que acabam por ser parecidos em tamanho e população. Até podemos ignorar medalhas. Basta verificar o tamanho das delegações para se perceber a diferença entre um país que faz do desporto um direito (Cuba), e outro país (Portugal) onde o desporto é um direito (artigo 79º da Constituição) por cumprir.

Cabe ao Estado português, "em colaboração com as escolas e as associações e colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto”, diz a Constituição. No entanto, num sector mercantilizado, cada vez mais dominado por ginásios privados, ou por concessões do Estado que se demite das suas responsabilidades, que exigem mensalidades a uma população com tantas dificuldades económicas, o acesso à actividade desportiva está completamente condicionado. Só pais com capacidade económica põem os filhos em academias – normalmente no futebol, que é a modalidade-mãe da política de terra queimada no desporto dos últimos 30 anos.

O desporto popular tem sofrido enormes golpes com o fim de colectividades e associações, nomeadamente nos grandes centros urbanos, onde a gentrificação, a lei das rendas e os despejos selvagens têm destruído o tecido associativo que tantas vezes era o primeiro contacto de muitos jovens com o desporto amador. O que sobra? Um Estado que "investe" na tríade esforço-mérito-e-sorte à espera de um triplo salto por mais alguns centímetros.