Fernando Pessoa e África: colonialismo, escravatura e racismo
Não basta pôr em causa, em termos genéricos, a interpretação literal de Zenith. Será necessário examinar cada uma dessas passagens, para que não restem dúvidas acerca do método errado seguido pelo biógrafo do poeta.
Retrato de Fernando Pessoa de Almada Negreiros. © Créditos: EPA
À margem das biografias de Fernando Pessoa, há que considerar a inovadora fotobiografia de Maria José Lancastre (1981) e as 33+9 leituras plásticas de Fernando Pessoa (1988) pintadas e publicadas por Alfredo Margarido. Ao exemplar que me ofereceu, este último juntou uma aguarela intitulada “A máscara africana de Pessoa”. Por razões relacionadas com a estima intelectual e amizade que sempre tive pelo autor, essa imagem não só me emociona como encontro nela formulado um problema pertinente, a saber, o das relações de Pessoa com África.
Em Durban, o poeta viveu dos 7 aos 17 anos. Segundo Richard Zenith, um dos seus mais recentes biógrafos, o poeta encontrou duas coisas naquela que era, então, uma colónia britânica: por um lado, a educação inglesa que, não fora a interrupção efectuada nos seus estudos, lhe teria dado acesso a uma das universidades do sistema oxbridge; por outro lado, a experiência ali vivida pelo poeta suscitou uma série de tiradas racistas, relativamente aos zulus ou aos africanos em geral (Pessoa: a biography, trad. Salvato e Vasco Teles de Menezes, Quetzal, 2021).
Se, em relação ao primeiro aspecto, não parecem existir dúvidas, conforme demonstraram os biógrafos do poeta em Durban: Hubert D. Jennings (Os Dois Exílios. Fernando Pessoa na África do Sul, 1984) e Alexandrino E. Severino (Fernando Pessoa na África do Sul: a formação inglesa de Fernando Pessoa, 1983). Já em relação ao segundo ponto, a interpretação literal que Zenith faz de algumas passagens de Pessoa contendo enunciados racistas corre o risco de falhar o alvo.
Não basta pôr em causa, em termos genéricos, a interpretação literal de Zenith. Será necessário examinar cada uma dessas passagens, para que não restem dúvidas acerca do método errado seguido pelo biógrafo quando lhes atribui o estatuto de “afirmações abertamente racistas” (Pessoa. Uma biografia, 2021, p. 616).
A primeira manifestação de racismo teria ocorrido no Liceu de Durban, onde Pessoa aprendeu “a ridicularizar aqueles que não eram brancos como ele e todos os outros da escola” (Pessoa. Uma biografia, p. 614). A prova, segundo Zenith, encontra-se num papel onde Pessoa escrevinhou – num estilo de charada divertida que era muito seu, um imaginário exame – “Além dos zulus, quais são as principais espécies de gado em uso na África do Sul e para que fim são mais adequadas?” Mas uma interrogação destas, brincalhona, de uma brincadeira de mau gosto com certeza, servirá mesmo de prova para demonstrar o racismo do poeta? Pessoalmente, tenho dúvidas. Considero até que a questão pode ser vista como uma forma de caricaturar os possíveis professores, autores do hipotético exame, num jogo de identidades que Pessoa irá desenvolver, não podendo ser tida como opinião certa de quem começava a ter consciência do que era um acto de construção literária.
O argumento de que se trata de uma caricatura ao discurso oficial sobre a missão civilizadora de europeus e portugueses nas suas colónias, nomeadamente em África, aplica-se a um segundo texto que Zenith traz à colação. Trata-se de uma passagem de 1916, que consta de uma antologia Sobre Portugal (1978), organizada por Joel Serrão, na qual Pessoa pôs em causa o projecto colonial enquanto missão civilizadora. É neste quadro de crítica – e não enquanto opinião passível de ser interpretada de modo literal – que deve ser lido o seguinte trecho: “A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização” (Pessoa. Uma biografia, p. 615).
A terceira passagem, escrita numa data mais tardia, afigura-se ainda mais controversa, no sentido de poder dela retirar uma qualquer prova do racismo de Pessoa. Segundo Zenith, ela encontra-se numa suposta carta inacabada dirigida a Woodrow Wilson. Sendo conhecidas as posições discriminatórias e as políticas de segregação racista desse presidente norte-americano, qual o sentido a atribuir às afirmações de Pessoa, escritas em inglês: os negros “não são seres humanos, sociologicamente falando. O maior crime contra a civilização foi a abolição da escravatura” (ibidem). Será esta afirmação uma defesa do racismo ou, pelo contrário, uma denúncia do mesmo? Tendo a inclinar-me para a segunda opinião.
Uma quarta e última passagem é antecedida por um desabafo: por que razão Pessoa questionou “muitas crenças e preconceitos da sociedade em que vivia”, sem nunca lhe ocorrer “questionar o seu próprio racismo”? Com esta atitude de escrutinador do racismo de Pessoa, o seu biógrafo refere que, ainda em 1930, o poeta, outra vez em inglês, escreveu com altivez que “o negro usa sempre as modas acabadas de introduzir” (Pessoa. Uma biografia, p. 616). Mas como poderá uma frase deste tipo valer para fundamentar o suposto racismo estrutural de Pessoa?
As referências de Zenith aos quatro trechos de Pessoa acabados de referir surgem na sequência da interpretação de um ensaio sobre a questão da escravatura ou do trabalho forçado, do qual se conhece apenas um fragmento. “A pretensa escravatura em São Tomé” é mais um projecto inacabado do que um ensaio, escrito em 1909, e objecto de uma publicação pela investigadora Ana Maria Freitas (2014).
Com base nesse fragmento, Zenith volta a escrutinar Pessoa, mas desta feita em relação ao colonialismo e à escravatura. São três as conclusões a que chega. Primeiro, Pessoa, se reconhecia que os negros forçados a trabalhar em S. Tomé eram sujeitos a “um tratamento brutalmente desumano”, argumentava que os mesmos eram mais bem tratados do que aqueles que iam trabalhar nas minas sul-africanas, “onde os patrões britânicos lhes pagavam salário mas ‘faziam-nos trabalhar até à morte’” (Pessoa. Uma biografia, p. 614). Seguindo uma sugestão de Ana Maria Freitas, Zenith considera que os trabalhadores que iam para as minas do Rand eram não só negros africanos, mas também chineses contratados (coolies). No entanto, a questão que aqui se coloca era, talvez mais, a dos moçambicanos que iam trabalhar nas minas, alimentando um sistema em que a colónia de Moçambique exportava mão-de-obra que passava, precisamente, por Durban e pelo consulado português (competindo ao padrasto de Pessoa o controlo desse fluxo de trabalhadores migrantes). Dito de outra forma, na opinião de Pessoa, a questão era: por que razão os britânicos denunciavam os maus tratamentos infligidos aos trabalhadores que emigravam para S. Tomé e Príncipe, em lugar de denunciar os assalariados das minas sul-africanas?
Tal como vai formulada, a pergunta até merece resposta por parte do espírito escrutinador de Zenith, no que se constitui como um segundo ponto, muito discutível: “A compaixão de Pessoa pelos nativos africanos maltratados que trabalhavam em S. Tomé ou nas minas do Transvaal era pouca, e a sua denúncia do imperialismo britânico não era muito mais do que uma reacção instintiva à atitude dos britânicos em relação ao império colonial português” (ibidem). Ora, não me parece que a compaixão de Pessoa fosse pouca, nem tão pouco que evitasse fazer críticas aos impérios coloniais, à cabeça dos quais colocava o Império Britânico.
Terceira conclusão, Pessoa foi selectivo no tratamento que deu às vítimas do imperialismo britânico: lamentou o tratamento dado aos bóeres, mas não responsabilizou os britânicos pelos maus tratamentos a que submeteram os indianos seus criados, nem tão-pouco os zulus que oprimiram e cujas terras ocuparam. De facto, não há nenhum texto em que Pessoa responda, de modo cabal, a tais requisitos. No entanto, no fragmento textual em causa, o poeta dobrado de ensaísta põe o dedo em duas feridas: primeiro, em S. Tomé e nas minas sul-africanas havia trabalhadores que eram explorados e mal-tratados, com a diferença paradoxal de os negros assalariados, que eram contratados na África do Sul, estarem em pior situação do que aqueles que, em vários relatórios e inquéritos, eram considerados escravos, como sucedia em S. Tomé; segundo, bem podiam os britânicos arvorar-se em polícias do que sucedia no Império Português, o certo era que no interior do Império Britânico, porventura por ser mais desenvolvido economicamente, as formas de exploração e as crueldades eram mais acentuadas. Na opinião de Zenith, estas denúncias sabem a pouco. No entanto, este é um julgamento despropositado, se tivermos em conta os termos do debate com que se discutiam, no início do século XX, tanto o colonialismo, como a questão das novas formas de escravatura.
A última constatação conduz à questão de se saber qual o contexto pertinente à luz do qual devem ser avaliadas as posições de Pessoa. A este respeito, Zenith fornece algumas indicações, mas nenhuma delas se afigura muito precisa e dificilmente servem para dar sentido ao que Pessoa escreveu. Antes de mais, o biógrafo parece reportar a um período mais tardio em relação a 1909, quando a Primeira República já levava alguns anos de existência e se revelava “politicamente tumultuosa e economicamente irresponsável” (Pessoa. Uma biografia, p. 613). Chegado a este ponto o leitor julga estar a ler algum comentário da propaganda do Estado Novo que tinha como um dos seus alvos privilegiados depreciar a Primeira República, como uma confusão e, ainda por cima, violenta...
Depois, Zenith acrescenta, num registo que tem mais de espontâneo do que de analítico: “o problema não era apenas a república” (ibidem). Porquê? Porque “a imagem da monarquia tinha sido deslustrada durante a monarquia por relatos muito difundidos de trabalho escravo na África Ocidental portuguesa” (ibidem). Ora, não terá sido este um dos argumentos de Pessoa, no seu texto de 1909, em que associou a prática do trabalho escravo ao regime monárquico? Zenith acaba por concluir que, só em 1914, os roceiros de S. Tomé e Príncipe “restringiram as suas práticas de trabalho abusivas para satisfação dos observadores internacionais” (ibidem). Não sei ao certo onde Zenith foi buscar a certeza acerca desta última data, de 1914, enquanto ponto de viragem crucial dos roceiros, mas o certo é que a confirmar-se de que assim se tratou, então, a Primeira República dificilmente pode ser tida como um período cheio de tumultos e de irresponsabilidade. Pelo menos, neste ponto concreto algo de positivo aconteceu. Mais: à luz do critério escrutinador de Zenith, Pessoa afinal tinha razão quando em 1909 assacou responsabilidades pelo trabalho escravo à Monarquia, propondo uma mudança para o regime republicano.
(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)
Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto
Colaborou com o Público e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino (Edições 70).