"Tár". Duas horas e meia das nossas vidas
A performance de Cate Blanchett é maravilhosa e, só por isso, este filme vale duas horas e meia das nossas vidas.
Lydia Tár está para a música clássica como Ye e Taylor Swift juntos para a pop: já ganhou tudo o que tinha para ganhar, liderou algumas das melhores orquestras do mundo e é a famosa responsável pela Filarmónica de Berlim.
Quando o filme começa, Lydia Tár prepara-se para uma gravação ao vivo da quinta sinfonia de Gustav Mahler, enquanto lança um livro de memórias, com o pretensioso título "Tár on Tár".
Desde os momentos iniciais, o realizador Todd Field descreve de forma tão completa e precisa a carreira de Lydia que a minha vizinha na sala de cinema começou a pesquisá-la no Google...
A ascensão de Lydia Tár foi triunfante, e parece merecidíssima, mas já a minha avó dizia que quando mais alto se sobe maior é o tombo. E Lydia está provavelmente no seu auge quando uma ex-aluna se queixa de assédio sexual. Imediatamente uma equipa de juristas quer conversar com a maestrina para esclarecer as queixas.
Mas Lydia Tár tem outros problemas. Casada com Sharon (que faz parte da orquestra), esta sente ciúmes quando Lydia se interessa mais por Olga, a nova violoncelista prodígio da orquestra. Entretanto, Lydia precisa de escolher o seu novo maestro assistente, o emprego dos sonhos da leal assistente pessoal Francesca.
Apesar de Lydia ser uma mulher e de assumir a sua preferência por pessoas do mesmo sexo, o filme deixa claro, a pouco e pouco, que Lydia pode muito bem ser um espécie de Harvey Weinstein. Lydia seria uma predadora que pede favores sexuais às jovens que buscam conseguir as suas graças a nível profissional. Por outro lado, a maestrina seria capaz de acabar com as ambições daquelas que recusam os seus avanços.
A cena mais perfeita para ilustrar a dureza e o lado predador de Lydia começa por mostrar a maestrina envolta em sombras no arco de uma porta inundada pela luz. No primeiro plano está a promissora jovem violoncelista russa Olga, que Lydia acaba de elevar aos píncaros na Filarmónica de Berlim.
Lydia faz um chá. Olga começa a tocar as primeiras notas fragmentadas de uma composição original da maestrina. E aí Blanchett transmite tudo num olhar: o poder associado à emoção do desejo, tanto pelo seu próprio génio criativo como pela obsessão, numa mudança física quase impercetível, mas incrível.
Este filme é sobretudo um show de bola de Cate Blanchett, e certamente o Óscar será dela. "Tár" pode parecer um pouco austero, tanto no ritmo como na paleta acinzentada das imagens de Florian Hoffmeister, mas é na realidade um fogo lento que arde sem se ver e o combustível é a imponente prestação de Cate Blanchett.
A atriz, tornada famosa pela série "Homeland", Nina Hoss é igualmente incrível como a esposa sofredora de Lydia.
Também impecável, e num papel que requer atenção, está Noémie Merlant. Como assistente pessoal de Lydia, a sua personagem, Francesca, tem ambições e quer subir na hierarquia da orquestra, mas defronta-se com outros problemas como, por exemplo, manter afastada outra admiradora de Lydia, a atriz Krista.
Os espectadores que gostam de adivinhar desfechos de filmes podem perder a paciência com a forma como Todd Field mantém a corda esticada sem que ela parta. Apesar de já conhecermos muitas histórias de #Metoo, o retrato sufocante da artista e do seu sofrimento deixa-nos também a nós sem ar.
E o realizador deixa pairar perguntas difíceis sobre o equilíbrio de poder, mas também no que diz respeito à busca da perfeição e a perceção dos papéis dos géneros.
Apesar de o filme entrar, num determinado momento, num caos cacofónico na vida de Lydia Tár, Blanchett está sempre no comando, mesmo quando a sua personagem perde o controlo da situação. A sua performance é maravilhosa e, só por isso, este filme vale duas horas e meia das nossas vidas.
"Tár", de Todd Field, com Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Mark Strong, Julian Glover e Alec Baldwin.