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Futebol

A falta de peso dos golos fora

Na estreia do novo sistema das competições europeias, FC Porto joga em Roma com a vantagem mínima e, agora sim, confortável do 2:1.

O bis de Toni Martínez é uma almofada confortável para o jogo da segunda mão contra a Lazio, em Roma.

O bis de Toni Martínez é uma almofada confortável para o jogo da segunda mão contra a Lazio, em Roma. © Créditos: AFP

Segunda eliminatória da Taça UEFA 1989-90. Nas Antas, o Porto ganha 3:1 vs Valencia. Na conferência de imprensa, o treinador uruguaio Víctor Espárrago está confiante em dar a volta na segunda mão.

– Vai ser difícil ganhar 2:0?

– Sim, sim, dois-zero seria bom, mas o 1:0 é suficiente.

(pausa)

(pausa maior)

(pausa enorme)

– Desculpe, só dá 2:0. Com 1:0, o Valencia é eliminado.

– Os golos fora valem a dobrar. Se perdemos 3:1, basta 1:0.

– Valem a dobrar quando há um empate na eliminatória. O 1:0 só reduz a diferença para 3:2.

(pausa)

(pausa menor)

(pausa mínima)

Custa convencê-lo mas ele lá admite o equívoco aos jornalistas valencianos. “Na América do Sul, as eliminatórias são diferentes: um jogo vale dois pontos.” Exemplo? “Ganhas 6-0, perdes 1-0 e vamos a terceiro jogo em campo neutro.” É verdade, sim senhor, esse modelo existe. E depois é abolido pela falta de bom senso. Repare-se na final da Taça Intercontinental 1961. Na Luz, 1:0 para o Benfica. Em Montevideu, 5:0 para o Peñarol. Dois pontos para cada, finalíssima. Baaaaaah. No desempate, outra vez em Montevideu por comum acordo dos dirigentes dos dois clubes, 2:1 para o Peñarol.

Adiante. No caso da tal eliminatória em 1989-90, o Valencia ganha 3:2 com hat-trick de Fenoll e é o Porto a festejar pela regra dos golos fora – curiosamente, na eliminatória seguinte, o Porto sofreria desse mal vs Hamburgo com 1:0 fora e 2:1 nas Antas. Golos fora, espectáculo. Existe desde 67-68 e o Benfica é o primeiro beneficiado, vs Glentoran, com 1:1 em Belfast e 0:0 na Luz. O golo de Eusébio é decisivo. E antes, como é? De 1955 a 1968, as eliminatórias resolvem-se com um terceiro jogo, razão pela qual o Sporting chega à final da Taça das Taças-64. Se a regra dos golos fora fosse então válida, o leão nem sequer rugiria na segunda eliminatória pelo 2:0 em Bérgamo e 3:1 em Alvalade – nem na meia-final (0:0 em Lyon, 1:1 no José Alvalade).

Siga a marinha. Em 67-68, os golos fora só valem na primeira ronda (o tal Benfica vs Glentoran), opção estendida para todas as eliminatórias em 68-69. Até 70-71, esta regra só não é válida para o prolongamento. A partir daí, é bar aberto. Que o diga o Benfica, apurado para duas finais nesse sistema. A primeira vs Universidade Craiova na Taça UEFA 1983 com 1:1 (Filipovic) fora e 0:0 em casa. A segunda vs Marselha na Taça dos Campeões 1990 com 1:2 fora e 1:0 (Vata) em casa. Também há o reverso da medalha, Liga Europa 2011. Ao 2:1 em casa, o 1:0 de Custódio em Braga adia até 2013 a primeira final europeia de Jesus.

Já agora, também o Sporting chega a uma final com o golo fora. Acontece na Taça UEFA 2005, em Alkmaar. O relógio marca 120 minutos e 19 segundos, é livre para o AZ na sua área. Está 3:1 na Holanda, 4:3 na eliminatória. O Sporting está afastado da final da Taça UEFA, sediada no José Alvalade. A bola é batida pelo guarda-redes Timmer, sobrevoa o campo quase todo e cai nos pés de Polga. O brasileiro sofre uma falta, imediatamente marcada por Miguel Garcia para Moutinho. Daí para Tello, depois Custódio, novamente Tello e chuveirinho para o corte de cabeça de Vlaar.

É canto para o Sporting. O relógio marca 120 minutos e 44 segundos. Tello avança para a marcação, Beto coxeia e Ricardo sai da sua baliza para invadir a área contrária. Barbosa recua, é o último homem do Sporting. Chove enormidades. Tello marca o pé esquerdo aos 121 minutos e 5 segundos. A bola vai ao primeiro poste, onde saltam Miguel Garcia, Beto e Ricardo contra um só jogador do AZ. É de Miguel Garcia o cabeceamento para a final, com a bola a passar por entre as pernas de Pérez, autor do momentâneo 1:0. Que noite gloriosa para o Sporting, que momento imperdível para Miguel Garcia, a final da Taça UEFA é uma realidade.

Esta lenga-lenga toda para quê? “Há muito que defendo que essa regra está ultrapassada e tem de ser alterada. Foi criada nos anos 60 para encorajar as equipas visitantes a jogar ao ataque. O futebol mudou e o peso do golo fora é exagerado.” Na ressaca do adeus na Liga dos Campeões 2014-15 provocado por Leonardo Jardim (1:3 em casa e insuficiente 2:0 no Monaco), o treinador francês Arsène Wenger queixa-se do peso exagerado dos golos fora – logo ele que chega à primeira final europeia da carreira à custa de 1:1 e 2:2 vs Feyenoord em 1992.

Vem isto a propósito do adeus oficial da UEFA à regra dos golos fora a partir desta época 2021-22 (aqui para nós que ninguém nos ouve, daí o parêntesis para dar a sensação de um segredo muito íntimo, só sou contra a regra dos golos fora caso os dois jogos terminem empatados e lá voltamos ao Benfica vs Glentoran; agora quando o exemplo é o do Monaco vs Arsenal, sou a favor da regra; seja como for, a UEFA acaba com a regra e estipula o de sempre, prolongamento de 30 minutos mais penáltis). E vem isto a propósito, parte 2, do Lazio vs Porto desta 5.ª feira.

O Porto ganha 2:1 no Dragão e chega a Roma com a simpática sensação de que o 1:0 da Lazio não tem o peso de outros tempos. Isto é, com 2:2 na eliminatória, há prolongamento e não eliminação directa. Convenhamos, é uma almofada confortável.

(Autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.)