Inter e as camisolas esquisitas
Zenga diz 'maglia particolare' sobre o Boavista em 1991, o jornalista d'A Bola escreve camisola esquisita e está lançado o regabofe.
Lautaro Martínez, do Inter, no jogo com o Lecce, da liga principal italiana. © Créditos: Isabella Bonotto/AFP
Noites europeias, a magia está ao virar da esquina. É o FC Porto vs. Inter para decidir uma vaga nos ¼ da Liga dos Campeões. A eliminatória está a cair para o lado do Inter (1:0 em Milão) e o Dragão ainda tem uma palavra a dizer. Porque sim e porque o currículo de Sérgio Conceição com equipas italianas é moralizador, graças às vitórias vs. Roma, Milan e Juventus. Já só falta mesmo o Inter. É agora?
No vai-não vai, é tempo de recuperar a primeira visita do Inter ao Porto. Corre a brisa do ano 1991. O Inter é o campeão em título da Taça UEFA, a dar sequência ao bom momento do futebol italiano na terceira prova europeia mais conceituada (Nápoles 1989, Juventus 1990), e sai-lhe o Boavista no sorteio da primeira eliminatória.
Há quem torça o nariz, como o internacional italiano Nicola Berti. "Cuidado, muito cuidado, não me fio neles. A minha experiência é negativa, fui lá com a Fiorentina e saí eliminado", a respeito de uma eliminatória europeia em 1986, resolvida nos penáltis, com o guarda-redes belga Hubart a defender dois penáltis.
O capitão Bergomi, ainda hoje o recordista de mais jogos na Taça UEFA/Liga Europa, também está de pé atrás. "Se ganharam ao Benfica na Luz, é porque são valentes", numa alusão ao 0:1 de Casaca na jornada de abertura dessa 1.ª divisão 1991-92. O alemão Klinsmann, idem idem aspas aspas. "Há um ano, o Boavista eliminou o Sporting da Taça de Portugal e, depois, nós tivemos dificuldades com o Sporting na Taça UEFA."
Pois é, o Inter afastara o Sporting de Marinho Peres na ½ final da Taça UEFA 1990-91 com 0:0 no José Alvalade (pobre Oceano, falha dois golos certos na cara de Zenga) e 2:0 no Giuseppe Meazza (penálti de Matthäus, consentido por Douglas, e Klinsmann). Na ronda seguinte, o Inter levanta a Taça UEFA em Roma, no Olímpico. O treinador é Giovanni Trapattoni. Agora, em 1991-92, já é Corrado Orrico. O estudioso, dizem em Itália. Em tom irónico, porque Orrico passeia-se sempre com um charuto e debita muitas palavras caras – em ambos os casos para dar um ar filósofo – sem nunca acertar uma táctica.
A verdade é mesmo essa, Orrico é um personagem sem noção. Quando o jornal A Bola, por intermédio do jornalista Afonso de Melo, visita o Inter nas suas instalações pós-modernas, Orrico passa um atestado de incompetência. "Não conheço ninguém em particular do Boavista, mas tenho pessoas a tratar disso por mim. Quando chegar a altura do jogo, já vou saber mais." Curiosamente (ou não), quando o Inter aterra no Aeroporto Pedras Rubras, o discurso de Orrico é igual. Pergunta-lhe Carlos Daniel, a voz é inconfundível. "E os jogadores do Boavista?" (…) "Não conheço nenhum, hei-de conhecer, vamos estar preparados." Talvez não, daí o 2:1 para o Boavista.
É um dia histórico para o Boavista e o futebol português. O grande Inter, com Brehme e Matthäus (o terceiro alemão está lesionado), sai derrotado por um Boavista superior em jogo, golos e, acima de tudo, estratégia. Muito bem Manuel José, muito bem os jogadores. Marlon faz o 1:0, Barny o 2:0. Fontolan desconta aos 67 minutos e dá esperança para o Inter na segunda mão.
Daí a 15 dias (outros tempos, agora é uma semana ou três), o Boavista visita Milão com a missão de adiar o golo do Inter. Diga de sua justiça, Manuel José. "Havia uma sala de aquecimento para as equipas. Antes do jogo, o Facchetti, então director-desportivo e depois presidente, disse-me que a sala estava à nossa disposição. Respondi-lhe que queria ir para o relvado. Ele ficou espantado e contra-atacou a dizer que ia fazer queixa ao árbitro. 'Podes fazer o que quiseres, eu vou para o relvado'. E para quê? Para levar com os assobios no aquecimento, e não no início do jogo. Foi o que aconteceu. Fomo-nos aquecer no relvado e ouvimos de tudo. Quando entrámos em San Siro, devidamente equipados, já fomos mais relaxados. Ao intervalo, 0:0. Soubemos que o presidente deles, o Moratti [Massimo], tinha ido ao balneário do árbitro, um inglês qualquer. Bem, disse aos meus jogadores para defender longe da área, sem tackles nem nada. Dito e feito. O Inter não nos importunou por aí além e passámos a jogar 3-4-3 em Milão." Quê, 3-4-3? Sim senhor. Lá na frente, dois baixinhos rápidos, Coelho e Marlon Brandão, e um génio, João Vieira Pinto. No banco, Ricky. Categoria.
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O Boavista é recebido em casa com pompa e circunstância. Há jogadores levados em ombros, como João Vieira Pinto. "As camisolas esquisitas surpreenderam o Inter e a Europa." As camisolas esquisitas, como assim? Ah é verdade, esquecemo-nos de um detalhe a propósito daquela reportagem d'A Bola em Milão a uns bons dias da primeira mão. Afonso de Melo também fala com Zenga, então líder sindical e titular da selecção italiana. "O Inter cresce bem, sinto estima por Trapattoni mas devemos evoluir sem sentimentalismos, sem olhar para trás e eu, com este novo sistema à zona, já jogo cinco metros mais à frente."
E o Boavista, que significa para si? "Nada, é um desconhecido. Sei que tem uma maglia particolare, xadrez, é estranho, mas o equipamento não faz uma squadra." Maglie particolare, diz Zenga. O título do artigo assinala camisola esquisita. A coisa pega. Até hoje. As camisolas esquisitas do Boavista.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)