Dérbi. A vertigem do poder
Benfica campeão no José Alvalade a uma jornada do fim? Eis uma notícia de 1975 e, quem sabe?, repetida em 2023.
© Créditos: Filipe Farinha/LUSA
Benfica campeão ou Benfica campeão? A pergunta impõe-se à falta de duas jornadas: ou o Benfica é campeão este domingo, no José Alvalade (onde só perde uma vez nos últimos dez dérbis), ou é campeão para a semana, no conforto da Luz, vs. Santa Clara. A vantagem de quatro pontos dá para tudo, até perder o dérbi mais decisivo dos últimos 48 anos.
Quarenta-e-oito, então porquê? Em Maio 1975, o Benfica é campeão no José Alvalade a uma jornada do fim. Para tal, empata 1:1 com golo do Diamantino – o loiro, e não aquele com deslumbrante toque de bola e figura ímpar dos anos 80. No mundo do ‘descubra as diferenças’, há muito para desbravar. Para início de conversa, o Braga é campeão da 2.ª divisão, zona norte. O Braga 2023 é muito à frente e, ao que tudo indica, vai fechar o pódio da 1.ª divisão, à frente do Sporting. Pois é, o Sporting.
O Sporting de 1974-75 apresenta-se de peito cheio. Além de ser o campeão em título, o presidente João Rocha saca um trunfo chamado Alfredo di Stéfano. É verdade, o argentino aceita treinar o Sporting com um acordo verbal 'assinado' no dia 27 Julho 1974 em Benidorme, onde a dupla se cruza por casualidade. Palavra puxa palavra, com muito Yazalde metido ao barulho, e eis Di Stéfano em Portugal. A figura é imensa, craque do além, jogador de enorme gabarito. Como treinador, Di Stéfano continua a ser avassalador: campeão argentino pelo Boca Juniors em 1969 e campeão espanhol pelo Valencia em 1971.
A apresentação de Di Stéfano é um hino ao improviso, porque Yazalde ainda não sabe com que linhas se cose. O avançado goleador, então melhor marcador da 1.ª divisão e também detentor da Bota de Ouro como melhor marcador europeu, continua às turras com João Rocha. O motivo é o de sempre, dinheiro. Até porque Yazalde aterra em Portugal via-RFA, onde marcara dois golos pela Argentina no Mundial. A fama procede-o, o contrato tem de ser obrigatoriamente melhorado. Diz ele. João Rocha é de outra opinião e espera por propostas. Só aparece uma, a do Boavista. Só que as exigências de Yazalde transbordam o cofre do Bessa: 3.500 contos por duas épocas é muita fruta.
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Sem mais propostas, Yazalde recua nas suas intenções e lá assina a renovação com o Sporting, agora debaixo da asa de Di Stéfano. O problema é que Alfredo nasce torto no Sporting e jamais se endireita. A digressão de pré-época ao Brasil é um fiasco e até envolve um 6:0 do Cruzeiro. A malta desconfia, João Rocha nem se fala. Antes mesmo do arranque da 1.ª divisão, vs. Olhanense, em campo neutro (Faro), o adjunto Osvaldo Silva é nomeado treinador principal. Di Stéfano já era. As opiniões dividem-se, consoante o fervor patriótico. Yazalde elogia Alfredo ao ponto de o considerar melhor que dez treinadores juntos, enquanto Dé e Dinis consideram-no pouco democrático nos métodos de treinos. Diz-se à boca cheia, desde o primeiro dia, Di Stéfano é uma figura pouco simpática e só fala com Damas mais Yazalde.
Com Osvaldo ao leme, o Sporting é eliminado à primeira na Taça dos Campeões (cortesia Saint-Étienne) e sofre duas derrotas em quatro jornadas (Faro e Guimarães). Até final, 'só' perderia mais duas vezes (Bessa e Restelo). O 'só' é fatal, porque o título de campeão joga-se entre os outros dois grandes. E é o FC Porto de Aimoré Moreira a dar um ar de sua graça, com três pontos de avanço no início da segunda volta. Na 18.ª jornada, o Sporting ganha o clássico no José Alvalade e o Benfica aproxima-se com uma magra vitória em Olhão (1:0 de Nené, a seis minutos do fim). Na semana seguinte, o Belenenses espanta o mundo do futebol com quatro-secos nas Antas e o Benfica assume a liderança isolada (3:0 vs. Leixões na Luz).
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Na tarde de 16 Fevereiro 1975, o Benfica dá uma sapatada no FC Porto com 3:0 nas Antas. A partir daí, o Sporting assume as despesas do segundo classificado, muito graças à infinita veia goleadora de Yazalde, novamente o melhor marcador da 1.ª divisão. A uma jornada do fim, no dia 4 Maio, o Benfica visita José Alvalade com a certeza da festa do título em caso de empate. O Sporting começa em Damas e acaba em Yazalde, parece perfeito. O Benfica vai de Bento até Nené, mais-que-perfeito.
Antes do pontapé de saída, o Benfica deixa-se fotografar para todo o país. De pé, entre o capitão Simões e o avançado Moinhos, a figura de Milorad Pavic. É ele o treinador, jugoslavo de nacionalidade e artista por defeito, já vencedor da Taça de Espanha em 1973 pelo Athletic Bilbao. É o seu cartão de visita por excelência. O Benfica agiganta-se na pré-época com vitórias badaladas nos quatro cantos do mundo entre México (4:2 vs. Monterrey, 4:3 vs. León), Brasil (5:3 vs. Cruzeiro, 1:0 vs. Atlético Mineiro), EUA (3:2 vs. América), Bélgica (5:1 vs. Racing White) e Espanha (2:1 vs. Sevilha).
Na época propriamente dita, o Benfica também faz bonito e impede o bi do Sporting. No tal 4 Maio, em pleno José Alvalade. O 1:0 de Fraguito adia a festa por breves instantes. No recomeço, o loiro Diamantino fixa o 1:1 e o Benfica celebra até às tantas. Nos estúdios da RTP, o programa Teledomingo apresentado por Joaquim Letria fecha a programação televisiva às 23 horas e 31 minutos com um compacto do jogo mais uma série de entrevistas aos heróis do dia, e não só – o presidente sportinguista João Rocha é um dos convidados.
E este domingo, como é? Atenção, a festa até pode ser antecipada na visita do FC Porto a Vila Nova. Tem o Famalicão a palavra.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)