Contacto
Histórias da Bola

No tempo do Pelé é que é

Bolas mais pesadas, defesas mais selvagens, árbitros sem cartões, campos de terra e por aí fora: se Pelé é rei no futebol sem lei, imagine agora.

© Créditos: Picture Alliance/dpa

Pelé, ainda e sempre. Abrimos 2023 com um assunto de 2022, porque sim, porque a morte mexe inevitavelmente connosco e porque é importante perpetuar o reinado do número 10 elevado a craque e transformado em rei pela multidão.

Quando se fala de Pelé, é costume desvalorizá-lo em relação ao presente. Porque não se adaptaria, porque não isto e porque não aquilo. Baaah. Vamos ser muito práticos. Pelé vive no auge dos pelados, dos defesas sem escrúpulos, dos árbitros sem cartões amarelos nem vermelhos e das pesadíssimas bolas de catchu (750 gramas em comparação com as 450 de hoje).

Mais: Pelé também convive com um futebol sem substituições. Se se lesiona, paciência; tem de continuar em campo a fazer figura de corpo presente. Isso acontece no Mundial-62 e repete-se no Mundial-66. Duas marcações cerradas atiram o número 10 do Brasil para fora do campo. Quando regressa ao relvado, em ambos os casos a coxear e engessado, mete-se num canto à espera que não lhe passem a bola. Isto é claramente um atentado em relação à insossa realidade, bem explícita na última final do Mundial, entre Argentina e França, com a participação de 35 jogadores. Sim senhor: 35. Começam 22 (como sempre) e entram mais 13 até ao desempate por penáltis. Isto não é futebol nem é nada, é sim a desresponsabilização do treinador. Já para não falar da desresponsabilização dos árbitros através do VAR. Modernices. Adiante.

Também se diz, com desdém, que Pelé só joga no Brasil e nunca sai para a Europa, como se o Brasil fosse da terceira divisão. Meus amigos, no tempo de Pelé no Santos, o Brasil joga quatro Mundiais e ganha três (1958, 1962 e 1970, sobra o de 1966). Ou seja, Pelé joga constantemente com os melhores do mundo. E há ainda hoje, mais de 50 anos depois, a história de um jogo inesquecível em Abril 1963, na final do campeonato brasileiro. De um lado, Botafogo. Do outro, Santos. De um lado, quatro campeões mundiais (Nilton Santos, Garrincha, Amarildo, Zagallo). Do outro, seis (Gilmar, Mauro, Zito, Mengálvio, Pelé, Pepe). Ao todo, dez. Quase metade dos 22, incrível.

Se a essas verdades inquestionáveis juntarmos o pitoresco, Pelé é rei mesmo. Em 1968, por exemplo, Pelé é expulso pela única vez na carreira. Cortesia Guillermo Velásquez, conhecido como El Chato. O incidente no Estádio Camín, em Bogotá, durante o Santos vs Colômbia (selecção olímpica), conta-se em poucas palavras. Há 1:1 aos 35 minutos, quando Pelé se queixa de um penálti. Ao levantar-se da grande área, o brasileiro chama todos os nomes possíveis à mãe de Chato (de acordo com jornalistas e fotógrafos atrás da baliza) e este expulsa-o sem remissão. Começa a confusão. Diz o árbitro que, dos 28 jogadores, dirigentes e outros profissionais do Santos que o cercam, ‘só’ 25 o agridem (a excepção é um jornalista, um massagista e o próprio Pelé).

Durante 30 minutos, o jogo está interrompido. Chato vai parar à enfermaria e já não regressa ao campo como árbitro, após Pelé o arrasar em entrevistas dadas aos jornalistas na pista de atletismo. É então que o público, que pagara bom dinheiro para ver Pelé, pede o regresso do Rei. Meia hora depois, Velásquez aparece como fiscal-de-linha e Pelé em campo, como se nada fosse.

O Santos ganha. No campo, digo eu. Fora dele, é o fungagá da bicharada. Magoado com a humilhação pública, mais ainda do que com os golpes propriamente ditos, Velásquez processa o Santos e nomeia Lisandro Martínez Zúñiga, magistrado da Corte Suprema de Justiça, como seu advogado. Nessa noite, Zuñiga interpõe uma ordem de prisão a todos os jogadores do Santos. E estes ficam em Bogotá mais dois dias que o previsto, a ver o sol aos quadradinhos. Só saem quando pagam as despesas médicas de Velásquez, mais uma multa pelas agressões, no valor de 18 mil pesos, e ainda um pedido de desculpas ao árbitro por escrito.

Ler mais:Pelé, o Rei das memórias

Mais tarde, 'El Chato' diria de sua justiça. "Aqui na Colômbia, temos fama de feios, porcos e maus. Pensamos que todos os outros são melhores que nós. Pensamos que os outros têm sempre razão. Somos pequeninos e diminuímo-nos muito mais à frente dos outros, sejam eles quem forem. Se o Pelé assaltasse um banco em Bogotá nesse dia, seria aplaudido."

Nem um ano depois, em Março 1969, Pelé é apitado por um português, Joaquim Campos de seu nome. É o Juventus vs Santos, para o campeonato paulista. "Já conhecia o Pelé desde 1958, quando ele apareceu no Mundial da Suécia e eu também estava por lá. Até já me tinha cruzado com ele em Maio de 1960, quando o Brasil jogou em Alvalade e goleou o Sporting por 4-0, com Pelé, Garrincha, Nilton Santos e Djalma Santos. Mas aí, no campo da Juventus, foi a primeira vez de forma oficial. E ele fazia-se à falta constantemente. Ia sempre contra eles [adversários]." Como Joaquim Campos nunca apita falta, Pelé fica puto da vida. "Numa dessas vezes, ele levantou-se muito depressa e chamou-me ladrão."

E agora? Joaquim Campos desvaloriza o insulto e continua a apitar como se nada fosse. No dia seguinte, o jornal Folha de São Paulo faz manchete com o árbitro. "Ele virou costas ao Rei", numa altura em que os árbitros brasileiros eram 'puxa-saco' das equipas grandes. O reencontro entre os dois ocorreu precisamente na final do Estadual, a 21 de Junho de 1969.

O Santos só precisava de um empate para se sagrar campeão e foi o que conseguiu no Morumbi, casa do São Paulo (0-0). "Antes do jogo, o Pelé dirigiu-se a mim, chamou-me 'e aí, portuga?', e pediu-me desculpa pelos nomes que me tinha chamado no outro jogo. Sinceramente, só me lembrava de 'ladrão', mas tudo bem. Aceitei, claro." E depois? "Nunca mais o vi à minha frente. Só na televisão." Como todos nós. Viva o Rei, viiiva.

(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)