As ciências sociais sob ataque
Se as ciências sociais estão sob ataque, como poderão ser reinvestidas do seu papel emancipatório de luta pelo conhecimento científico da sociedade e instrumento de um mundo melhor?
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Em Portugal as ciências sociais estão sob ataque. Longe de se tratar de uma situação inédita, ela não é única em relação a outros países. Ou seja, a debilidade no modo de fazer valer o reconhecimento das ciências sociais, bem como das instituições de investigação e ensino que lhes estão vinculadas revela-se na facilidade com que as mesmas se tornam alvo de uma depreciação permanente. Um dos modos mais correntes de proceder a essa depreciação, determinado pelos valores do mercado, é aquele que se resume à noção de que as ciências sociais não servem para nada.
Contudo, é na instrumentalização política das ciências sociais, no âmbito de uma articulação pejada de ambiguidades, que se encontram as formas mais comuns da sua desvalorização. Dois acontecimentos de diferente natureza, sucedidos muito recentemente, necessitam de ser tidos em conta para perceber melhor o sentido de tais ataques ou modos de depreciar quem se dedica a procurar conhecer melhor a sociedade.
Um deles assumiu contornos espalhafatosos, quando três investigadoras escreveram um longo artigo onde procuraram descrever o modo de funcionamento de um centro de investigação em ciências sociais. Neste, um professor estrela, com notórias tendências narcísicas, naturalizou durante décadas formas de assédio moral e sexual, no interior de um sistema de troca de favores. Boaventura de Sousa Santos, director emérito de um desses centros, sociólogo do direito, sentindo-se visado por essa descrição que pretendia descrever uma espécie de tipo ideal, evocou presunção de inocência, para logo ameaçar as autoras com um processo judicial.
Os contornos do debate com larga repercussão mediática, que levou a investigação em ciências sociais pelos piores motivos a abrir telejornais, obrigam a uma reflexão sobre dois aspectos de diferente natureza. Por um lado, as autoras do artigo que descreveu uma espécie de tipo ideal de centro ou laboratório de investigações sociais seguiram o mesmo método praticado, durante toda uma vida, pelo denominado professor estrela.
Isto é, da mesma forma que este sempre defendeu a prática de uma investigação sobre o social posta ao serviço da esquerda e de um activismo ligado a causas emancipatórias, as autoras do artigo descreveram o modo de funcionamento de uma instituição denunciando, corajosa e abertamente, uma situação política de injustiça perpetrada por aqueles que se encontravam em posições de dominação.
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Por outro lado, a resposta ou, talvez seja melhor dizer, a ameaça de resposta por parte do professor estrela não se fez esperar. Contudo, em lugar de respeitar o seu próprio método, seguido por quem o denunciou, apresentando uma descrição etnográfica alternativa à versão apresentada pelas autoras, o professor estrela considerou que a melhor arma era o ataque.
Assim, aquele que procurara durante uma vida explorar a existência de sistemas alternativos de justiça, ao sentir-se acossado, não hesitou em vir chorar publicamente, apresentando-se como vítima de uma injustiça. Aqui del-rei, que me querem fazer mal e castigar por uma mão no joelho e a infâmia de um graffiti! Neste quadro, o militante e activista da esquerda radical, aqui e lá fora, argumentou que só os tribunais oficiais do Estado – muito longe das formas alternativas e plurais de justiça que lhe foram sempre caros, para pensar o direito dos oprimidos – poderiam repor o seu bom nome. Será esta uma posição – em que se troca a descrição etnográfica pelo processo judicial – coerente com os ideais de esquerda? Tenho sérias dúvidas.
O segundo acontecimento, minúsculo, não mereceu qualquer difusão mediática. Resume-se a uma citação que dá que pensar, por pôr em causa muitas das genealogias e modos de celebração das ciências sociais. Refiro-me à correspondência trocada entre Jorge Dias e José Cutileiro, publicada pelo antropólogo João Leal no último número da revista Etnográfica (vol. 27, n.º 1, 2023).
Tenho presente uma carta específica, que terá sido escrita por volta de 1969. Nela, o primeiro, mais velho, formado na Alemanha nazi, revelou a Cutileiro que tinha medo do que viria a acontecer com as ciências sociais em Portugal. E, apesar de Dias poder ser considerado um dos principais representantes do modo do Estado Novo entender as ciências sociais, distanciou-se e criticou Adriano Moreira – que se fizera catedrático quando fora ministro do Ultramar, sem nunca se ter doutorado –, sem deixar de lhe atribuir um papel decisivo nas ciências sociais em Portugal. Assim, Dias reconheceu o papel decisivo de Adriano Moreira, ao escrever: “apesar de [ele] ter sido o principal elemento impulsionador das ciências sociais no nosso país, também foi o agente destruidor, que lhes minou os alicerces, com a sua política pessoal, arbitrária e contraditória”.
Seria fastidioso procurar desenvolver, a partir daqui, uma breve história das ciências sociais em Portugal. Para isso seria necessário ter em conta os mais diversos contributos, alguns deles de grande alcance, produzidos em diferentes configurações, mas sobretudo desde a Segunda Guerra, por geógrafos, economistas, sociólogos, juristas, historiadores, agrónomos, antropólogos, politólogos, especialistas em relações internacionais, etc.
Interessante seria reparar nas pontes estabelecidas com a literatura, enquanto modo de conhecimento do mundo. E particular atenção teria de ser dada à circulação internacional de ideias. É que só a partir desta circulação, no confronto com os centros e laboratórios, se pode testar a oscilação entre a defesa de uma autonomia disciplinar – que procede por especializações, para procurar impor a primazia desta ou daquela disciplina – e os sucessivos projectos que se destinam a pensar em conjunto, de forma interdisciplinar, o conjunto das ciências sociais. Por exemplo, os casos recentes de Amartya Sen, prémio nobel da economia, ou de Thomas Piketty – ambos autores de obras de grande fôlego intelectual – vieram desafiar o confinamento disciplinar da economia, considerada a mais científica das ciências sociais, devido à sua base estatística e econométrica.
No entanto, a evocação dos referidos casos de Boaventura de Sousa Santos e de Adriano Moreira tem a vantagem de trazer para o debate, respectivamente, à esquerda e à direita, aquela que é uma das grandes debilidades das ciências sociais, em comparação com outras ciências, a saber, a permeabilidade das mesmas aos usos políticos. Estes podem levar ao reconhecimento individual deste ou daquele politólogo ou sociólogo, seguindo aliás um padrão tradicional de legitimação caro às elites de juristas e economistas.
Contudo, o que acrescentam em reputação individual, pela capacidade de produzir opiniões, acabam por retirar em reconhecimento científico. Tal acontece, sobretudo, porque as ciências sociais continuam a ser julgadas por modelos de reconhecimento – muito pouco escrutinados e que continuam a ser preponderantes – provenientes das ciências naturais, de laboratório, em particular, da física ou das ciências biomédicas.
Em minha opinião, um dos melhores guias para pensar todas estas questões, tanto em relação às ciências no seu conjunto, como às ciências sociais em particular, encontra-se na obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). Não por acaso, um sociólogo que Boaventura de Sousa Santos sempre fingiu desconhecer. Tenha-se em conta, sobretudo, os seus últimos de vida. Deles foi feito um documentário, que pôs a nu o seu lado de militante preocupado com as condições de vida dos que mais sofriam com a desigualdade social e se encontravam desprovidos de qualquer tipo de capital simbólico ou material. Isto é, enquanto cidadão, Bourdieu não se furtou ao envolvimento nas causas de emancipação dos mais desfavorecidos.
No entanto, foi precisamente no momento em que intensificou esse seu envolvimento político em causas emancipatórias, claramente situadas à esquerda, que se mostrou interessado em reflectir sobre a necessidade de uma autonomia das práticas científicas. Uma série de conferências organizadas pelo sociólogo Virgílio Borges Pereira no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto levaram-me à releitura de alguns dos seus textos cujos resultados aqui apresento em duas partes, por me parecerem essenciais neste momento de ataque às ciências sociais.
Nos primeiros meses de 2001, Pierre Bourdieu dedicou o seu curso do Collège de France à sociologia da ciência. No centro da sua contribuição, não estava uma mera noção, mas o que ela implicava enquanto atitude de permanente reflexividade. É em seu nome que se inicia e termina o curso, intitulado Science de la science et reflexivité (Paris: Éditions Raison d’Agir, 2001).
Um aspecto, aliás, não retido pela tradução portuguesa (Para uma sociologia da ciência, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2021). Reivindicando para si uma postura profundamente reflexiva – “trabalho pelo qual a ciência social, tomando-se a si mesma como objecto, se serve das suas próprias armas para se compreender e controlar” (p. 123) ou “que a sociologia da sociologia deve acompanhar a prática da sociologia” (pp. 154-155) –, Bourdieu começou por se posicionar a si mesmo num campo de relações onde sabia que se tinha de confrontar com outras interpretações da ciência, para fazer valer argumentos e pontos de vista.
Na introdução e no primeiro capítulo, posiciona-se em relação a três debates. O primeiro surge sobre a forma de inscrição na grande tradição francesa de reflexão e de “ambição científica sobre a ciência”. Os nomes de Jules Vuillemin, Bachelard, Koyré e Canguilhem integraram-na e foram evocados em abono de uma tradição filosófica rigorosa que sempre procurou pensar os problemas da investigação científica no seu conjunto.
Ou seja, longe de estabelecer à partida uma barreira entre ciências naturais e sociais, Bourdieu reclamou para si um modo que era, simultaneamente, mais unificado de pensar a ciência, mas que não deixava de atender à especificidade e à história de cada uma das disciplinas. Aliás, a partir dessa mesma perspectiva integrada da ciência, a referência ao caso Sokal permitiu-lhe posicionar-se em relação ao pós-modernismo.
Por um lado, é indiscutível que Bourdieu em nenhum momento se mostrou pronto a desistir da prossecução da verdade por via da investigação científica, nem tão-pouco se revelou disponível a reduzir a realidade ao estatuto do texto, investindo o seu uso de um jargão próprio de uma militância de esquerda.
Por outro lado, ao contrário de Sokal: nunca atribuiu à física ou às ciências naturais o valor de padrão ao qual todas as outras ciências ou disciplinas se deveriam submeter; manteve-se fiel à tradição kantiana de que toda a realidade é, em si mesma, uma construção fundada em categorias ou, como já Bachelard tinha referido, os factos, longe de serem um dado, são construídos em laboratório; e fez com que a sua insistente postura reflexiva, através da qual se deveriam pôr em causa a prática da ciência, fosse entendida como um exercício de libertação e de emancipação. Como dirá, mais adiante, no livro em causa: “a sócio-análise do espírito científico, tal como a evoco, parece-me ser um princípio de liberdade, portanto, de inteligência” (p. 128).
O segundo debate a que Bourdieu faz referência tem uma história longa e, porventura, equivocada. Parte de uma ideia resumida do que foi a sociologia norte-americana, num suposto eixo que ia de Harvard a Columbia. Num texto anterior, chamara-lhe uma holding sustentada, por um lado, pelas tipologias e sistemas classificatórios de uma teoria da acção social tal como tinham sido propostos por Talcott Parsons, formando o funcionalismo-estrutural; por outro lado, pelas metodologias interessadas nas regularidades estatísticas orientadas para a investigação empírica de Paul Lazarsfeld, porventura mais directamente inspiradas na cientometria, com larga aceitação nos círculos de tomada de decisão económica e de elaboração de políticas públicas.
Não será, com certeza, este o momento para perceber que uma tal imagem simplificada da sociologia norte-americana visava gerar um contraste e suscitar uma polémica. O importante, por ora, é reparar que a noção de comunidade científica, tal como foi proposta por Robert Merton e, depois, adoptada por T. S. Kuhn, se manteve fiel ao funcionalismo parsoniano, interessado nos modos de integração social, que excluíam do seu horizonte os múltiplos conflitos presentes em qualquer tipo de comunidade científica. A simples presença de investigadores de segundo plano, dedicados mais a tarefas burocráticas, em contraste com outros capazes de inovar e de alcançar modos carismáticos de reconhecimento, a começar pelos early starters, aponta para a existência de inúmeras lutas no interior de comunidades e laboratórios.
A terceira discussão empreendida por Bourdieu diz respeito à denominada “sócio-filosofia da ciência” de Bruno Latour. É talvez sobre as análises feitas por este último acerca do que se passa em laboratório que Bourdieu assume um estilo mais contundente. Concretamente, embora esteja disposto a admitir e a partilhar com Latour que o laboratório é um espaço de permanente interacção, onde os factos são construídos e se assiste à auto-verificação, Bourdieu recusou-se a aceitar a passagem dos factos como construção para uma realidade composta de textos, discursos e ficções.
A estes e à sua interpretação semiológica, Latour terá acrescentado uma série de objectos com vida própria e capacidade para tomar iniciativas, a começar pelas pipetas e portas automáticas. A descrição do modo caricatural como Bourdieu se refere e desqualifica o trabalho de Latour não ficaria completa sem a referência à denúncia de como a retórica é posta ao serviço da “procura do efeito de radicalidade”, coberta por “sinais exteriores de cientificidade” e articulada com uma série de “falsos problemas” (pp. 49-50, 54, 57).
Se os três debates acabados de anunciar contêm em si alguns dos instrumentos analíticos com que Bourdieu traça o seu programa de uma sociologia reflexiva da ciência, só no segundo capítulo do livro procede, de forma mais desenvolvida, à sua explicitação. Sem a intenção de lhes sobrepor uma grelha, baseada em qualquer pretensa aspiração a querer parecer original, melhor será proceder ao seu simples inventário, procurando reconstituir o seu sentido e sequência.
Mais do que a noção de laboratório, Bourdieu procura compreender a ciência com base no conjunto das inter-relações que se estabelecem no interior de um campo e que transcendem a própria noção localizada de laboratório (entendido como uma espécie de equivalente ao valor que outrora se conferia à monografia regional). O campo é entendido como uma estrutura onde se faz sentir uma lógica relacional estabelecida entre os diferentes agentes em confronto.
No interior desse mesmo campo, os agentes interiorizam um habitus específico, que mantém uma relação de homologia com o “olho”, com o “estilo” próprio e até com posturas corporais de cada agente e respectiva disciplina. Assim sendo, entre o campo e o habitus existe uma articulação, mas importa sempre salvaguardar que “entre o espaço das posições e o espaço das tomadas de posição não há uma relação de reflexo mecânico” (p. 85).
(continua)
(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)
Diogo Ramada Curto, historiador, colunista do Contacto
Colabora com o Contacto e o Expresso. Professor Catedrático na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi professor no Instituto Universitário Europeu em Florença e professor convidado nas universidades de Brown, Yale e São Paulo. Em finais de 2020, publicou "O Colonialismo português em África: de Livingstone a Luandino" (Edições 70).