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Conta-me como foi da bola. Maradona em dose dupla

Quando Diego é apanhado nas malhas do doping em 1991, pelo Nápoles, e 1994, pela selecção argentina.

© Créditos: dpa-tmn

Incas, maias, aztecas. Nostradamus, Lutero, Da Vinci. Quantos são? Quantos são? Os profetas não acertam uma para a caixa e nem sequer falam do ano mais improvável de sempre. O de 1991, isso mesmo mil-novecentos-e-noventa-e-um.

O Sporting das 11 vitórias seguidas acaba em terceiro lugar no campeonato, atrás de Artur Jorge (FC Porto) que inédita e estranhamente perde as estribeiras no jogo do título com o campeão Benfica, obrigado a equipar-se no túnel de acesso ao relvado, tal é o cheiro intenso a bagaço dentro do seu balneário. Carlos Queiroz, Nelo Vingada e João Vieira Pinto sagram-se bicampeões mundiais frente ao Brasil de Roberto Carlos. O Salgueiros apura-se para a Taça UEFA e apadrinha a estreia europeia de Zidane, então no Cannes. O Boavistão de Manuel José elimina o Inter de Matthäus, Brehme e Klinsmann. A Sampdoria de Mancini e Vialli é campeã italiana pela primeira e única vez. E Maradona é apanhado nas malhas do doping.

Há 31 anos, a RAI Uno abre o noticiário da noite com a notícia de controlo anti-doping positivo para o capitão do Nápoles. Cocaína é a substância encontrada, numa análise feita depois de um jogo com o Bari, a 17 de Março, no qual o Nápoles ganha em casa por 1-0, golo de Zola. Conhecido o resultado, Maradona é logo afastado de toda e qualquer actividade desportiva, não só pela federação italiana, também pela FIFA. Mais tarde é condenado a 15 meses de suspensão. Apesar de tornar público que ficaria em Itália a aguardar julgamento, o artista, verdadeira artista, viaja dois dias mais tarde para a Argentina, e só voltaria a Itália sete anos e meio depois, em Novembro de 1998.

Na noite de 29 de Março de 1991, com a bruta notícia da cocaína, fecha-se o parêntesis mais feliz da história de futebol do Nápoles. Sete anos com Maradona, sete anos de sucesso, de títulos, de festa. Dois campeonatos italianos, uma Taça de Itália, uma Taça UEFA e uma Supertaça italiana. Sete anos inesquecíveis, que resgatam (desportivamente e não só) a imagem de uma cidade, apoiada por um clube outrora modesto e sem ambição de se equiparar aos grandes do Norte como Inter, Milan e Juventus.

Com todas estas conquistas, Maradona é um ídolo dos napolitanos, venerado por toda a população, que o vêem como um dos seus. Tão excessivo amor sufoca o astro, que pede ao presidente Corrado Ferlaino a transferência para o Marselha no Verão de 1990, na sequência da derrota com a RFA na final do Mundial de Itália, em que Maradona é constantemente assobiado pelos italianos, sobretudo em Milão. A sua vida torna-se caótica, à mercê de oportunistas, gangsters e mafiosos (descubra as diferenças), e a permanência em Nápoles, ingovernável.

Aliás, essa época 1990-91 é para esquecer. O Nápoles, como detentor do título de campeão italiano, não ganha um único jogo fora de casa nas 12 primeiras tentativas e só vence seis em 23 jornadas. Em 10.º lugar, a 12 pontos da líder Sampdoria, o Nápoles é uma sombra do que foi, tal como Maradona, autor de seis golos, todos de penálti.

Seja como for, Maradona merece um adeus mais emotivo, e não aquela fuga da noite para o dia como se se tratasse de um delinquente. Aquele 29 de Março é o fim de uma fábula. Mas a vida não é um conto de fadas, e nem sempre tem um final feliz. Nostradamus, Lutero ou Da Vinci sabem do que estamos a falar. Maradona também. Afinal, ele é apanhado novamente num controlo anti-doping em pleno Mundial-94.

(...)

Mil-noventos-e-noventa-e-quatro. Avançamos três anos e reencontramos Maradona em grande forma no Mundial-94. Logo que fora dado como desaparecido para o futebol. Abro aqui um parêntesis para falar de Silvio Piola, ainda hoje detentor de três recordes: o de melhor marcador da 1.ª divisão italiana (274 golos), o de jogador com mais golos num jogo do campeonato italiana (seis num 7-2 entre Pro Vercelli e Fiorentina) e o de mais velho a marcar na Serie A (aos 40 anos, seis meses e nove dias, num Novara-Milan).

Pelo meio, 30 golos pela selecção italiana, um deles com a mão à Inglaterra. É campeão mundial, em 1938, com dois golos na final à Hungria. Destacado para o Exército para a Segunda Grande Guerra, é dado como morto em 1943, até que reaparece pelo seu próprio pé, em Itália, três semanas depois. A Maradona, que marca à Inglaterra com a mão, também o consideram desaparecido de 1991 até 1994. O regresso é precisamente no Mundial-94 e o impacto é imenso. Porque a Argentina joga à bola como nunca, com Redondo, Caniggia, Batistuta, Balbo e outros que tais. O sonho do tri está bem vivo. Na estreia, 4-0 à Grécia. Há um golo icónico, o 4-0 de Maradona.

No segundo jogo, 2-1 à Nigéria. É o dia 25 de Junho, em Boston. O árbitro sueco Karlsson apita para o final e uma senhora loira de bata branca vai buscar Maradona pela mão, ainda no meio-campo. Os dois saem alegremente de campo, directamente para a sala de controlo anti-doping. Horas mais tarde, a Argentina chora o adeus (triste) do seus Deus, novamente apanhado nas teias do doping. Agora com efedrina. Na sua autobiografia ‘Yo Soy el Diego’, Maradona justifica o resultado positivo no controlo com o facto de consumir a bebida energética Rip Fuel, cuja versão norte-americana, ao contrário da argentina, contém o tal químico proibido. A FIFA expulsa Maradona do Mundial com efeitos imediatos e a Argentina perde os dois jogos seguintes, um com a Bulgária, ainda na fase de grupos, e outro com a Roménia, para os 1/8 final. O efeito Maradona é tramado. E a dobrar.