Milão, o dérbi da moda
Inter e Milan jogam esta quarta-feira para a meia-final da Liga dos Campeões, é a oportunidade ideal para falar da nossa experiência em 2010.
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Lá fora, zero graus. Cá dentro, menos três. Sim, cá dentro, na nave espacial. A nave espacial é o Giuseppe Meazza, estádio onde jogam Inter e Milan. Começa aqui a viagem a Milão para assistir ao dérbi europeu mais fascinante da semana, a propósito das duas mãos na meia-final da Liga dos Campeões.
A nossa viagem é de Janeiro 2010. O caminho de metro da catedral Duomo (zona nobre da cidade) até ao estádio (estação Lotto, linha vermelha) é feito entre adeptos dos dois clubes, que gozam uns com os outros. ‘Sabes qual é a segunda melhor equipa de Milão?’, pergunta um cinquentão a um puto com estilo pós-moderno (barba à Gattuso, gola à Cantona e penteado à Balotelli). ‘Os suplentes do Inter’ é a resposta e todos se partem a rir, sejam eles interistas ou milanistas.
A diferença entre uns e outros é centenária. Mas não se ouvem insultos, só cânticos a puxar pela equipa e até pelo treinador (Mourinho, pois claro: il Speciale). Os cachecóis azuis (Inter) e vermelhos (Milan) misturam-se alegremente nas carruagens e assim prosseguem a pé dois quilómetros, desde a estação Lotto até ao estádio. Nesse trajecto, o frio é de cortar a respiração e parece que as pessoas estão mais gordas, tal a quantidade de roupa necessária para minimizar o bater de dentes.
Tudo é esquecido quando se avista o estádio, que se ergue entre prédios e árvores enormes e se parece com uma nave espacial. As quatro torres, edificadas para o Mundial-90, são assustadoras. Itália é um país histórico. Em cidades como Roma, Florença, Siena, Veneza e Verona, vira-se uma esquina e lá está um monumento. Até quando se tropeça, é num pedaço de história. Em Milão, a beleza não é tão artística, mas tem os seus monumentos. Um deles é o Meazza, uma obra do tamanho de Inter e Milan. Uma vez no estádio, a sensação é ainda mais esmagadora. É como o Grand Canyon (EUA), onde as rochas milenares, cada vez mais íngremes e eternas, se riem das pessoas que as visitam, dos seus problemas e preocupações.
O Meazza, no bairro de San Siro, é assim. Sentimo-nos pequenos. E quando enche, como no dérbi (80.019 espectadores), os gritos dos adeptos (do Inter no topo norte, com cadeiras verdes; do Milan no topo sul, com cadeiras azuis), os 212 jornalistas na bancada de imprensa ao ar livre e a passerelle de modelos esculturais e antigos jogadores dão o ar hollywoodesco ao jogo. Aliás, é costume os jogadores encontrarem-se na discoteca Hollywood, na Corso Como, após os jogos. Sorte a nossa que o jogo não é à italiana: não há cá catenaccio. E o árbitro – que utiliza o quarto balneário do estádio (há um, clássico, só para o Inter; há outro, high-tec, só para o Milan; há o dos visitantes; e o dos árbitros) – é o pior em campo, o que obriga Mourinho a danças estranhas na lateral, acompanhado de Figo (estreante no banco, como dirigente, na ausência do ‘titular’ Oriali) e Silvino (expulso na primeira parte, por protestos).
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Na zona mista, lugar onde se juntam centenas de microfones, câmaras fotográficas e blocos de notas, há respeito entre todos. O assessor de imprensa é uma figura não preponderante no processo. Ou seja, ao contrário do que se passa em Portugal, os jogadores falam e o acesso não está limitado ao humor do dito cujo. Esta figura está, portanto, a passarinhar pela zona mista, mas não impede nada. Ao contrário de Portugal, insista-se. Pela zona mista, passam interistas e milanistas. Uns mais bem-dispostos que outros, mas todos faladores e cordiais. Sem birras, outra característica portuguesa. Seedorf é o primeiro a entrar. Com classe, o holandês olha nos olhos, vê as credenciais e sorri, enquanto cumprimenta os stewards, todos com blusões do Inter, que, afinal, joga em casa. É fora de série, também fora do campo.
Seguem-se Maicon e Mancini a correr desalmadamente e a entoar o nome de Júlio César, não o imperador, mas o guarda-redes do Inter que defende um penálti de Ronaldinho no fim. E personagens como Gattuso (compenetrado), Materazzi (sem a máscara de Berlusconi), Pirlo (pensativo), Balotelli (calado), Ronaldinho (paciente), Milito (falador), Dida (social), Zanetti (um senhor), entre outros. Todos, sem excepção (e mais seriam se os tivessem solicitado), deram a sua opinião, posaram com adeptos a sorrir e assinaram autógrafos. Nas calmas. Ser grande é saber lidar com estes momentos pós-jogo, seja qual for o resultado.
E agora, onde vamos jantar? O nome incomoda, a ideia assusta. L’Assassino. Vamos jantar ao L’Assassino? À porta, um letreiro de fugir e, insistimos, a placa L’Assassino. Entro, não entro, entro, não entro, é um restaurante de peixe, vou entrar. O pessoal é impecável. São todos da idade do meu avô, portanto amici, friendly, amigáveis. Vou ter medo de quê? De um capachinho, de dentes postiços, de gargalhadas seculares? Como disse, amici. Daqueles. O restaurante está vazio e eles recebem-me de braços abertos. Põem-me o guardanapo no colo, gesticulam, servem-me vinho tinto sem eu ter dito o que quer que seja, distribuem-me pães pelo lado esquerdo, pelo direito e até pelo meio, não fazem a coisa por menos, falam pelos cotovelos e com as mãos.
Falam tão depressa e tão enrolados que às vezes até sorrio a pensar que disseram qualquer coisa em português, mas depois caio em mim e deixo escapar um suspiro semi-desesperado. Fico na minha, porque o italiano é a deles. E ainda nem pedi nada, ainda não esbocei nem gesticulei. Quando me deixam respirar, voltam à carga. No L’Assassino a dinâmica é em fast-forward, portanto. Há um empregado que se curva ao meu lado, vê o bilhete do Milan-Inter e metralha-me com perguntas. Já fui. L’Assassino apanhou-me.
Só percebo as palavras Milan e Inter. De resto... ni hablar, passe a expressão. Depois vê a carteira de jornalista e banzai. “Sabes quem é o Rocco, Nereo Rocco?” E debita-me informações que nunca mais acabam. “Ganhou duas Taças dos Campeões, duas Taças das Taças, uma Taça Intercontinental, dois scudetti [campeonato italiano] e três coppe [Taças de Itália]. Sentava-se ali.” E vai buscar fotografias. “Estás a ver esta mesa? Era aquela. Houve umas mudanças de decoração, de estilo, de toalhas, mas o canto dele era aquele. Vinha com os seus adjuntos, dirigentes do Milan e até jornalistas.
Conviviam juntos e ele passava horas a jogar futebol imaginário na mesa”, e o empregado começa a mexer-me nos talheres. Pega na colher e arruma-a entre dois copos (‘imagina que és il capitano Cesare Maldini’), agarra no garfo e coloca-o à frente da colher (‘este é o Trapattoni’), enquanto a faca ‘é o Pivatelli’, o sal é o Altafini e a pimenta é o Rivera. É o Milan campeão europeu em 1963 (2-1 ao Benfica) pa-ta-ti, pa-ta-ta e isto deixou de ser uma confusão tremenda, é claro como água. Isso mesmo, quero uma acqua. Minerale. Já peço o resto.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)