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Histórias da Bola

Gigi Meroni, o herói atropelado

A propósito da Juventus no José Alvalade, eis uma história de Turim do arco da velha.

© Créditos: Shutterstock

A história do futebol é infinita e está longe de só abarcar os 90 minutos de competição. Há muito para além disso, como a história da réplica italiana de George Best. Falamos de Gigi Meroni, um personagem diferente de todos aqueles que conhece.

Nascido em Como a 24 Fevereiro 1943, Meroni rapidamente se destaca como futebolista da 2.ª divisão, pela equipa da cidade-natal, onde costuma mascarar-se de jornalista e perguntar a quem quer passe por ele o que acham "de um tal Meroni que se está a dar bem no Como". Quando a resposta era negativa, por falta de conhecimento da matéria, o entrevistado ria-se descontroladamente e pedia mais detalhes.

Outra das suas brincadeiras preferidas é vestir um maillot feminino e banhar-se no lago de Como; ou então andar pela cidade com uma galinha debaixo do braço. Mas sempre, sempre, com a barba de três dias e o cabelo desgrenhado. É o seu estilo. Livio Prada, o seu primeiro treinador nos seniores, ainda hoje não sabe a que Meroni jogava. "Eu dizia-lhe para ser o extremo direito, mas qual quê... O jogo ainda não tinha um minuto e ele já estava na esquerda, ou no meio, à procura da bola. Era um vagabundo. No relvado e fora dele."

Aos 19 anos, é contratado pelo Genoa e o seu futebol encanta tudo e todos, embora algumas fintas sejam escusadas. Como esta, por exemplo: na última jornada da Serie A 1962-63, recusa-se a ir ao anti-doping. O argumento é que deixa o frasco no hotel. Outros três jogadores do Genoa são "convocados" e acusam anfetamina. A Meroni, os dirigentes federativos italianos suspendem-lhe por cinco jogos no início da época 1963-64 pela nega ao controlo.

Em Maio 1964, o passe de Gigi é vendido ao Torino por 450 mil liras e a cidade de Génova é tomada de assalto pelos adeptos do Genoa, descontentes com o negócio. Em Turim, o estilo rebelde de Meroni encaixa-se na perfeição. Estamos a falar de uma época em que Torino quer restabelecer-se como força do futebol italiano, algo que se havia perdido desde 1949 com o desastre aéreo de Superga – curiosamente o piloto desse avião chama-se Pierluigi Meroni (não, não são familiares).

Namorado de Cristiana Uderstadt, uma mulher casada (à sua revelia e forçada pelos pais, que não a querem ver ao lado de um jogador de futebol e inventam uma união com Vittorio de Sica, assistente de realização), a vida de Meroni é uma montanha russa de emoções. Pinta quadros, lê livros de filosofia, vai ao cinema. Ah, e joga futebol. Com classe e determinação. E, claro, ‘aquele’ cabelo.

O seleccionador italiano Edmondo Fabbri convoca-o para um jogo com a Polónia em 1965, na condição de cortar o cabelo. Meroni acede ao pedido. É a primeira, e também a última vez. No Mundial-66, Meroni é suplente. Contra a lógica. Autor de dois golos nos particulares com Bulgária e Argentina, o extremo é atirado para o banco na estreia vs. Chile. Ainda joga com a URSS, mas recusa-se a entrar em campo com a Coreia do Norte.

"Fabbri era um homem com uma certa idade. Antes de cada jogo, punha-nos sempre a música do filme "A Ponte do Rio Kwai". E pediu ao Meroni para cortar o cabelo porque se parecia com um cigano. "Ele disse que não e nunca mais jogou na selecção", conta Salvadore, o capitão dessa Itália eliminada na fase de grupos pelos amadores norte-coreanos.

No regresso a casa, os italianos recebem a selecção com tomates. Alguns atingem Meroni, o alvo mais fácil da hecatombe que obriga a Itália a fechar as portas aos estrangeiros para valorizar o produtor interno. Nesta relação momentânea de amor-ódio, o magnata Agnelli, presidente da Juventus, oferece 950 mil liras ao Torino por Meroni. O negócio está em cima da mesa, embora o jogador nada saiba.

Os adeptos do Toro, esses, reagem com violência e fazem uma espera ao presidente do Torino na sua própria casa. Sem condições, Orfeo Pianelli vê-se obrigado a abortar a transferência e Meroni mantém-se no Torino, onde é carinhosamente apelidado de beatnik do golo pela sua forma anti-conformista de estar no futebol e na vida.

Em 1967, a 12 Março, marca um dos melhores golos de sempre no campeonato italiano, vs. Inter, em pleno Giuseppe Meazza. Não só finta o lendário Facchetti como ainda faz pouco do guarda-redes Sarti. O Torino ganha 2:1 e o Inter de Helenio Herrera perde pela primeira vez em casa para a Serie A nos últimos três anos. A lenda de Meroni cresce a olhos vistos. Até que o destino.

A 15 Outubro 1967, na ressaca da vitória sobre a Sampdoria por 4-2, Meroni e o companheiro de equipa Poletti jantam na Corso Re Umberto, uma rua em Turim perto da casa de Meroni. Depois do jantar, os dois convidam as respectivas namoradas a comer um gelado no outro lado da rua. Após o telefonema feito de uma cabine ali ao lado, Poletti e Meroni atravessam a rua de forma imprudente e vêem-se no meio das duas faixas.

Um Fiat Coupe 124 vem de um lado e atropela a dupla. Poletti desvia-se no último segundo e sofre apenas um toque de raspão. Meroni é atingido na perna esquerda e atirado para a outra via, onde aparece um Lancia Appia que o arrasta por 50 metros. Meroni está inconsciente, mas ainda respira. Há esperança. Que dura só até às 22h40, a hora de óbito do irreverente extremo do Torino.

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O Fiat é conduzido por Attilio Romero, um jovem de 19 anos, filho de um médico rico. E o seu ídolo é Meroni. A fotografia do jogador está estampada no tabelier do carro e o próprio Romero tem o cabelo à Meroni. Após o acidente, entrega-se voluntariamente à polícia e é interrogado pela noite dentro.

Sai em liberdade, directamente para a sua casa, 13 números à frente da de Meroni, na tal Corso Re Umberto. Aguenta as consequências desta coincidência? Veja lá, respire fundo. Mesmo. Aqui vai. Romero será presidente do Torino em 2000 e leva-o à falência em 2005. Caramba.

Caramba, outra vez.

Adiante. Mais de 200 mil pessoas vão ao funeral de Meroni, mas nem aqui há descanso. A Igreja opõe-se ao funeral de um pecador público (por estar a namorar uma mulher casada) e pune o padre Francesco Ferraudo que dá a missa sem dar cavaco à instituição. No fim-de-semana seguinte, há dérbi entre Juventus e Torino. O argentino Nestor Combin marca três golos e o quarto da tarde é de Carelli, o número 7 na ausência de Gigi. É ainda hoje a maior vitória do Torino vs. Juventus no pós-guerra.

Calma, a história não acaba aqui. Nem podia. Daí em diante, o Torino nunca perde no dia 15 de Outubro. Chamam-lhe o factor Meroni.

(Autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.)