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O dia em que Cannes se mudou para a Bélgica

Nunca um palmarés de Cannes tinha dado tantos prémios ao 'plat pays'.

© Créditos: DR

Crítico de cinema

Quem me lê sabe que sou esquisito. Quem me lê aqui sabe ainda que não tenho pachorra para o clube do Bolinha que se chama festival de Cannes, para onde são convidados sempre os mesmos cem realizadores. Quem me lê sabe também que vou a Cannes há 30 anos e que só falho por razões de força maior.

Depois de me enervar com a seleção de filmes acabo por me chatear com o palmarés. E este ano não foi exceção.

O regresso do festival depois da pandemia foi em grande. Os filmes em competição na seleção oficial e nas secções paralelas eram, em geral, de qualidade. Mas, como sempre, os jurados criam entre si dinâmicas curiosas que por vezes dão palmarés como o de 2022.

Se Portugal levou a Cannes quase uma mão-cheia de obras, o Luxemburgo voltou a ser maior do que a sua dimensão geográfica.

Nunca será igualado o escândalo de 2004, quando um júri presidido por Quentin Tarantino deu a Palma de Ouro ao banal documentário de Michael Moore. Contudo o júri da 75ª edição deixou a Croisette desiludida e os festivaleiros espantados.

Um bancal Vincent Lindon (será que os russos também influenciaram a escolha deste presidente?), deprimido e abatido, liderou um júri constituído por gente muito interessante que acabaram por fazer escolhas improváveis. Porque a minha terapeuta me aconselha a positivar, vamos falar aqui de quem ficou contente, em vez de martelar em filmes de merda que por acaso até tiveram prémios.

Os mais felizes de 2022 são os belgas. Nunca um palmarés de Cannes tinha dado tantos prémios ao 'plat pays'. Para que os cansativos irmãos Dardenne não levassem mais uma palma e contassem três, os jurados inventaram um prémio especial porque esta é a 75ª edição do maior festival do mundo. Os manos Jean-Pierre e Luc terão assim de fazer mais um filme para conseguirem bater o recorde absoluto de palmas de ouro.

Mas os Dardenne não foram os únicos belgas a subirem ao palco na noite de encerramento do certame. Lukas Dhont, que Cannes descobriu há uns anos com o brilhante "Girl" conquistou o grande prémio do júri com o seu mais recente trabalho, "Close". Mas esperem porque há mais belgas: Felix Van Groeningen e Charlotte Vandermeersch são um casal que se apaixonou por Itália e decidiu contar uma história de "valores naturais", contra o mundo urbano e do dinheiro.

Os financeiramente pobres jurados do festival manifestaram nessa escolha o seu pendor anarquista e contestatário, mas provaram ainda mais que são antissistema ao premiar Ruben Östlund. O sueco, que já nos tinha oferecido o surpreendente "Square", regressa com uma história – que faz muito lembrar o mestre Manoel de Oliveira – mas adaptada aos tempos que correm, entre oligarcas russos e influenciadoras.

Portugal não ganhou quase nada, ficando a exceção para o jovem portuense João Gonzalez que conquistou mais do que espetador um com o belíssimo “Ice Merchants”.

O meu coração ficou em Cannes depois de ter visto "Restos do Vento", de Tiago Guedes e "Alma Viva", a primeira longa-metragem da luso-francesa Cristèle Alves Meira que prova que o talento também de pode herdar ao escolher para protagonista do filme a sua filha.

Na competição pela Palma de Ouro, esteve "Pacifiction – Tourment sur les îles", do espanhol Albert Serra, com coprodução portuguesa.

Na Quinzena de Realizadores esteve "Fogo-Fátuo", de João Pedro Rodrigues, que conquista sempre o público LGBT. Na secção Cannes Classics "O silêncio de Goya", coprodução franco-hispano-portuguesa dirigida por José Luis López-Linares. "Tout le monde aime Jeanne", primeira obra da francesa Céline Devaux, rodada em Lisboa e com coprodução portuguesa de O Som e a Fúria.

O filme "Mistida", de Falcão Nhaga, esteve presente no programa La Cinef do Festival, dedicado a obras feitas em contexto escolar.Portugal também contou com presenças de atores, nomeadamente Welket Bungué, no filme de David Cronenberg "Crimes of the Future" e Nuno Lopes que participou em três produções presentes na 75ª edição do festival de Cannes.

Se Portugal levou a Cannes quase uma mão-cheia de obras, o que é muito bom tendo em conta a limitada quantidade de cinema que se vai fazendo, o Luxemburgo voltou a ser maior do que a sua dimensão geográfica com uma forte presença nas distintas seleções, mas trazendo prémios para o Grão-Ducado: Vicky Krieps, em "Corsage", obteve o prémio para a melhor interpretação na seleção Un Certain Regard, ex aequo com Adam Bessa, numa coprodução luxemburguesa, "Harka".