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Fernando Pessoa no epicentro de uma guerra literária

Para rastrear as fontes de Zenith e dar o seu a seu dono, seriam precisas mais de mil páginas. A polémica lançada pelo Contacto continua.

© Créditos: EPA

Numa passagem do solilóquio 25 do Motim Literário, da autoria do Padre Lagosta, a Miséria argumenta: “Que das guerras literárias se tiram mais dissabores que lucros”. Mas se assim é, por que razão veio a própria Miséria dizer que tinha sido ela a iniciar a guerra? Nas suas palavras, “porque me desinquietaram”? Ao que se lhe responde: “Tu que promoves a guerra e acordas o cão que dormia és preponderante, grosseira, incivil”. Anda cá, Miséria, “que não és letrada”, não fujas: “dize-me que quer dizer esta raça infantil e timorata, que sendo acossada na rua se acolhe ao sagrado dos Templos para evadir a tunda, que novamente provoca com as muitas pedras, que atira pelas janelas da Sacristia?”

E o diálogo continua: “Os rapazes andam à pedrada na rua, os rapazes fogem dos Noturnos, metem-se na Igreja, os rapazes depois de estarem na Igreja com que pedras atiram pelas janelas da Sacristia? Que pedras são estas?”

O diálogo entre a Miséria e um mais ajuizado “Eu” prossegue, com este último a querer castigar aquela com a palmatória, pois “seria melhor que nunca houvesse tais controvérsias ou não existisse quem as motivasse”. Mas a Miséria – que, tal como o “Eu”, parece ser uma espécie de alter-ego do autor – lembra ao outro que se tinha apropriado nas suas obras dos pensamentos de Diego de Saavedra Fajardo: “convertendo-os em substância própria, dilatando-os, alterando-os conforme convinha ao seu intento, sem usurpação da obra inteira, nem de um só capítulo.

Vem todo este relambório, encenado em jeito de diálogo pelo próprio P. José Agostinho de Macedo quando foi acusado de plágio, a propósito desse outro motim literário que está em curso, opondo Zenith a George. No calor desta refrega, um investigador sério de matéria pessoana e conhecedor respeitado da célebre arca disse-me que tinha lido com proveito o que lhe mandara sobre o motim e concluiu com esta: “alguém que tivesse a pachorra de inventariar as infracções do Zenith ao dever de citar fontes faria outro livro de mil páginas...”.

Tremi, até hesitei. Comecei por achar que era um exagero. Não pelo facto de quem profere a denúncia ser meu amigo, mas por saber que quem o diz tem uma experiência grande na matéria e não afirma coisas de ânimo leve. Por outras palavras, a sua autoridade é mais do que reconhecida no campo dos estudos pessoanos. Falo de quem não se comove nem com amizades que suplantem a verdade e o rigor que todas as investigações têm de ter, nem com argumentos de autoridade que lhe sejam impostos.

Confesso que só agora, depois de ter recebido uma tal mensagem, fiquei mesmo de pé atrás em relação ao livro do Zenith. Talvez, por isso mesmo, procuro afastar-me da espuma da refrega onde o George foi vilipendiado pelo Zenith e seus comparsas, incluindo aqueles que nunca o leram mas não gostam dele. Longe, no fundo, do erro crasso que foi apontado ao George. Um erro que é, no fundo, bem feitas as contas, constituído pela citação em duas ou três páginas de umas cartas imaginadas de Pessoa.

Um erro grave, repito, que o próprio assumiu e irá corrigir na 2.ª edição, mas que já sabia ter incorrido nele antes de responder às perguntas do Expresso, às quais foi sujeito com rigor inquisitorial. Dito isto, um erro reconhecido e denunciado por quem o comete não pode atirar para a fogueira um livro de 900 páginas que necessita, antes de mais, de ser lido, criticado e comentado, sem piedade, como o autor sempre fez aos livros dos outros.

Longe disso tudo, dizia eu, decidi voltar à biografia do Pessoa da autoria de Richard Zenith. Também o Padre Lagosta se teve de aguentar à bronca, quando foi acusado de estar próximo, demasiado próximo, do Saavedra. Por isso, leio e releio esse livro escrito com devoção e indiscutível conhecimento dos textos de Pessoa, por alguém que encontrou os meios para dedicar mais de uma dúzia de anos a esse exercício, depois de ter dedicado muito mais do que esse tempo ao estudo e publicação dos textos do poeta.

As condições que Zenith soube criar ou das quais beneficiou para escrever o seu opus magnum não se confundem com aquelas de que usufruiu George. Este representa a figura do miserável que escreve a pataco, como diria mestre Aquilino Ribeiro, ou, na linguajem de hoje, de um escritor que tem um contrato editorial a cumprir, o qual não se pode esticar por muitos anos.

Para o resultado alcançado e amizades à parte, se o George escreveu mesmo o seu cartapácio em dois anos, até nem se safou nada mal. É claro que contava com a experiência anterior, de outras biografias, mas creio que a mola principal esteve na necessidade de dar conta do recado num curto espaço de tempo.

Ler mais:Motim Literário: Zenith contra George

O motim literário deve, pois, ter em conta antes de tudo o mais as condições em que se escreve. Neste caso, as condições em que os dois escritores escreveram. A comparação a estabelecer é simples: Zenith teve a calma e o lazer para escrever cerca de cem páginas por ano; enquanto George trabalhou a uma média de 450 páginas anuais, para obter 900 no fim de dois anos.

Para Zenith, grande conhecedor dos textos do Pessoa e um dos seus mais reputados especialistas, escrever uma biografia, mesmo que se tratasse daquele escritor ao qual já tinha dedicado mais de duas décadas, seria um labor entusiasmante com o qual culminaria a devoção de uma vida.

Acredito que, mesmo assim, lhe faltasse a experiência de conseguir arrumar os dados biográficos, para os conseguir colocar nos contextos de pertinência que dão sentido a uma vida. Sobretudo a partir do momento em que Zenith se procurou afastar da dimensão puramente literária e poética – em que se centraram, por exemplo, Pierre Hourcade e Robert Bréchon, para explorar o sentido da vida de Fernando Pessoa – colocando-a num quadro histórico mais alargado, parece que entrou num terreno que desconhecia, vendo-se a braços com muitos espinhos.

Arriscaria mesmo dizer – mas sem o desejo de ofender ou amesquinhar, porque não me parece que o método utilizado para denegrir o George deva ser aplicado contra Zenith – que é recorrente em Pessoa: uma biografia a inexperiência e a falta de à-vontade de Zenith em tudo o que ultrapasse os textos do poeta e ensaísta.

Insisto, não quero atirar o livro do Zenith para a fogueira, nem sequer denegri-lo. Parece-me, apenas, que a visão do especialista, do filólogo mais propriamente dito, só a muito custo se constitui em base para escrever uma biografia. Claro que se pode sempre argumentar que a genialidade ou o excepcionalismo de Pessoa são elementos mais do que suficientes para nos levar a prescindir de tudo o resto.

No entanto, uma releitura da biografia de Zenith revela que a figura de Pessoa como que paira em quadros históricos que o seu autor tem muita dificuldade em reconstituir e sobre os quais, em lugar de carrear dados novos, graças ao ponto de vista de Pessoa, acaba por fazer interpretações enviesadas ou que contêm várias imprecisões.

Por exemplo, Zenith escreveu: “António Machado Santos (1875-1921) – um muito respeitado oficial da marinha e o mais afamado herói da revolução republicana de 1910” (Pessoa: uma biografia, p. 612). Trata-se da enunciação de um facto que traz com ele dois valores interpretativos.

Que Machado dos Santos fosse respeitado no seu estatuto de militar não duvido, mas daí a poder ser considerado superlativamente “o mais afamado herói” do 5 de Outubro a distância é enorme. Que sabe Zenith dos heróis da implantação da República? Pouco ou nada e onde terá ido buscar tal inútil e porventura errada minudência? Não sei.

Quanto à República, Zenith considera-a, cinco anos depois da sua implantação, “politicamente tumultuosa e economicamente irresponsável” (p. 613). São conhecidas as origens de uma tal caracterização da Primeira República, cujos aspectos negativos deveriam ser apresentados pelo menos a par dos positivos (a começar pela lei de separação do Estado das igrejas, Lei do Divórcio, projectos de educação e ensino, etc.).

A mesma ideia surgiu entre monárquicos e integralistas; teve vida farta nos círculos da propaganda do Estado Novo; para depois ser relançada por Jorge Borges de Macedo, cujas ideias passaram a alimentar, directa ou indirectamente, sucessivos projectos revisionistas da história do século XX.

Zenith tomou-a como um facto adquirido, quando se trata de uma interpretação totalmente enviesada ideologicamente, e só assim se explica que a tenha registado, mesmo que daí não tivesse resultado nenhum dado novo para interpretar Pessoa. Aliás, em matéria de ideias políticas de Pessoa, o guia mais seguro – conforme já aqui defendemos – é constituído pelos trabalhos do investigador José Barreto, sobretudo em Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar (Tinta-da-China, 2015).

E no que respeita à bibliografia sobre a República, são hoje essenciais os livros de Luís Bigotte Chorão (aos quais o George recorre). Só mais um pormenor, mesmo reconhecendo que a fonte de inspiração foi aqui o historiador Rui Ramos, interessaria saber em que consistiu essa famigerada “irresponsabilidade económica”...

Em artigo anterior aqui publicado, já exprimi as minhas divergências em relação ao modo como Zenith interpreta as ideias de Pessoa quanto ao colonialismo, racismo e modos de escravatura moderna. Fico-me, agora, por um facto que, mais uma vez, se afigura impreciso. Considera Zenith que, “apenas em 1914, sob o efeito de uma pressão intensa, é que os produtores de cacau da ilha-colónia restringiram as suas práticas de trabalho abusivas para satisfação dos observadores internacionais” (p. 613). Existe, hoje, uma rica bibliografia sobre a questão do cacau de S. Tomé e as formas de trabalho forçado. Zenith não a cita, ou seja, não dá o seu a seu dono.

De qualquer modo, o pormenor de se fixar numa única data, de 1914, como ponto de viragem fazendo depender a importância dessa mesma data da satisfação dos observadores internacionais afigura-se não só uma fantasia, como uma perspectiva que vai ao arrepio da tendência para se estudar o que se passa em África tomando em consideração os agentes e as relações locais. Aliás, a própria disposição dos factos anteriores, a começar pela data de 1908 como a da anexação do Congo pelo Estado belga parece-me bem atrabiliária.

Se Zenith quisesse referir a pressão internacional acerca da violência perpetrada naquele território, teria de aludir ao relatório de Roger Casement (1903) e ao Solilóquio de Mark Twain (1905). Contudo, não se podia ficar, mais uma vez, pela pressão internacional (“observadores” como Zenith lhes chama, de modo um tanto anacrónico). De qualquer forma, os modos de resistência local e as campanhas movidas pela opinião pública belga nunca poderiam ser esquecidas.

Os resultados da minha leitura vão continuar. Mas, para já, os que aqui exponho dizem respeito a apenas duas páginas do livro de Zenith. Um facto que só por si confirma a opinião citada de que seriam precisas mais de mil páginas, para rastrear as suas fontes...

(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)

Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto

Colabora com o Contacto e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino (Edições 70).