Cantona, Jorge Silva e Eusébio: os maus da fita
Os três agressores de adeptos em pleno jogo.
Éric Cantona atirou-se a um adepto no jogo do United contra o Crystal Palace, em janeiro de 1995.
A relação entre adeptos e jogadores nem sempre é exemplar. Há casos para todos os gostos. Mau gosto, acrescente-se. Que o diga o último dérbi entre Tottenham e Arsenal, no domingo, quando o guarda-redes visitante Ramsdale é agredido por um adepto da casa com um pontapé. Apesar de todo o aparato de segurança a rodear as bancadas, o energúmeno fura o dispositivo e entra na história.
A situação é, infelizmente, corriqueira. Acontece muito mais vezes que o desejado, e em todo o mundo, seja na pseudo-impoluta Premier League, seja lá atrás do sol posto, onde a bola é quadrada (e os adeptos continuam obtusos). Há sempre pessoas desejosas de dar (triste) espectáculo. Claro, também há o contrário: jogadores capazes de responder à letra e dar a volta ao texto. O primeiro exemplo que me vem à cabeça é o de Cantona, evidente.
Éric passa-se dos carretos em Selhurst Park, casa. Primeiro agride Richard Shaw, do Crystal Palace, e vê o quinto vermelho em 98 jogos pelo United, depois atira-se ao adepto Matthew Simmons com um golpe de kung fu. É o fungagá da bicharada. Martin Edwards quer expulsar Cantona para sempre. É Alex Ferguson quem acalma o presidente do United e ainda viaja até França a fim de convencer o avançado a voltar a Inglaterra para cumprir a suspensão, mais tarde atribuída pelo tribunal (nove meses na prateleira mais 120 horas de serviço comunitário e 10 mil libras de multa).
No dia da sentença, a 1 Abril 1995, Éric vai desculpar-se à federação perante um comité de observadores. Num inglês perfeito, dito da forma mais calma que se possa imaginar: "Quero pedir desculpa ao presidente da comissão. Quero pedir desculpa ao Manchester United, a Maurice Watkins [director do clube] e a Alex Ferguson. Também quero pedir desculpa aos meus companheiros e à federação. E ainda à prostituta que dividiu a minha cama ontem à noite." Whaaaaaat?
Segue-se a conferência de imprensa e Cantona só demora 18 segundos, enquanto bebe um copo de água. "Quando as gaivotas [jornalistas] seguem a traineira [jogadores], é porque pensam que as sardinhas [frases controversas] vão ser atiradas ao mar [ao público em geral]." Craque.
Na década anterior, em Sacavém, o jovem Jorge Silva atira-se aos adeptos com uma g'anda pinta. Como é que é? Nem mais nem menos, Jorge Manuel Correia Oliveira Silva, 18 anos, chamado aos juniores pelo novo treinador belenense Fernando Mendes, sucessor de Mourinho Félix.
Estamos a 27 Fevereiro 1983, um domingo, dia de Sacavenense-Belenenses para a 18.ª jornada da 2.ª divisão, zona sul. À passagem da meia-hora, um sururu xxl dita as expulsões do belenense Djão e do sacavenense Pacheco. Meio alterado, Jorge Silva entra em picardias várias nos minutos seguintes e vê um cartão amarelo, razão pela qual Fernando Mendes o substitui por Carlos Alberto antes do intervalo, aos 43'. De cabeça quente pelas trocas de empurrões e pelo ambiente hostil dos adeptos da casa, Jorge Silva sai pela linha de fundo e, a caminho dos balneários, aplica um golpe de kung-fu num magote de pessoas. Mais um sururu. Sem consequências para Jorge Silva.
Acredite, o miúdo é convocado para a jornada seguinte e entra aos 65 minutos num outro 0:0, este vs Barreirense, com Neno à baliza em grande estilo. Da FPF nem um aviso nem uma multa, nada de nada. Já Djão apanha três jogos pelo cartão vermelho directo e só regressa no dia 20 Março, vs Elvas (um golo, 7:0 no Restelo).
Jorge Silva, o Cantona português, acaba a carreira em 1996 ao serviço do Juventude Évora, na 3.ª divisão. Antes, completa dez épocas no Belenenses, metade das quais na 1.ª divisão. Faz um ano em Leiria, cinco no Amora e um no Olivais e Moscavide. Ao todo, 22 golos (e um golpe de kung-fu) em 257 jogos oficiais entre 1.ª, Honra, 2.ª B e 3.ª.
Ler mais:
Antes de Cantona e Jorge Silva, há Eusébio. Verdade. Leia para crer.
Esvazia-se o suspense, em plena 25.ª e penúltima jornada da 1.ª divisão. No último dia de Abril 1967, confirmam-se as descidas à 2.ª de Atlético e Beira-Mar mais o título de campeão do Benfica. Basta uma vitória em casa, vs Belenenses. Um golo em cada parte resolve o assunto. Marcam Eusébio, de penálti, a castigar mão de Rodrigues, e José Augusto, de cabeça, após centro de Eusébio.
A 15 minutos do fim, inicia-se o carnaval. Soam os primeiros foguetes, lançam-se as primeiras serpentinas. Até aí tudo bem, o jogo prossegue com normalidade. Aos 87 minutos de jogo, a massa adepta do Benfica irrompe pelo relvado fora. Instala-se a confusão, depois o caos. Há desmaios. E macas. Há jogadores sem camisola. Há jogadores sem calções. Há uma gritaria ensurdecedora. No meio, um senhor prostrado no chão. Nitidamente com dores, é assistido pelo médico benfiquista Azevedo Gomes. Recuperado, sai de cena e o jogo chega finalmente ao fim, com a realização dos últimos 180 segundos.
Horas depois, já se sabe tudo. Chama-se Artur Glória e é um adepto fervoroso. Quando entra no relvado é com o intuito de pedir a camisola a Eusébio. O número 10 não está para aí virado e sacode a pressão com um pontapé. Lá se vai o Glória. E a glória, já agora. Eusébio é chamado à pedra pela própria direcção do Benfica e pede desculpas pelo acto, além de lhe oferecer a ambicionada camisola em pleno Estádio da Luz, na quinta-feira, 4 Maio.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)