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Conta-me como foi da bola. O (outro) penálti de Roberto Baggio

No regresso ao campo da Fiorentina, com a camisola da Juventus, o número 10 pura e simplesmente recusa-se a marcar um penálti contra a sua ex-equipa.

© Créditos: REUTERS

Veloso (Benfica-PSV Eindhoven em 1988), Gomes (Nápoles-Sporting em 1989), Pedro Emanuel (FC Porto-Once Caldas em 2004), Ricardo com luvas ou sem elas (Portugal-Inglaterra no Euro-2004 e no Mundial-2006). Dê por onde der, a história portuguesa dos penáltis faz-se de lágrimas. Umas de alegria, outras de desilusão. A culpa disto tudo é de um senhor chamado William McCrum, empresário têxtil e inventor da grande penalidade, na pequena vila de Milford, com 400 habitantes, na Irlanda do Norte.

Cansado de ver jogadores serem derrubados em boa posição para chutar ao golo, o guarda-redes da equipa local Milford Everton (ainda hoje em actividade) tem a ideia de criar uma área a 11 metros da baliza, em 1880. Dá-se o nome de penálti e dez anos depois apresenta oficialmente a proposta à federação norte-irlandesa, a qual aceita a sugestão numa base provisória. Só em 1891 é que o penálti pega de estaca, ao ponto (literal e metafórico) de já ter decidido finais de tudo e mais alguma coisa, entre provas da UEFA, Europeus e Mundiais.

Deste lance em concreto, nada se decide. É simplesmente um jogo do campeonato italiano e dá azo a tanta polémica que é impossível ficar indiferente. Escrevemos sobre Roberto Baggio. Nascido e criado em Vicenza, onde começa a jogar futebol com o talento que se lhe reconhece, ao ponto de ter sido apelidado de novo Zico pelo seu primeiro treinador nas camadas jovens, Baggio é campeão da 3.ª divisão italiana em 1986.

Eleito o melhor jogador desse escalão pela mítica revista Guerin Sportivo, o número 10 é alvo de cobiça por parte de dois clubes: de um lado, a Juventus ansiosa por encontrar um novo Platini; do outro, a Fiorentina à descoberta de um substituto para Antognoni. A Juve é mais forte, a Fiorentina é quem oferece mais dinheiro à última hora, qualquer coisa como três milhões de contos. O Vicenza vende o passe de Baggio e os primeiros tempos do craque em Florença são do pior que se pode imaginar, com uma grave lesão no joelho direito que o obriga a levar 220 pontos! É isso mesmo, duzentos-e-vinte. Durante quase duas épocas, Baggio está de molho.

Quando recupera, vira um ídolo incontestável, com golos e mais golos atrás de exibições maravilhosas. Da Fiorentina à selecção italiana é um passo. Em 1990, Baggio mete a Fiorentina na final da Taça UEFA (perdida para a Juventus de Rui Barros) e deslumbra no Mundial-90 com um golo especial à Checoslováquia em que passa por três adversários antes de concluir na cara de Stejskal como se de um penálti se tratasse: bola para um lado, guarda-redes para o outro.

Nesse Verão, Baggio passa para a Juventus. Contra a sua vontade. E a troco de cinco milhões de contos, novo recorde mundial. Em Florença, há tumultos. Os adeptos saem à rua para protestar e vandalizam tudo o que encontram: carros, sinais de trânsito, lojas. A onda de violência causa 50 feridos, os dirigentes da Fiorentina contratam seguranças para protecção pessoal e a família Pondella, dona da Fiorentina, vende o clube.

A 6 abril 1991, as duas equipas encontram-se em Florença. É o regresso do filho pródigo a casa. Na altura, Baggio ainda é olhado com desconfiança pelos próprios adeptos da Juventus, apesar de ser o melhor marcador da equipa com 10 golos, seis deles de penálti. Aos 41 minutos, Fuser dá vantagem à Fiorentina, aflita para evitar a despromoção. Aos 50’, Baggio é derrubado dentro da área. Penálti indiscutível. Todos olham para Baggio e este afasta-se da marca dos 11 metros. Passa a bola a De Agostini. Que permite a defesa de Mareggini. Pouco depois, Baggio (a quem o público de Florença assobia cada vez que toca na bola) é substituído, apanha um cachecol da Fiorentina do chão e beija-o. É o cúmulo.

A Juventus perde 1-0 e está irremediavelmente afastada do título de campeã italiana, com os adeptos a direccionarem o seu ódio para o número 10. Até os jogadores estão perplexos com a atitude de Baggio. O guarda-redes Tacconi, por exemplo, dá uma no cravo e outra na ferradura. “Estamos todos solidários com Roberto mas ele cometeu um erro em renunciar à marcação daquele penálti. O futebol, como na vida, passa por momentos destes: só errando é que podes melhorar.”

O médio Marocchi está ligeiramente mais insatisfeito e desabafa: “Quem não quer marcar um penálti que salve a equipa da derrota, talvez não deva jogar em Camp Nou [com o Barcelona, para as meias-finais da Taça das Taças, no desafio seguinte da Juventus].” O presidente Vittorio Chiusano é taxativo e acaba com a polémica. “Antes do jogo em Florença, foi-me dito que Baggio e Meifredi [treinador da Juventus] combinaram que ele não iria marcar um eventual penálti por respeito ao ex-clube e essa decisão foi entregue a De Agostini. Portanto, para mim, o assunto é história.”

Sem dúvida, História com h maiúsculo, porque nunca um penálti gasta tanta tinta como este. Bem, pelo menos, até à final do Mundial-94. Aí, Baggio vai à marca dos 11 metros. E falha.