Viva Cesária Évora
O filme em si é um trabalho incrível de recolha de vídeos e documentos inéditos sobre Cesária.
© Créditos: DR
Aqui vai uma história que descobri na tela. No dia em que foi tocar ao Hollywood Bowl, um dos palcos mais míticos do planeta, a cantora Cesária Évora não estava propriamente preocupada se os microfones estavam alinhados ao seu tom de voz, se a noite ia estar fria ou quente, se a roupa que ia vestir era perfeita para a ocasião. Aquilo que a preocupava realmente era a comida que lhe ia chegar ao backstage.
Assim que chegava a uma cidade nova, a diva cabo-verdiana tratava de indagar pelas comunidades do seu país de origem. E Los Angeles não foi exceção. Depois de andar na estrada semanas a fio, apareceram-lhe uns conterrâneos com um tacho de cachupa que lhe há de ter sabido a bênção. Então, na hora de rumar com a comitiva ao Bowl, Cesária pediu que pusessem o tacho de cachupa na bagageira do carro, para que toda a gente pudesse comer depois do concerto.
Este é um dos muito geniais momentos do documentário "Cesária Évora", assinado por Ana Sofia Fonseca, e que estreia esta semana em Portugal. Vi o filme há uns meses, quando ele foi apresentado pela primeira vez ao país no festival Indie Lisboa – e onde acabaria por ser galardoado com o prémio do público. Aliás, a obra tem andado a rodar quase tanto globo quanto a cantora nas suas digressões. Foi selecionado para alguns dos mais conceituados festivais de cinema do mundo, o que é uma circunstância rara para um filme português – e ainda mais para um documentário.
Atentem bem nesta lista. "Cesária Évora" esteve no South by Southwest dos Estados Unidos, no New York City Doc e no Festival do Rio de Janeiro. Foi selecionado para o Sheffield Doc Fest do Reino Unido, para o festival de Jeonju na Coreia do Sul e para o Festival de Vancouver, no Canadá. Também foi a Israel para o Docaviv e à África do Sul para o Encounters Film Festival. No Festival Internacional de Cinema de Amesterdão, foi escolhido para o Best of Fest, a seleção dos melhores filmes do ano.
Então o que é que torna esta obra tão universal? O filme em si é um trabalho incrível de recolha de vídeos e documentos inéditos sobre Cesária. Depois a dança entre esse estupendo arquivo de imagens e os depoimentos sobre a cantora têm uma cadência perfeita. Não há nada a menos, não há nada a mais. Mas o que torna tudo genial é a franqueza com que o filme olha para o maior cantora cabo-verdiana.
Cesária é toda uma improbabilidade. Mulher, negra, pobre, dificilmente teria as características que a fariam chegar ao topo da montanha. E, no entanto, alcançou o cume. O filme olha para a ascensão, sim, mas o que o torna sincero é a maneira como olha para a queda. A depressão e o fundo do poço são tão Cesária como o palco do Hollywood Bowl. O reconhecimento que o mundo deu ao seu prodígio vem precisamente dessa ambiguidade.
Este ano, o Luxemburgo perdeu um dos seus maiores ícones de crioulos com o incêndio do café Métissage. Desde esse dia, não voltei a ouvir Cesária neste país e isso parte-me o coração. O filme que vi em Lisboa pôs-me a pensar no ímpeto do atlântico arquipélago. Parece-me que esta coisa de ir pisar um dos maiores palcos do mundo e depois ficar realmente preocupado se vai haver ou não cachupa para toda a gente é coisa profundamente cabo-verdiana. Viva Cesária Évora – e tudo o que ela significa.
(Grande Repórter)